Dilma e a vaca profanada
“Dona das divinas tetas
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas”
(Vaca Profana, Caetano Veloso)
“Não mexo em direitos dos trabalhadores nem que a vaca tussa”
(Dilma Rousseff em campanha à reeleição)
INTRODUÇÃO
Pretendemos, aqui, realizar um breve estudo sobre as reformas da previdência realizadas pelos sucessivos governos a partir da gestão do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Para a realização desta análise utilizaremos pressupostos marxistas, conforme se verá no momento oportuno.
Sustentamos que, desde meados dos anos 90, a previdência social brasileira tem passado por sucessivas reformas pontuais, supressivas dos direitos de seus segurados, culminando com a última grande reforma promovida pelo Governo Dilma Rousseff1. Assim, é impreciso dizer reforma da previdência, como se ela se realizasse em um único ato, com a atuação apenas do poder constituinte. Seja por uma sucessão de emendas constitucionais ou de atos infraconstitucionais, a previdência brasileira vem sendo, nos últimos vinte anos – portanto, nos governos Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma –reformada de forma intensa, com prejuízos incomensuráveis para a maior parte da população pobre.2 Aliás, embora sem atentar para uma análise marxista do fenômeno, já observávamos tal prática, ainda em seu estágio inicial, na nossa tese de livre-docência, publicada pela Editora LTr em 2002, sob o título Teoria e prática do poder de ação na defesa dos direitos sociais.
Não raro, ouvimos que a reforma é fato indispensável por conta do envelhecimento da população. Assim, os anos dourados de captação de recurso seriam substituídos pelos anos nefastos da necessidade de pagamento de valores previdenciários. Se a questão fosse tão simples assim, não haveria qualquer dificuldade de responder que, ainda captando recursos da população que trabalha, necessariamente a conclusão seria de que a previdência brasileira, neste instante, se encontraria inexoravelmente superavitária. No entanto, não é o que dizem alguns “analistas” que já consideram a previdência brasileira deficitária. Foge à lógica tal resposta, já que é delineado um quadro catastrófico para o presente e, sem razões suficientes, tenta-se conceber uma lógica permeada pelo terror para o futuro, em que a população estará envelhecida. No entanto, poderiam responder, não é apenas o fato de haver muito ingresso, em dado momento, que determina o superávit. Diriam que os generosos valores pagos pela previdência poderiam ser o indicativo da razão do déficit. Não obstante, ao nos depararmos com o fato de que o valor médio do benefício da previdência social não chega sequer a um salário-mínimo e meio, pode-se constatar a falácia desta assertiva. Elevado ingresso proveniente dos trabalhadores e baixo valor dos benefícios, certamente, não correspondem a uma possibilidade de déficit. Apenas um dado poderia corroborar a diminuição de ingressos na previdência social brasileira: as várias desonerações concedidas a setores diversos e incidentes sobre a folha salarial. Segundo dados oficiais, somente em parte do ano passado foram despendidos mais de 3,7 bilhões de Reais com as desonerações, conforme dados oficiais referentes a período de 20133. No entanto, a política de desoneração, pouco criticada por estes “estudiosos” que defendem a existência de déficit, tem papel de destaque, quando se tenta entender o papel assumido, no modelo político/econômico brasileiro, pelo sistema previdenciário.
Embora tenhamos dito que, sem razão, cria-se uma situação de alarmismo quanto ao destino futuro da previdência social, isto não é bem assim. Na perspectiva da leitura de luta de classes, é frequente, na lógica burguesa, buscar a ruptura dos interesses e evitar as convergências da classe trabalhadora. O trabalhador de hoje, com medo de que não haverá dinheiro para sustentar os seus benefícios previdenciários no futuro, passa a ser um dos mais contundentes defensores da redução dos direitos dos trabalhadores que já se encontram na inatividade. Não percebe, no entanto, que o trabalhador inativo foi alguém que já esteve sujeito à contribuição e não ganha, em geral, pouco mais do que um salário-mínimo, o que certamente ocorrerá com o futuro trabalhador inativo – que, hoje na atividade, é aquele que defende as reformas para que se tenha dinheiro para a sua previdência no futuro. Assim, por mais que se apresentem contas em sentido contrário ao déficit previdenciário, o trabalhador na atividade está rendido ao fetiche da mercadoria, e terá dificuldades de perceber, individualmente, que tomou a aparência pelo real. Somente a retomada da perspectiva de classe será suficiente para que se possa ultrapassar a limitação que é imposta ideologicamente ao trabalhador na ativa4.
Frisamos, por fim, que, aqui, não abordaremos a questão da previdência dos servidores públicos, mas apenas a do setor privado – que, segundo dados destacados pelos arautos da catástrofe, corresponde a um déficit de cerca de mais de 20 bilhões de Reais no primeiro semestre de 2014. No entanto, assistindo à sucessiva investida contra a previdência pública brasileira, continuamos a frisar que não há razões para a crença em tal déficit. O ingresso é grande neste momento, ninguém pode negar. A saída é pequena, também ninguém pode negar. Além disto, outros indícios, que serão apontados abaixo, nos levam a esta assertiva. Não obstante, o discurso do déficit, como dito, tem papel importante para a cisão da classe trabalhadora, e jamais será abandonado, em especial pelo próprio estado, enquanto persistir a lógica de acumulação do capital.
Para ultrapassar algumas dificuldades decorrentes da relação aparência/essência promovida pelo fetiche da mercadoria, buscaremos fazer uma análise crítica imanente do fenômeno. Por crítica imanente, entende-se aquela que opera a partir do materialismo histórico-dialético5, focando-se essencialmente na análise marxista da teoria do valor.
É claro que não se pretende esgotar a crítica imanente, em vista mesmo das limitações do artigo. No entanto, deixaremos consignadas aqui algumas provocações que, talvez, possam ser desenvolvidas de forma mais acurada no futuro, por quem tiver interesse na tarefa.
SOBRE A CRÍTICA IMANENTE
Para a realização da crítica imanente, dois aspectos preliminares se acentuam: a) a utilização do materialismo histórico-dialético (aqui sugerimos leituras como, por exemplo, o Anti-Düring e Luwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, ambos de autoria de Engels, além de trechos das obras Contribuição à crítica da economia política ou os Grundrisse de Marx, além da própria leitura d´O capital); b) a análise crítica da teoria do valor-trabalho em seus mais variados aspectos (veja-se que, ainda aqui, para a realização desta crítica, é indispensável que a noção de mais-valia se realize com a utilização do método, o materialismo-histórico dialético).
