Para o aniversário de Tchekhov

A Wikipédia, que mais de uma vez tem recebido justas críticas e reparos, no caso particular de Anton P. Tchekhov possui trechos dignos de transcrição. Além das necessárias datas do nascimento do escritor, em 29 de janeiro de 1860, e morte, em 15 de julho de 1904, entre outros dados a enciclopédia virtual nos informa:

“Quando adulto, Tchehkov criticou o tratamento do irmão Aleksandr perante a esposa e filhos, lembrando–o da tirania do pai:

Deixe–me perguntar–lhe se recorda que foi o despotismo e a mentira que arruinaram a juventude da sua mãe. Despotismo e a mentira mutilaram a nossa infância e é repugnante e assustador pensar sobre isso. Lembre–se do horror e da repulsa que nós sentimos naquele momento em que o pai se enraiveceu durante o jantar, porque havia muito sal na sopa e chamou a mãe de tola’.”

Tchekhov é um autor que sempre me surpreende, mesmo quando o releio. É claro, na releitura temos um filtro que nota quebras onde antes pensávamos existir só construção inteiriça. Mas ainda assim há textos impressionantes, moderníssimos, acabados de escrever agora, como aquele sobre o cocheiro que tem uma desgraça e ninguém o escuta. Ou momentos, trechos em contos, onde uma senhora abastada responde que não precisa publicar os livros que escreve, “porque somos ricos”. Ou aquele em que um velho professor diz à filha que lhe pede uma razão para viver: “Eu não sei”. Não vou mais citar de memória nem lembrar “A dama do cachorrinho” nem o conto da Enfermaria, que deixou Lenin à beira da loucura, com medo de ter o mesmo destino do protagonista.

Daí que recupero, para o mais recente aniversário do genial escritor, um artigo em que procurei responder à infâmia de uma resenha sobre Tchekhov. Conforme as linhas a seguir.

Na Veja da última semana [de fevereiro de 2003], no artigo “A vida como ela é”, há uma resenha sobre o livro O assassinato e outras histórias, de Tchekhov. De imediato, façamos a anotação de três pequeninos pontos:

a) é sintomático na revista que divulga neologismos, como Lula de Mel, o rebatismo de Tchekhov para Tchekov, com um “k” sem “h”, quem sabe para evitar a insinuação de um cacófato, a lembrança das duas consoantes unidas;

b) é discutível afirmar–se que o autor do livro O assassinato e outras histórias é Tchekhov, pois num escritor que escreveu histórias curtas com a sua fecundidade, melhor seria referir-se a coletânea, apanhado – a organicidade do volume termina por ser a de quem reúne os contos;

c) é confuso o título “A vida como ela é” ao se referir à obra do russo, pois mistura o realismo de Tchekhov à descrição naturalista, à sátira caricatural, mais própria em título de crônicas de costumes de Nelson Rodrigues sob pseudônimo.

Esses três pontos anotados, vale dizer, esse triângulo inscrito, já dizem bem dos limites e das incompreensões da resenha na Veja. Mas não fiquemos no insinuado, juntemos mesmo o k e o h da resenha, como ela é. Numa palavra, vejamos. Lá se escreve:

“as situações (dos contos de Tchekhov) são corriqueiras, e as tragédias apenas uma sucessão de fracassos e frustrações…”

Paremos um pouco: a resenha não se enganou de contista? Essa não será aquela típica redação–chapão–padrão, com perdão do “ão”, que se aplica a tudo e portanto não se aplica a nada? À primeira vista, vemos Trevisan como o modelo original desse paletó, que não engole ele, porque o número de Tchekhov é maior. Mas continuemos, vejamos:

“[…] Aliás, (o à–vontade da resenha ao falar do coleguinha russo é uma graça) não há um desfecho que seja em Tchekov, pois suas histórias acabam como tinham começado, no eterno retorno da mesma desolação e banalidade […]”.

