Insubmissas
Por Izaías Almada.
O incansável e sofrido desejo humano de explicar a sua origem e o sentido da vida tem permeado os dramas da humanidade desde que aprendemos a usar a fala, a escrita e assim expressar nossos pensamentos, nossos sentimentos. O teatro é testemunha visceral desse desejo.
Duas sendas, dois caminhos, se colocaram nessa perspectiva, sem que um deles interfira necessariamente no outro, muito embora divergentes e até antagônicos, dependendo das circunstancias e do momento histórico vivido: a ciência e a religião.
A ciência, transformando-se em expectativas de vida, de progresso e domínio sobre a natureza. A religião, na tentativa de encontrar um ser superior, supostamente criador do universo e a necessidade de superar a solidão e o medo da morte.
Daquilo que nos é dado a conhecer, ambas, ciência e religião, cumprem cada uma à sua maneira o difícil papel de minorar o sofrimento diante do trabalho, entendido aqui como razão de sobrevivência e convívio, nem sempre harmonioso, entre os seres humanos. O esforço para dominar a natureza, bem como a superação do medo ao desconhecido. E, sobretudo, o direito à liberdade, à igualdade e à fraternidade.
Essa jornada de vários milênios vem sendo vencida e trilhada por duas figurinhas muito especiais: a mulher e o homem, o macho e a fêmea que, entre outros atributos têm o papel primordial de dar sequencia à própria espécie.
Vivendo à mercê de sociedades que se organizaram sempre em função de um poder temporal ou espiritual, que muitas vezes se confundem; disputando espaços e riquezas na tentativa de imporem hábitos e costumes uns aos outros, homens e mulheres foram definindo papéis sociais cujo avanço da própria ciência e das mudanças religiosas através dos séculos os colocou quase que em antagonismo permanente.
E é disso que fala o espetáculo teatral ‘Insubmissas’, apresentado no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, cuja temporada se estende até o mês de março. O texto de Oswaldo Mendes integra a já vitoriosa carreira do grupo Arte e Ciência no Palco, que nos deu espetáculos como Copenhagen, Einstein, Quebrando Códigos, entre outros, todos eles à procura de estabelecer um diálogo de singular humanismo entre homens e mulheres que dedicaram sua vida à ciência e as vicissitudes a que se submeteram nas descobertas e inventos que mudaram, invariavelmente, a história da humanidade.
Quando li sobre o tema da peça, uma das primeiras tentativas de puxar pela memória sobre o nome de mulheres que se destacaram nas ciências apenas um me veio à lembrança: Madame Curie. Pois estava aí a idéia central do texto e que se explicaria, parcialmente a meu ver, pelo fato da mulher se tornar “independente” somente no decorrer do século XX. Até então, figura definida e estigmatizada socialmente – na melhor das hipóteses – como mãe e dona de casa a cuidar da prole. Ou prendas do lar, consoante o nível de cinismo em jogo.
Mulheres cientistas, então? Não, mulheres e cientistas.
Segundo o físico inglês Stephen Hawking, o grande desafio da ciência no atual estágio civilizatório é encurtar a distância entre o homem das cavernas e o homem contemporâneo que, embora usufruindo de grande conhecimento e de benefícios jamais vistos na história da humanidade, ainda se comporta no dia a dia como seus milenares e ancestrais homólogos.
Prostradas e inseridas num cenário original onde se destacam pequenas pedras sustentadas por cordas, quatro mulheres jazem no palco e são despertadas e desafiadas por uma voz masculina. São convidadas a se darem a conhecer e resolver entre si questões como a discussão do papel feminino dentro de uma sociedade patriarcal e machista. E, sobretudo, falar de suas conquistas profissionais, de suas dúvidas e incertezas, de seus amores.
Essas mulheres são: Hipátia de Alexandria, Marie Curie, Rosalind Franklin e Bertha Lutz que, segundo o autor “sintetizam as trajetórias de inúmeras outras cientistas, como Lise Meitner (física austríaca) e Agnódice (médica na Grécia) citadas na peça, para lembrar que a insubmissão, em maior ou menor intensidade, é tão antiga quanto a submissão imposta pelo que a socióloga brasileira Heleieth Safioti chamou de o poder do macho”.
Um espetáculo denso, como não poderia deixar de ser, e também poético, uma vez que percorre com sensibilidade o árduo e difícil caminho da desmistificação profissional e da crítica ao preconceito contras as mulheres. Ou, se quisermos, a tantos outros preconceitos.
Já numa das primeiras falas, Mme. Curie constata que “sobreviver em um ambiente hostil masculino não foi fácil para nenhuma de nós”. E ainda não o é, querida senhora, quase um século depois.