Por fim, se não é possível, a priori, dizer exatamente os resultados quando se realiza a crítica imanente, é viável perceber o que se evita com a sua utilização: a) evita-se o individualismo metodológico – a solução individualizante na compreensão dos fatos postos em observação, em especial a título de se realizar ciência. Isso aparece, em Marx, com frequência, com o nome de “robinsonada” (em referência ao solitário Robinson Crusoé na ilha em que se perdeu, na medida em que as soluções pensadas se dariam na perspectiva de indivíduos isolados); b) evita-se a abstração utópica – ou seja, soluções que remontam a um vazio terminológico e de ação e que, no fundo, nada expressam e não se embasam necessariamente no real. Na verdade, aqui, partimos da distinção entre socialistas utópicos e socialistas científicos, para perceber que a elaboração científica da crítica imanente requer uma construção materialista histórico-dialética a partir da teoria do mais-valor, com o que não haverá espaços para elucubrações que constituam idealizações. Assim, por exemplo, são evitadas determinações muito abertas, resolvendo-se tudo a partir apenas de expressões como “o capitalismo é ruim e o socialismo é bom” – as determinações precisam ser mais “fechadas” e baseadas em fatos históricos e na sua dialética constante.
SOBRE O ESTADO A PARTIR DA CRÍTICA IMANENTE6
Em qualquer análise envolvendo a previdência social, é indispensável que compreendamos o papel do estado na produção do chamado “bem comum”. São corriqueiras decisões judiciais, principalmente do Supremo Tribunal Federal, possibilitando a imediata e total mudança das regras do jogo em matéria previdenciária, sob o fundamento de que a relação é de natureza institucional. O Estado, atuando em nome do interesse comum, alegam tais julgados, poderia, a qualquer instante e para evitar a falência do sistema previdenciário, promover modificações nas disposições sobre o tema, em especial nos casos em que promovem diminuição dos direitos dos segurados. Nestas hipóteses, sequer haveria direito adquirido dos segurados, que vêm sua condição emergir para uma imediata piora de suas condições de vida. Tudo em nome do bem comum!
Como se pretende demonstrar, esta visão dita institucionalista pelos Tribunais, e que permeou todas as reformas da previdência social nos últimos vinte anos, é insuficiente, especialmente se posta à luz de premissas marxistas de análise.
A primeira vez em que o estado emerge em O capital de Marx já se faz evidenciar a sua relação intrínseca com a lógica de acumulação, pela extração de mais-valor, típica do capitalismo. Já a partir deste instante, Marx deixa claro que, sendo o dinheiro o equivalente universal, é importante que tenha garantias de sua existência e de sua circulação, fazendo-se indispensável um agente que as promova. Sem produção e circulação de mercadorias, não há capital. Sem a garantia de que estas se consolidarão no processo diário de troca, a partir do equivalente universal (dinheiro), também não se pode falar em capital. Sem um agente garantidor de tal produção e circulação, o estado, não há capitalismo.
No entanto, para melhor compreender o estado e o seu comprometimento intrínseco com o processo do capital, é indispensável que se entenda como, na teoria marxista, se concretiza a lógica desse modo de produção.
Seria muito simples reduzir o estado a uma realidade que somente se concretizou com o advento da sociedade capitalista. No entanto, assim como o direito, o estado, embora forma concretizada na sua mais completa plenitude apenas no capitalismo, tem sido urdido com a própria transformação paulatina das relações de produção e a concretização plena desse modo de produção. A dialética histórico-materialista nos possibilita entender a dinamicidade do fenômeno.
Assim, por exemplo, até se chegar ao direito nos moldes atuais, há várias protoformas, que não podem ser desprezadas para a sua compreensão enquanto forma específica do capitalismo. O mesmo se dá com as formas trabalho e estado.
Nesses moldes, veja-se, por exemplo, a lenta passagem do trabalho artesanal, que caracterizava o feudalismo, para o trabalho manufaturado e, depois, para o trabalho da época industrial, com a introdução da maquinaria (O capital, Livro I, em seus capítulos X a XIII). A transformação é lenta e não se processa instantaneamente.
No caso do estado, isso também se dá. Até o advento do capitalismo, formas anteriores ao estado foram importantes, como se percebe, ainda que de forma indireta, do capítulo 24 do Livro I d´O capital, em que se descreve “A assim chamada acumulação primitiva”.
No entanto, não dissentimos da conclusão segundo a qual, em sua expressão mais evoluída, o estado é forma específica do capitalismo. Não obstante, sendo forma histórica, com a superação do capitalismo, o estado também será superado. Este o elemento dialético, que não permite ver a leitura que fazemos como estática, já que há é mediada por elementos históricos, que se transformam constantemente.
Somente esta constatação faz possível a compreensão da captura da produção do bem comum pela racionalidade do capital. Ou melhor, no capitalismo, processa-se à mágica que faz com vejamos o estado como a única maneira de expressão da satisfação dos interesses coletivos e, mais, como uma expressão eterna desses interesses (e não se perceba, por exemplo, no caso previdenciário, a ruptura na classe trabalhadora provocada pela ideia de direitos dos que se encontram na atividade e dos que se encontram na inatividade. Os que estão na atividade passam a defender o fim dos direitos dos que se encontram na inatividade, na crença, difundida a partir do próprio estado, de que, se não for assim, não haverá, no futuro, possibilidade de que gozem de seus direitos previdenciários). Trata-se do que, em Marx, aparece sob o nome de fetiche da mercadoria (item 4 do capítulo I do Livro I d´O capital). Para entendermos tal proposição, é necessário que lembremos a mudança processada e a transformação do modo de produção para caracterizá-lo como capitalista.
Começamos com o próprio Marx, segundo o qual […] toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das coisas […]”7. (O capital, Livro III)
Esta ilação é importante, na medida em que: a riqueza do capitalismo se apresenta (isto é, apenas aparece) como uma enorme coleção de mercadorias. No entanto, atrás desta aparência, há a essência: a riqueza do capitalismo não se expressa nesses moldes (mas sim pelo valor trabalho). No entanto, é importante que as pessoas não notem que o valor trabalho é que compõe a riqueza do capitalismo. É indispensável ainda que elas não se apresentem como ilusão (aparência) de que a opulência do capital é proveniente das mercadorias. Este caráter ilusório não é percebido pelos clássicos da economia política, que, embora partam do valor trabalho para a construção de suas teorias (ainda que com algumas diferenças fundamentais que não poderemos identificar neste trabalho), mesmo antes de Marx, não operam com tal categoria a partir da relação entre essência e aparência – e mais ainda não se preocupam com o caráter fetichista da mercadoria. Veja-se que esta relação não nos dá espaço para idealizações, para processos não mediados pela história.