É uma desgraça, é uma lástima, que resenhas sobre livros de escritores clássicos, fundamentais, do nível de Tchekhov, não sejam feitas por escritores, vale dizer, não sejam feitas por quem é do ramo. Evitar-se-iam desastres do tipo da resenha que estamos comentando. Chega a ser uma covardia apontar falhas, erros e ignorâncias, ignorâncias básicas, como as do pequeno trecho apontado. Se não nos furtamos é porque, sem abrir mão da covardia, não podemos deixar que prosperem erros que pela força do veículo terminam por se tornar uma norma de leitura do russo, que, saibam por favor, não merece tão burro tratamento. Se não, vejam:

Hemingway, num conselho de cozinha literária, observava que o escritor deve saber mais do que aflora à superfície da página, que o processo da realização literária deveria ser como um iceberg, cuja ponta é o que se lê, mas que está sobre sólida e volumosa base assentada, ou flutuada, para ser mais próprio. Assim também deveria ser o crítico de arte, o crítico de um livro, acrescentamos. Ora, se a autora do artigo conhecesse um pouco mais Tchekhov, não escreveria a bobagem (bobagem, gentil palavra eufemística) de que seus contos fazem o eterno retorno à mesma desolação e banalidade do começo. Convenhamos, e isso é elementar: o personagem que não resolveu o problema em que estava do começo de um conto não é a mesma pessoa, ao fim, do começo. Se tal paralisia se desse, o conto não estaria realizado. Mais: a própria compreensão que os de fora, nós, os leitores, guardamos do seu problema não é a mesma do começo, do que, do quando éramos antes da sua leitura. E essa luz, que ganhamos, importa mais que o pobre-diabo sair a contento dos impasses em que vive. Ora, e isto mais uma vez é o elementar dos elementares, nós próprios, em nossa vida, não somos os mesmos desde que nos debatemos com os nossos grandes e miseráveis problemas. Se um autor nos diz isto, queremos dizer, se um autor realiza num destino, em atos e narrações esse problema….. é claro, esse autor subiu para o céu, ainda que seu narrado tenha descido ao inferno. Se as situações são corriqueiras (mas em que mundo mesmo esses pobres–diabos vivem?), se as tragédias vêm numa sucessão sem rumo, caímos de novo no elementar: perguntamos: dois contos são iguais porque têm o mesmo enredo? Dois contos de Maria e José, em que José matou Maria por ciúme, dois contos que se referem à mesma notícia de jornal, são iguais pelo entrecho e referência? Poupemo-nos de bater nas costas do bêbado que desce a ladeira. Por favor.

Mas grande e saborosa é a covardia. Continuemos, portanto. O que embatuca as pessoas, os leitores convencionais, desde que Tchekhov é Tchekhov, mas não Tchekov, é que seus finais não resolvem, não desamarram o nó, não respondem à situação em que se meteram e vivem seus personagens. Vejam, ou melhor, Veja: a coisa não é nem que seus contos não tenham uma chave de ouro, um grande final. Não precisamos caluniar para crescer no discurso, a verdade já é uma poderosa e exibidora fonte do ridículo.

Veja: isto, essa ausência, esse aparente retorno, essa frustração de esperança, antes de ser uma decorrência de um estilo, de um modo de ser do escritor, era, segundo palavras do próprio:

“[…] Começo um conto no dia 10 de setembro, sabendo que terei que terminá–lo até o dia 5 de outubro, prazo máximo; se não o cumprir, além de ser tachado de irresponsável, acabarei ficando sem o dinheiro… É por isso que os meus inícios sempre prometem, como se estivesse começando um romance, o meio sai espremido, tímido, e o final, como num conto breve, é uma espécie de fogo de artifício […]”. (Carta a Suvorin, de 1888)

É possível, claro, que essa “carência”, como ocorre em toda criação, tenha se tornado uma ferramenta para o criador, que a usou em benefício da sua invenção. Ou melhor, que fez da sua própria falta um invento. (E haveria mesmo invenção que não respondesse a uma carência, a uma falta que desconforta?) É possível. Mas a isso, a essa carência na gênese, o autor dá uma dimensão que é uma aula de arte. Veja-se:

“[…] Em conversas com meus confrades escritores, insisto sempre no fato de que não cabe ao artista resolver questões estritamente especializadas. Não é bom o escritor tratar daquilo que ele não entende. […] Que sua esfera não comporta questões, mas apenas respostas, só pode ser dito por quem nunca escreveu e nunca lidou com imagens. O artista observa, escolhe, adivinha, compõe – só essas operações já pressupõem, em sua origem, um problema; se o problema não foi colocado desde o princípio, não há o que adivinhar nem o que escolher. […] Ao exigir do artista uma atitude consciente para com o seu trabalho, você está certo, mas está misturando dois conceitos: a solução do problema e a colocação correta do problema. [Destaques de Tchekhov] Só o segundo é obrigação do artista. […]”. (Da mesma Carta a Suvorin, de 1888)