Apesar dos inúmeros progressos conquistados, a quantidade de mulheres segregadas ainda é imensa pelo mundo, onde o preconceito, o cinismo e a hipocrisia continuam sendo as cartas da vez. Desde a antiguidade clássica à Europa da Primeira Guerra Mundial, do Brasil de Adolfo Lutz à traição de três homens que receberam o premio Nobel em 1962 sem sequer citarem, covarde e preconceituosamente, o nome de uma mulher que os possibilitou chegar ao premio.
O teatro continua sendo aquela arte que coloca os homens frente a frente, simbiose entre o palco (ou a arena) e a platéia, arte de reflexão, de sentimentos intensos, de estranhamento, de transformação social. E ‘Insubmissas’ mostra isso com maestria.
Ao mesmo tempo em que ficamos conhecendo um pouquinho de cada uma daquelas mulheres, do que produziram como cientistas e seres humanos, vamos nos mergulhando numa espécie de reflexão cheia de sentimentos contraditórios, mas que nos indicam muito bem o caminho do quanto, por vezes, não medimos o tamanho dos nossos preconceitos. Ou, pior ainda, das nossas “certezas”.
Nessa altura, a desafiante voz masculina do início ganha então, surpreendendo o público, uma aliada como personagem: uma quinta mulher em cena. Trata-se de Irène Juliot-Curie, filha de Marie e Pierre Curie, também cientista. Ela receberia o premio Nobel de Química em 1935, um ano após a morte de sua mãe.
Mais do que a ciência, no entanto, a presença de Irène banha a cena com os cuidados, as preocupações e mesmo ciúmes do amor filial, aflita em desfazer boatos sobre um caso amoroso de sua mãe com Paul Lanvegin, discípulo de Pierre Curie seu pai. Não pelo caso em si ou pelas fofocas produzidas na imprensa e na Academia de Ciências da França na época, mas o episódio acaba por denunciar um dos maiores preconceitos das sociedades machistas contra as mulheres, aquele que as tornam devassas ou mesmo putas quando rompem com “os sagrados laços do matrimônio”, enquanto aos homens tudo era e ainda é permitido. Poderíamos pensar o cinismo como uma patologia?
A estrutura dramatúrgica do texto e sua direção cênica possibilitam às atrizes Selma Luchesi (Marie Curie), Monika Plöger (Rosalind Franklin), Adriana Dham (Bertha Lutz), Vera Kowalska (Hipácia de Alexandria) e Letícia Olivares (Irène Juliot-Curie) cinco belíssimos momentos de desnudamento interior de suas personagens ao confrontarem-se não só entre si, mas, sobretudo, com a realidade em que viveram.
Cada uma dessas mulheres dignificou à sua maneira a condição feminina, rompendo preconceitos e barreiras que as tornaram marcos na ciência, na política, na luta emancipatória das mulheres através dos séculos. Assim como as atrizes dignificam a cada uma das personagens nessa trajetória e nessa atividade que corre sobre o fio da navalha: a arte da representação.
Carlos Palma, responsável pela direção e pelo cenário da peça, faz exatamente aquilo que faz um bom encenador: deixa o texto de Oswaldo Mendes fluir, com suas informações e emoções, sem buscar suportes ou aplicativos (para usar um jargão da moda) que o tornem mais “teatral”. Não precisa, pois a matemática é muito simples: mulheres que são cientistas, que são discriminadas, injustiçadas, mas que também são vitoriosas, exemplos de luta e coragem, símbolos.
Isso é teatro, aquele ao qual aprendemos a amar desde os trágicos gregos e que nos identifica com a mais antiga forma de representação humana: a arte de contar histórias. Há que saber contá-las, é verdade. ‘Insubmissas’ deixa isso bem claro.
Quem não gostar, que atire a primeira pedra. Elas estão bem ali espalhadas pelo chão, dividindo e unindo atores e público e a lembrar que uma das primeiras mulheres da ciência morreu apedrejada pelos cristãos: Hipátia de Alexandria. Ciência e religião.
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Para aprofundar a reflexão sobre a luta pela emancipação das mulheres recomendamos a leitura de Feminismo e política: uma introdução, de Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel, um panorama histórico e acessível do impacto do feminismo na teoria política, que destrincha os principais debates ainda em voga de forma didática, sem perder o rigor analítico e político. (Leia aqui a orelha do livro, de Renata Gonçalves)
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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Isaías
Orei assistir Insubmissas hoje e gostei demais de ler sua crítica. Como vc escreve bem! Escreve lindamente com tanta poesia!
Parabéns!!! Vou procurar seus livros para poder conhecer sua outra face.
Eunice
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Izaias
desculpe-me, escrevi errado o seu nome.
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