Além disso, para a lógica do capital, é importante que a mercadoria individual se apresente como a sua forma elementar. No entanto, a forma elementar da sociedade capitalista não se compõe da mercadoria individual, mas da sua consideração como um fenômeno social que tem na sua coletivização (ou melhor, na sua difusão) a mais adequada maneira de se entender o fenômeno do capitalismo.
Esse jogo de essência e aparência oculta a relação entre o valor de uso e o seu valor de troca da mercadoria e irá desembocar, no fim do capítulo I do Livro I d’O capital, no que Marx chamou do “caráter fetichista da mercadoria”. Trata-se de conceito chave para a construção do pensamento marxista ou, como lembra David Harvey, em Para entender O capital, Livro I:
“No restante d´O capital, como veremos, o conceito de fetichismo aparece várias vezes (em geral, mais implícita do que explicitamente) como ferramenta essencial para desvendar os mistérios da economia política capitalista. Por essa razão, considero o conceito de fetichismo fundamental tanto para a economia política como para o argumento de Marx em seu conjunto”8.
Na dialética entre valor de uso e valor de troca, Marx constrói o seu método próprio, embora não desprezando a dialética hegeliana, e desvenda o primeiro grande mistério do capital: a mercadoria não é a fonte da riqueza do capital, que busca esconder o lugar de onde ela realmente é proveniente, isto é, da exploração do trabalho assalariado. O capital não se explica pela mercadoria particular, mas pelo conjunto de mercadorias. Não se explica essencialmente pelo trabalho concreto, mas por sua passagem para o trabalho abstrato.
Isto tudo somente ficará claro da relação estabelecida na dualidade entre valor de uso e valor de troca. Esta dualidade que se comunica como duas janelas. Marx passa de uma janela para outra e vai estabelecendo a relação dialética, na perspectiva não das ideias, mas no plano dos fatos sociais, como indispensável para a construção de seu pensamento.
Portanto, há que se entender que: a) o capital é um processo em que o capitalista busca a acumulação, em seu poder, de dinheiro, b) para processar a esta acumulação, é indispensável a captação do mais-valor (realização da mais-valia).
Verifique-se que a obra O capital pretende apenas explicar como se processa o capitalismo, sendo um texto de constatação científica deste processo. Marx constata como se dá a concepção do valor de uso e de troca na lógica do capital, bem como a importância da acumulação do dinheiro e da extração da mais-valia para o modo de produção capitalista. Ele não cria as relações de produção e nem indica a dinâmica das forças produtivas: elas simplesmente são constatadas por Marx a partir da movimentação do capital. Não há como se atribuir a O capital as mazelas do capitalismo, que ali estão apenas dissecadas.
Constate-se ainda que, no Livro I, dinheiro e circulação de mercadorias estão ordenadas apenas para indicar como se dá o processo de produção do capital. O processo específico de circulação de mercadorias, depois de explicado como se produz o capital, é objeto de apreciação do livro II d´O capital (“O processo de circulação de mercadoria”, em que se analisa coisas como os ciclos desta circulação e as rotações das mesmas, por exemplo). Por fim, no livro III, já sabedor de como se processa a formação do capital e como se dá, no seu interior, a circulação de mercadorias, Marx se dedicou a entender de forma global o já explicado na sua gênese: o processo global de produção de mercadorias, discorrendo sobre temas como a forma pela qual se processa a acumulação capitalista pela mais-valia no capital comercial ou financeiro, por exemplo, ou a análise de fenômenos como o da concorrência.
Em uma apertada síntese: Marx pretende demonstrar no Livro I que, para que a acumulação capitalista se processe, não basta a circulação simples (Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria – M-D-M), sendo que o ambiente ideal para tal concentração é a passagem para a circulação complexa, em que o dinheiro tem fundamental papel: onde Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro – D-M-D – passa para Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro acrescido de algum valor – D-M-D’.
Perceba-se que Marx não está aqui se ocupando especificamente do processo de circulação de mercadoria, o que fará no Livro II d´ O capital, mas de como tal circulação realiza a produção do capital. Logo, circulação e produção, neste compasso, são faces de uma mesma moeda, sendo que uma surge da outra e a outra depende da primeira. É um desdobramento hegeliano que, para dar certo, observado método próprio de Marx, tem que ser analisado no processo material e histórico.
Ainda em apertada síntese. Não bastaria, para que se produzisse o capital, que a mercadoria fosse trocada por dinheiro e, depois, trocada novamente por mercadoria (M-D-M). Trata-se de uma troca rudimentar de mercadorias, que faria com que a lógica de equivalentes fosse preservada, e não haveria qualquer acumulação típica do capitalismo. Necessário se faz que o dinheiro se universalize como mercadoria, como equivalente universal e, depois, alguém busque a sua acumulação com a apropriação de mais-valor. Ou seja, em D-M-D, para que haja o processo de acumulação do capital, o segundo D deve vir agregado de algum valor (D’) (“O mais-valor é, no fundo, valor para além do equivalente”)9. E esse valor agregado não pode ser algo contingencial, mas deve qualificar o capital. Caso contrário, aqui, estaríamos numa troca de equivalentes e ninguém teria vantagens (“O equivalente, segundo sua determinação, é somente a identidade do valor consigo mesmo. O mais-valor como consequente jamais pode brotar do equivalente; portanto, tampouco pode brotar originariamente da circulação; tem de brotar do próprio processo de produção do capital”)10.
Para que alguém tenha vantagens e acumule dinheiro, é necessário que descubra aquela mercadoria que é a formadora de todos os demais valores. Ora, se a equivalência é tratada a partir de trabalho abstrato necessário para a concepção de mercadorias, o único valor capaz de gerar valor é a força de trabalho. Logo, somente se apropriando dela, alguém consegue alcançar o D’:
“A coisa também pode ser expressa da seguinte maneira: se o trabalhador precisa de somente meia jornada para viver uma jornada inteira, então só precisa trabalhar meia jornada para perpetuar sua existência como trabalhador. A segunda metade da jornada de trabalho é trabalho forçado, trabalho excedente. O que aparece do ponto de vista do capital como mais-valor, aparece do ponto de vista do trabalhador exatamente como mais-trabalho acima de sua necessidade imediata para a conservação de sua vitalidade. O grande papel histórico do capital é criar esse trabalho excedente, trabalho supérfluo do ponto de vista do simples valor-de-uso […]”11.