É claro, sabemos, que tais citações não cabem numa resenha da revista de fim de semana, que comportam mais uma pose (“o mundo não tem solução”), uma atitude (“o mundo não tem solução, e por isso…”), e um estilo (“crianças, já vi tudo, portanto…”), do que um conhecimento pacientemente adquirido e ponderado. É claro. Mas gostaríamos de ter pelo menos informações mais confiáveis. Por exemplo, é absolutamente “a ignorância como ela é” a informação de que Tchekhov antes de se tornar escritor já era médico. Para não cair na lição número 1 da compreensão do fenômeno humano, aquela que nos ensina, “atenção, redatores, ninguém se torna escritor após o curso de medicina”, preferimos o factual: atenção, resenhadores, as biografias disponíveis de Tchekhov afirmam que ele escrevia e publicava bem antes de iniciar o curso de medicina. Inclusive nas do gênero A Vida como ela é.

A covardia já vai longe. Resta–nos só lembrar o último tropeço: onde se lê, na Veja, que Tchekhov “destila impessoalidade e resignação, frieza e compaixão – excepcionais ferramentas para descrever a vida ela é”, leia–se por favor o que o próprio contista escreveu sobre a sua resignação, impessoalidade e frieza:

“Escreva um conto sobre um jovem, filho de servo […] que foi educado para respeitar a hierarquia funcional, para beijar a mão dos popes e para curvar–se às ideias alheias, que agradecia cada pedaço de pão, que foi açoitado muitas vezes, que ia às aulas sem galochas… que gostava de almoçar na casa dos parentes ricos […] – escreva como esse jovem espreme, gota a gota, o escravo que tem dentro de si, e como ele, ao acordar numa bela manhã, sente que em suas veias já não corre o sangue de um servo, mas o de um verdadeiro homem. […]”.

É com esse gênero de resignação que nosso bravo, ilustre e humaníssimo Tcheckov sobreviveu em seus dias e sobrevive aos nossos e nos nossos: contra a vida como ela é, aquela mesma que fazia o filho de um servo sorrir às pancadas e agradecê–las, até o dia em que sentiu correr em suas veias um melhor sangue.

Assim foi o artigo, que reproduzi acima. Mas para terminar, deixo com vocês a mais que saborosa lembrança de Tchekhov, nas linhas de Máximo Górki no livro Três Russos. Copio:

“Um dia, Tchekhov recebeu a visita de três senhoras suntuosamente vestidas. Depois de terem enchido a sala com o ruído de suas saias de seda e com o odor de perfumes capitosos, sentaram–se com cerimônia em frente ao dono da casa, e, afetando grande interesse por assuntos políticos, passaram a fazer ‘perguntas inteligentes’:

– Antonio Pavlovitch! Por qual modo terminará a guerra?

Antonio Pavlovitch tossiu ligeiramente, refletiu e respondeu com doçura, em um tom sério e afável:

– Provavelmente pela paz …

– Naturalmente!… Mas quem será o vencedor? Os gregos ou os turcos?

– Parece–me que serão vencedores os mais fortes.

– E na sua opinião, quais são os mais fortes? – perguntavam com insistência as senhoras.

– Os mais bem nutridos e os mais instruídos.

– Oh, como é espirituoso! – exclamou uma das visitantes.

– E de quem gosta mais, dos gregos ou dos turcos? – perguntou uma das outras senhoras.

Antonio Pavlovitch mirou-a gentilmente e respondeu com um amável e doce sorriso:

– Gosto de torta de frutas … a senhora gosta?

– Muito! – exclamou vivamente a dama.

– Vem um perfume tão bom dessas tortas! – confirmou enfaticamente uma outra das visitantes.

E todas três se puseram a falar com animação, dando provas, nessa questão de torta de frutas, de uma admirável erudição e de um perfeito conhecimento do assunto. Estavam evidentemente encantadas por não terem mais de puxar pela inteligência e de fingir interesse por turcos e gregos, nos quais, até antes do encontro com Tchekhov, sem dúvida nunca haviam pensado. 

E ao partirem, prometeram com alegria a Antonio Pavlovitch:

– Nós lhe mandaremos uma torta de frutas.

– Linda conversação!.. – disse eu, quando partiram.

Antonio Pavlovitch riu docemente e acrescentou:

– É necessário que cada um fale a sua língua…”.

Mas que lição, meus amigos. Que cada um de nós fale a própria língua. Vou ali, já volto.

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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, e do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

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