Não basta apenas aumentar o preço da mercadoria para se ter D’, já que qualquer um poderia fazê-lo e, no final, o sistema se constituiria apenas de um grande jogo com jogadores mais ou menos habilidosos. Este fato, que não deixa de existir no capitalismo, não é o fundamento das vantagens obtidas pelo capitalista – já que, no grande jogo das vantagens recíprocas, alguém perderia aqui, mas ganharia ali. O que fundamenta a acumulação do capitalista é o acúmulo de dinheiro pela extração da mais-valia (D’):
“[…] o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, que o capital incita continuamente em sua ilimitada mania de enriquecimento e nas condições em que exclusivamente ele pode realizá-lo, avançou a tal ponto que a posse e a conservação da riqueza universal, por um lado, só requer um tempo de trabalho de toda a sociedade e, por outro lado, a sociedade que trabalha se comporta cientificamente com o processo de sua reprodução em uma abundância constantemente maior; que deixou de existir, por conseguinte, o trabalho no qual o ser humano faz o que pode deixar as coisas fazerem por ele. Consequentemente, capital e trabalho comportam-se aqui como dinheiro e mercadoria; o primeiro é a forma universal de riqueza, e a segunda é só a substância que visa o consumo imediato […] Por isso o capital é produtivo, i.e., uma relação essencial para o desenvolvimento das forças produtivas sociais. Só deixa de sê-lo quando o desenvolvimento dessas forças produtivas encontra um limite no próprio capital”12.
Para isso, é importante que a força de trabalho se apresente como uma mercadoria como outra qualquer. Daí a relevância de que o trabalhador seja tido como livre e igual, para, como proprietário, vender a única mercadoria que possui: a força de trabalho. Isso não ocorreu sempre na história da humanidade, as condições foram criadas historicamente. A passagem histórica para a abstração do trabalho foi essencial, como visto, para que o valor de troca se concretizasse e, com tudo isso, se consolidasse o fenômeno do capitalismo. De um lado o possuidor do dinheiro, com a capacidade de organizar os meios de produção, que passam a depender dele para ser ordenados – já que o dinheiro, equivalente universal e única forma nesta sociedade de se obter a propriedade dos meios de produção –, do outro, o trabalhador, que possui apenas a mercadoria força de trabalho. Ou como diz Marx:
“O antigo possuidor de dinheiro se apresenta agora como capitalista, e o possuidor de força de trabalho, como trabalhador. O primeiro, com um ar de importância, confiante e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe a sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da […] despela”13.
De tudo isso se depreende o conceito de capital: “Até aqui o capital foi considerado, de acordo com seu aspecto material, como processo de produção simples. Mas tal processo, sob o aspecto da determinabilidade formal, é processo de autovalorização. A autovalorização inclui tanto a conservação do valor pressupostos quanto sua multiplicação”14 .
Quando David Harvey fala da relação D-M-D, em Para entender O capital, Livro I, ele acentua que:
“É nesse ponto d’O capital que vemos pela primeira vez a circulação de capital cristalizando-se a partir da circulação de mercadorias, mediada pelas contradições da forma-dinheiro. Há uma grande diferença entre a circulação de dinheiro como mediador da troca de mercadorias e o dinheiro usado como capital. Nem todo dinheiro é capital. Uma sociedade monetizada não é necessariamente uma sociedade capitalista. Se tudo se resolvesse pelo processo de circulação M-D-M, o dinheiro seria simples mediador e nada mais. O capital surge quando o dinheiro é posto em circulação com o intuito de conseguir mais dinheiro”15.
E, para conseguir mais dinheiro, é necessária uma forma de captação de valor que não seja equivalente ao próprio dinheiro – já que o dinheiro não é o gerador do valor, mas o trabalho. O dinheiro, na sociedade capitalista, gera riqueza, mas não valor. Para se gerar a riqueza concentradora do capital, é necessário se apoderar do valor que gera todos os valores: a força de trabalho.
A ideia do movimento, partindo da produção, baseado no mais-valor e na circulação como a sua concretização é um salto em relação aos clássicos da economia política: “Ora, essa definição do capital como processo é de extrema importância. Ela marca um distanciamento radical em relação à definição que encontramos na economia política clássica, em que o capital era tradicionalmente entendido como um estoque de recursos (máquinas, dinheiro etc), assim como em relação à definição predominante na ciência convencional, na qual o capital é visto como uma coisa, um ‘fator de produção’. Na prática, a ciência econômica convencional tem uma grande dificuldade de medir (valorar) o fator de produção que é capital. Assim, eles simplesmente o rotulam de K e o inserem em suas equações. Mas, na realidade, se você pergunta ‘o que é K e como obtemos uma medida dele?’, a questão está longe de ser simples. Os economistas lançam mão de todos os tipos de medidas, mas não conseguem chegar a um consenso sobre o que o capital realmente ‘é’. Ele existe, com efeito, na forma de dinheiro, mas também existe como máquinas, fábricas e meios de produção; e como atribuir um valor monetário independente aos meios de produção, independentemente do valor das mercadorias que ajudam a produzir? Como ficou evidenciado na assim chamada controvérsia sobre o capital do início dos anos 1970, toda a teoria econômica contemporânea corre o perigoso risco de estar fundada numa tautologia: o valor monetário de K na forma física de riqueza é determinado por aquilo que deveria explicar, a saber, o valor das mercadorias produzidas”16 .
Assim, “O capital é dinheiro usado de uma certa maneira. A definição de capital não pode ser divorciada da escolha de lançar o dinheiro-poder nesse modo de circulação”17. A finalidade do capitalista seria a constante produção de mais-valor e de concentrar riqueza. Aqui, deve-se desconfiar do nível de intencionalidade do capitalista, já que o processo como um todo o coloca nesta posição independentemente de uma vontade manifesta. Não se trata de mero ato individual, mesmo que comum a muitos indivíduos, de ganhar dinheiro e acumular. Trata-se de processo em que as pessoas nele se encontram para ganhar mais dinheiro, a partir da extração da mais-valia, e concentrar riquezas.
Ao analisar o mais-valor a partir das trocas de equivalentes, Marx estreita o foco para mostrar que não se pode debruçar apenas sobre as relações meramente individuais: “Os indivíduos podem ludibriar uns aos outros vendendo por um valor maior e, de fato, isso acontece o tempo todo. Mas, quando considerado de maneira sistemática, em termos sociais, o resultado é apenas roubar de Pedro para pagar Paulo. Um capitalista pode perfeitamente ludibriar o outro, mas nesse caso o ganho do primeiro é igual à perda do segundo, e nenhum mais-valor é agregado. É preciso, portanto, encontrar uma forma em que todos os capitalista ganhem mais-valor. Uma economia saudável ou de funcionamento adequado é aquela em que todos os capitalistas têm uma taxa de lucro constante e rentável”18.
Para a produção de mais-valor, “[…] o trabalhador já tem de estar privado de acesso aos meios de produção”19.
“No entanto, a força de trabalho é uma mercadoria peculiar, especial, diferente de qualquer outra. Antes de tudo, é a única mercadoria que tem capacidade de criar valor. É o tempo de trabalho incorporado nas mercadorias, e são os trabalhadores que vendem sua força de trabalho ao capitalista. Este, por sua vez, usa essa força para organizar a produção de mais-valor […] Assim, o trabalhador, lembre-se, está sempre no circuito M-D-M, ao passo que o capitalista opera no circuito D-M-D’. Há, portanto, regras diferentes para um e outro pensarem na sua respectiva posição. O trabalhador pode se contentar com a troca de equivalentes, porque o que lhe importa são valores de uso. O capitalista, por outro lado, tem de solucionar o problema da obtenção de mais-valor a partir da troca de equivalentes”20.
Assim, como lembra Marx, em O capital: “A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, a força de trabalho, são movidos apenas pelo livre-arbítrio. Eles contratam com pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de uma vantagem pessoal, de seus interesses privados. E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providência todo-astuciosa, realizam em conjunto a obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral”21.
Neste processo, entra o Estado. Há necessidade de um ente neutro que nos faça crer que a relação efetivamente se estabelece entre sujeitos livres e iguais, que atuam como proprietários, enfim um agente que processe a “obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral”. Caso contrário, o próprio capitalista teria que promover o que o capital entende por interesse geral e, com certeza, seria mais fácil duvidar de sua neutralidade, enquanto parte interessada diretamente no processo de acumulação de riquezas.
Assim, caso sejam descumpridos os preceitos de igualdade e de liberdade, é preciso que existam mecanismos jurídicos para que eles sejam restabelecidos. Neste processo jurídico, mas também social, há um produtor neutro da norma aplicável a sujeitos iguais e livres (o legislativo). Há um agente neutro (o executivo) que as coloca em andamento no nosso cotidiano. Há um último agente que, quando descumpridas as cláusulas de igualdade e liberdade, as faz cumprir ou impõe sanções pelo descumprimento (o judiciário).
A respeito do tema muito já discorreu Pasukanis: “É por isso que, em uma sociedade de proprietários de mercadorias e no interior do ato da troca, a função da coação não pode aparecer como função social, dado que ela é impessoal e abstrata. A subordinação a um homem enquanto tal, como indivíduo concreto, significa na sociedade de produção mercantil a subordinação ao arbítrio, pois isto significa a subordinação de um produtor de mercadorias a outro. Por isso a coação não pode surgir sob sua forma não mascarada, como um simples ato de oportunidade. Ela deve aparecer como uma coação proveniente de uma pessoa coletiva abstrata e que não é exercida no interesse do indivíduo do qual provém – pois cada homem é um homem egoísta na sociedade de produção mercantil-, mas no interesse de todos os membros partícipes das relações jurídicas. O poder de um homem sobre um outro homem é transposto para a realidade como o poder de uma maneira objetiva, imparcial” 22. Ou ainda, “O Estado jurídico é uma miragem, mas uma miragem muito conveniente para a burguesia, pois ela substitui a ideologia religiosa em decomposição e esconde, dos olhos da massa, a realidade da dominação burguesa. A ideologia do Estado jurídico convém mais do que a realidade religiosa, porque não reflete inteiramente a realidade objetiva, ainda que se apoie sobre ela. A autoridade como ‘vontade geral’, como ‘força do direito’, se realiza na sociedade burguesa na medida em que esta representa um mercado. Deste ponto de vista, os regulamentos baixados pela polícia podem figurar, igualmente, como encarnação da ideia kantiana de liberdade limitada pela liberdade do outro”23. E, por fim, “Os proprietários de mercadorias, livres e iguais, que se encontram no mercado, não são como na relação abstrata de apropriação e alienação. Na vida real, são vinculados por todos os tipos de relações de dependência recíproca; como, por exemplo, o pequeno comerciante e comerciante atacadista, o camponês e o proprietário fundiários, o devedor arruinado e o seu credor, o proletário e capitalista. Todas estas inúmeras relações concretas de dependência constituem o fundamento real da organização do Estado”24 .
Logo, numa perspectiva materialista histórico-dialética, “Todo aperfeiçoamento posterior do Estado burguês … pode ser remetido a um princípio único segundo o qual nenhum dos dois trocadores pode, no mercado, regular as relações de troca por sua própria autoridade; nesta hipótese, exige-se uma terceira parte que encarne a garantia recíproca que os possuidores de mercadorias acordam mutuamente, devido a sua qualidade de proprietários, e que personifique, em consequência, as regras das relações de troca entre os possuidores de mercadorias”25. E, portanto, “A burguesia jamais perdeu de vista, em nome da pureza histórica, o outro aspecto da questão, a saber, que a sociedade de classe não é somente um mercado no qual se encontram os proprietários independentes de mercadorias, mas que é, também, um campo de batalha de uma feroz guerra de classes, no qual o Estado representa uma arma muito poderosa”26, sendo que “Quanto mais a dominação da burguesia for ameaçada, mais estas correções se tornam comprometedoras e mais rapidamente o ‘Estado jurídico’ se transforma em uma sombra material até que a agravação extraordinária da luta de classes force a burguesia a rasgar inteiramente a máscara do Estado de direito e a revelar a essência do poder de Estado como violência de uma classe social contra a outra”27.
Aqui é indispensável a leitura do capítulo 2 do livro I de O capital (“O processo de troca”). Nesse, resta claro que a passagem para o trabalho assalariado é indispensável para a concretização da lógica do capital. Estando o capital centrado na produção de mais-valor e no processo constante de autovalorização pela sua extração, nada mais correto do que pensar que isso somente pode-se dar por meio da disponibilidade livre e igual da única mercadoria que o trabalhador possui: a força de trabalho. Aqui a lógica é a que o trabalhador não pode ser pensado como um escravo ou servo, tendo que ser visto como um proprietário que possui liberdade e igualdade na disposição de sua única mercadoria. A dimensão jurídica e, portanto, a estatal, é indispensável, como visto, para que tudo isto aconteça.
Torna-se indispensável a presença de um agente, o estado, que faça aparentar que, de forma neutra, realiza a promoção da igualdade e liberdade, não individualmente considerada, mas de forma generalizada. Portanto, a universalização da aparência de liberdade e igualdade, como condição indispensável à lógica de produção e circulação do capital, não se realiza sem a presença do estado. O estado é, pois, na sua mais acabada estruturação, forma típica do capitalismo. Logo, estado ou direito evoluíram no tempo e possuem características incipientes nos modos de produção anterior. No entanto, a mais bem-acabada manifestação de ambos somente pode-se dar no capitalismo. Merecem, pois, ser considerados como forma típica do capitalismo neste sentido. Em outro momento da humanidade, outras figuras que não se confundem com a atual de estado ou direito apareceram. No entanto, para a universalização da figura do sujeito de direito e de seus correlatos discursos de igualdade e liberdade, forma estatal e jurídica coincidem e são indispensáveis ao advento e andamento do capitalismo. Em se tratando de formas históricas, não existiram antes (mesmo que existissem suas protoformas) e não existirão eternamente, compondo outro modo de produção. Logo, são apenas formas transitórias, como o devem ser à luz do materialismo histórico-dialético. Não se tratam de formas transcendentais, eternas – que sempre teriam existido e que, inexoravelmente, sempre existirão.
Já aqui ficam claras as limitações da teoria institucionalista no sentido de que o estado é o grande produtor do bem comum. A limitação mais clara emerge, como visto, de sua inexorável ligação com o capital, como forma específica mesmo desse. Não há, em vista desta ligação, como aquele que se liga inexoravelmente à lógica de autovalorização do capital produzir de forma plena e desinteressada o bem comum – mesmo havendo luta de classes no interior do estado, isto não impede esta conclusão.
Logo, mais do que dizer que a saúde, previdência, assistência, educação passaram, com o capitalismo, a ser tratadas como valor de troca (e realmente o foram), há que se entender a limitação inerente às políticas públicas a elas correspondentes no modo de produção capitalista. Sendo o estado o promotor de tais políticas públicas, se encontra limitado por sua posição específica na lógica do capital antes desnudada. Não se trata de uma questão que possa ser vislumbrada de forma individual – no sentido de que se o gestor for bom a política pública será boa ou coisas do gênero -, mas de tema que deve ser pensado na lógica da estruturação do capitalismo, a partir especialmente da posição do estado na reprodução típica do capital. O estado é elemento indispensável para a produção tanto da mais-valia absoluta, quanto da relativa28. Isto não é elidido sequer pela luta de classes existente (e ela se processa ali também) no interior do estado.
A(S) REFORMA(S) DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NO CONTEXTO DA CRÍTICA IMANENTE AO ESTADO
Se verificarmos a situação da previdência social brasileira, percebemos que insistentemente o estado tem assumido papel importante na extração da mais-valia pelo capital, em especial a partir das mais sucessivas reformas previdenciárias. Em síntese, o trabalhador tem tido os valores vertidos para um sistema, que não se organiza a partir da lógica do que efetivamente seja uma previdência tendente à proteção social deste na intempérie – um sistema que, inserido num contexto de cumprimento de metas fiscais e geração de valores para atender ao superávit primário, viabiliza instrumentos para suposta geração de empregos (precarizados, nas poucas oportunidades em que isto se dá) por meio de desonerações previdenciárias ao capital. Isto tudo culmina com a última reforma promovida, no final de 2014, pelo governo Dilma, que desfere o golpe mais violento à proteção social previdenciária.
Tracemos o percurso pelo qual isto se deu.
Em 1988, na contramão do que vinha ocorrendo no restante do mundo, a constituição brasileira desenhava um sistema de segurança social jamais visto na história do nosso constitucionalismo. Portanto, ensaiava-se, nesta parte do texto constitucional (mais especificamente entre os arts. 194 e 204 da Constituição de 1988), esboços de um estado de bem-estar social inédito na história do país. A isto devem ser agregadas as disposições referentes à proteção do trabalhador nas relações de trabalho (arts. 6º. a 11 da Constituição de 1988). Não há que se desprezar a habilidade do pequeno grupo dos constituintes de esquerda no processo legislativo que levou a tais avanços e muitos outros.
No entanto, é de se perceber que, em vista das lutas travadas no seio da assembleia constituinte, com destaque para a atuação do grupo conhecido como “centrão” (que congregava partidos que se diziam de centro, mas que, na realidade, expressavam uma forte tendência à direita), tais disposições típicas do Welfare State tiveram que conviver com um grande número de disposições de cunho liberal. Esta tensão pode ser vista, por exemplo, do art. 170 do texto constitucional, que versa sobre os princípios da ordem econômica.
Esta esquizofrenia constitucional não tardaria a revelar a dificuldade, em vista das questões conjunturais, da sobrevivência (pelo menos com a pujança desejada pelos constituintes de esquerda) das disposições concernentes ao estado social.
Já quando da edição do texto constitucional, o mundo dava uma guinada para o neoliberalismo que de ninguém é desconhecida. Assim, no início dos anos 80, após as eleições de Reagan e Thatcher, o aprofundamento da opção por um estado enxuto e em que se abandonavam às políticas de proteção social já se iniciavam e se alastrariam para o restante do mundo – inclusive para a América Latina. O Brasil, certamente e a despeito do seu texto constitucional, não estaria infenso a esta nova realidade.
Portanto, sem nunca havermos tido um estado de bem-estar social, e antes mesmo de começarmos a concretizar o nosso a partir de 1988, o desenho constitucional estava fadado ao insucesso. Aqui não estamos, de forma alguma, reduzindo a importância da resistência constitucional, que, até hoje, rende, para os defensores do estado social, possibilidades na luta travada entre trabalho e capital. No entanto, a realidade dos fatos foi mais forte do que a promessa constitucional, sendo que mesmo a constituição acabou, em várias oportunidades, rendendo-se à força do capital. Neste contexto, por exemplo, e a despeito da constituição social brasileira, a intensificação da terceirização, os múltiplos atentados ao direito de greve e as reformas previdenciárias podem ser colocadas em um mesmo pote do enfraquecimento deliberado dos direitos sociais.
Nesta toada, a atuação conjugada do Judiciário/Legislativo/Executivo, enfim do estado (já que, embora não aparente, todos fazem parte de um único conjunto com um propósito semelhante: o reforço da lógica de acumulação do capital), a partir de meados dos anos 90, intensifica o seu papel de destaque na saga de desconstrução dos direitos sociais.
Daí não surpreender decisões que intensificam as possibilidades de terceirização e os julgados que aparecem em matéria previdenciária.
Cada um dos três poderes fornece uma pequena contribuição neste processo. Senão vejamos.
O legislativo lança uma série de leis que reduzem os direitos previdenciários (como exemplo, podemos citar legislações que restringiram o acesso à aposentadoria especial – como as alterações nos arts. 57 e 58 da Lei 8213/91 pelas Leis 9032/95 e 9528/97 –, que modificaram a data de início das pensões por morte – alterações promovidas no art. 74 da Lei 8213/91 pela Lei 95528/97 –, a edição de normas referentes ao fator previdenciário – constantes da Lei 9876/99 que deu nova redação ao art. 29 da Lei 8213/91 –, as sucessivas reformas da previdência constantes também de emendas constitucionais – emendas constitucionais 20/98 e 41/03, por exemplo).
O Judiciário corrobora a atuação do Legislativo (veja-se a interpretação referente aos reajustes dos coeficientes das pensões, a convalidação dos abusos referentes às emendas constitucionais supressivas de direitos fundamentais sociais como no caso da limitação dos beneficiários do auxílio-reclusão, a não concessão de liminar em ação de inconstitucionalidade das normas referentes ao fator previdenciário).
O Executivo utiliza-se da máquina administrativa, com as suas portarias, ordens de serviço e instruções normativas, para reduzir direitos previdenciários (como exemplo, salta aos olhos a alta programada no caso dos benefícios por incapacidade e a dificuldade imposta aos administrados para demonstrar os seus direitos às pensões, mormente no caso de uniões estáveis).
Todas estas reformas, que não precisam ser processadas necessariamente por atuação do poder constituinte, ainda que derivado, provocam uma fissura na constituição de 1988, a ponto de não reconhecermos mais o desejado estado social desenhado naquele texto constitucional. E, em contrapartida, promovem a “economia” de bilhões de Reais, a custas dos direitos sociais, aos cofres públicos. A contabilidade desta economia com o uso do direito nunca foi, nestes vinte anos, realizada. Mas, se isto se fosse processado, certamente teríamos mais dúvidas a respeito sobre a existência de um déficit – fato agravado pelo desvio de valores autorizados pela constante reedição em emendas constitucionais sucessivas da desvinculação das receitas da união (DRU), que permite que percentual dos valores destinados à “deficitária” seguridade social seja destacado para outras finalidades que não a própria seguridade. Estamos aqui falando, certamente, de algumas dezenas de bilhões de Reais.
A fragilidade do estado social revela a sua faceta no estado capitalista. Ao mitigar a luta de classes, ao cumprir tal papel em momentos de tensão social, é abandonado ao menor sinal de que o seu intento foi obtido: a ilusão provocada pela colaboração entre trabalho e capital. E, para a sua sobrevivência, o capitalismo não descarta a hipótese de que, em novos momentos de tensão entre as classes, vários dos mecanismos do estado social venham a ser novamente ativados – não nos arriscamos a afirmar o restabelecimento do Welfare State nos mesmos moldes de seu auge, mas apenas de alguns de seus mecanismos, com roupagem jurídica inclusive, de proteção ao trabalhador. O processo aqui destacado é dialético e efetivamente muito mais complexo do que a simplificação que promovemos, mas a luta pelos direitos sociais (como um dos mecanismos mais importantes legados pelos modelos de Welfare) demonstra um pouco do que estamos falando.
Não estamos aqui propugnando que não lutemos pela consolidação dos direitos sociais, já que sempre defendemos a interpretação de proteção do segurado no sistema de previdência social como única forma de resgatar os postulados de fundamentalidade dos direitos sociais. Não obstante, há que se perceber que, na luta pelo socialismo, tais direitos não representam mais do que mais um dos fatores de intensificação de mais-valia do capital perpetrado pela atuação do estado. Aliás, o papel do estado na acumulação do capital fica tão evidente no estado social, quanto no estado liberal.
No estado social, quando, na figura do estado “máximo”, ajuda a promover a acumulação a partir da lógica da colaboração das classes. Além disto, os direitos sociais emergem como elemento importante para mitigar as vontades individuais, embora aparentem (no velho jogo aparência/essência) aumentar a liberdade de sujeitos supostamente iguais. Por fim, no estado social, vários gastos que deveriam ser promovidos diretamente pelo capitalista (preservação da saúde do trabalhador ou proteção dos familiares no momento de seu falecimento, por exemplo) são substituídos pela atuação do estado e se transformam em gastos decorrentes da responsabilidade conjunta de toda a sociedade. O capital exonera-se, com enorme diminuição de custos, transferindo a responsabilidade para o conjunto dos “cidadãos”. Tudo isto transformando o trabalhador, que recebe a proteção estatal, num sujeito mais “livre” e “igual”, para, novamente e após o gozo de seu benefício previdenciário, voltar a vender a sua força de trabalho.
No caso específico da proteção social previdenciária, urge destacar que as relações jurídicas dali decorrentes nada mais representam do que trocas de equivalentes. Uma doença do trabalhador corresponde a um benefício previdenciário por incapacidade de tal montante. Uma morte corresponde a uma pensão para os dependentes do segurado. E assim por diante. Nesta troca de equivalentes, é possível perceber o quanto barato é, para o capital, cada uma destas contingências, o que é acentuado pelas constantes reformas da previdência social – na sua quase totalidade em detrimento dos interesses dos trabalhadores.
E, por fim, saindo deste contexto, há os trabalhadores que ganham mais do que os outros e que podem entrar em outra troca de equivalentes, agora promovida de forma mais lucrativa pela previdência privada. Enfim, para todo lado que se olhe, nada mais há do que a acumulação tipicamente capitalista. Assim como passa a se dar com a previdência pública no percurso mencionado, a previdência privada representa não mais do que um instrumento do sistema financeiro – no seu caso específico a noção de previdência é substituída pela de investimento do seu beneficiário, acentuando o seu caráter aleatório e de imprevidência, que alimenta o mercado financeiro.
Na realidade, de tudo quanto exposto, fica claro que o estado de bem-estar social, enquanto uma variação da forma estado na lógica do capital, se encontra atrelado também ao capitalismo. Portanto, não basta que nos rendamos aos seus encantos, na medida em que somente a superação da lógica de acumulação do capital poderá ensejar o verdadeiro conceito de liberdade e igualdade – bem distantes das atuais liberdade e igualdade burguesas.
O DERRADEIRO GOLPE – A REFORMA PREVIDENCIÁRIA REALIZADA COMO ÚLTIMO ATO DO PRIMEIRO GOVERNO DILMA ROUSSEFF
Saiu na imprensa que o governo iria economizar cerca de 20 Bilhões de Reais com os seus gastos, com a implementação de medidas de redução de acesso a benefícios previdenciários como a pensão por morte e o seguro-desemprego.
Os que defendem o maior controle dos gastos públicos, para geração de superávit primário, se sentiram contemplados, na medida em que, finalmente, o governo petista tomava as medidas necessárias, para estes, para recolocar o Brasil no trilho do crescimento econômico.
Apesar de a candidata à presidência Dilma Rousseff dizer que os direitos dos trabalhadores não seriam diminuídos, a mudança nas regras da pensão por morte, do auxílio-doença e do seguro-desemprego pode ser considerada o ápice da determinação do papel da nossa previdência num estado de mínimos de proteção social.
Tais medidas afetam de forma mais sensível do que quaisquer outras nos últimos vinte anos a vida de todos os trabalhadores. Além disto, consolidam conceitos que inviabilizam o advento de qualquer instrumental de proteção social típico de estados de bem-estar social.
Trata-se na realidade no pior de todo o conjunto de medidas já adotados em relação à previdência social por qualquer governo no chamado Brasil democrático – considerado, para fins jurídicos, o estado de direito que foi conformado a partir da constituição de 1988 –, já que, além de tudo, é a que atinge, em maiores proporções, a população mais pobre. Somente a introdução do fator previdenciário, pelo governo Fernando Henrique Cardoso (e mantido pelos governos Lula e Dilma), pode ser considerado tão prejudicial aos trabalhadores quanto esta reforma produzida como um dos derradeiros atos do fim do primeiro mandato de Dilma Rousseff e com o qual ela se credencia para iniciar a sua nova gestão. Isto dá a dimensão histórica do que foi feito por este governo.
Sem sermos técnicos, já que, para esta finalidade, estamos produzindo material próprio29, apontaremos algumas questões sobre o quadro nebuloso em que o Brasil foi lançado com as medidas tomadas pelo atual governo.
Inicialmente, o auxílio-doença, aquele que é pago ao trabalhador que se encontra afastado do trabalho que acometido de doença incapacitante, terá, por medida legal, um método de seu cálculo, que possibilita a consolidação da sua redução. Já houve tentativa anterior neste sentido, mas, por resistência, inclusive junto ao Supremo, não foi o governo Lula bem-sucedido. É triste perceber que este benefício, que acomete o trabalhador em um de seus momentos de maior fragilidade, vem sendo, pouco a pouco, destruído, existindo de forma quase que assistencial. Além disto, desconsidera o valor efetivamente contribuído pelo trabalhador. Na lógica antes mencionada, tanto faz o que é contribuído pelo trabalhador, para que seja contemplado com um benefício melhor. Se o trabalho realmente fosse o valor considerado central, certamente isto jamais se daria. No entanto, embora posto como central, isto somente faz parte de uma aparência. A essência é outra: os valores vertidos não possuem função de proteção social, mas sim de um complexo sistema que considera apenas a intensificação da captação de mais-valor pelo capital.
Nas pensões por morte, as mudanças não foram menos perversas. Além de criar um período extremamente longo de contribuições para que o dependente do segurado faça jus ao benefício, várias limitações lhe foram impostas – tanto no universo dos seus beneficiários, quanto na redução de seus valores. Sob o nome de solidariedade social – que supostamente seria uma forma de coagir a todos contribuírem, para serem, no gozo do benefício, prejudicados, sob o nome de interesse comum -, mais uma vez o estado mostra a sua real função na acumulação típica do capital. Aqui fica bem clara a farsa que representa a noção de instituição, atribuída pelos tribunais à noção de estado e da proteção previdenciária. Sob a suposta alegação de bem comum, de que a previdência necessita de corrigir suas distorções (para evitar a sua falência), esconde-se o ataque aos trabalhadores com extensa diminuição de direitos básicos.
Na restrição aos dependentes da pensão por morte, há problemas técnicos sérios. Na forma do art. 201, inciso IV, da Constituição esposa e companheira são dependentes necessárias, que sequer precisam demonstrar dependência (perceba-se da interpretação literal desta disposição, que se fala em pensão por morte ao cônjuge e ao companheiro ou dependente). Logo, ambos são casos de situação em que a pensão deverá se dar imediatamente, não havendo como se impor limites temporais de dois anos de casamento ou de união estável. Não há sentido, portanto, em se conceber o benefício apenas após alguns anos de casamento ou concubinato. Além disto, cria uma restrição ao casamento e seus efeitos legais, que conspira contra os próprios dispositivos da constituição que regula a família. Logo, nada obsta que a lei verse sobre pensão, mas não pode fazê-lo de forma a modificar ou dificultar o acesso ao benefício na forma como previsto no texto constitucional. Diga-se, de passagem, que a limitação da percepção do benefício para os que estiverem casados ou em união estável apenas após dois anos possui elevada carga moral.
É brutal ainda a diminuição do valor da pensão por morte nos moldes da nova legislação. Trata-se, de novo, de disposição que tende à abolição inconstitucional de direito fundamental social. Estamos diante de caso exemplar de indevido retrocesso social. Havia disposição semelhante na Lei Orgânica da Previdência Social. Esta disposição também consta de disposições posteriores, como as Consolidações das Leis da Previdência Social de 1976. Percebe-se assim o retrocesso na lógica histórica, já que estamos retornando ao modelo previdenciário dos anos 60/80, de antes das conquistas da Constituição de 1988, que veio exatamente para retirar do sistema os desvios que possuía, atingindo a proteção social.Frise-se: um modelo previdenciário distorcido quanto à proteção do segurado, típico do Brasil dos tempos da ditadura militar, em que tanto direitos e liberdades individuais, quanto direitos e liberdades sociais eram amplamente desconsiderados.Perceba-se que a Constituição de 1988 consertou um desacerto teórico da legislação previdenciária anterior à sua edição, tendo sido devidamente regulamentada neste aspecto (valor do benefício) pela Lei n. 8213/91. Sendo a pensão por morte benefício para os dependentes do segurado, a lógica, na perspectiva do conceito de contingência, é prover os dependentes na mesma medida em que eram providos quando o segurado se encontrava vivo. Com o seu falecimento, para que se atenda plenamente à contingência é indispensável que os segurados percebam o mesmo montante que ele percebia (ou perceberia) a título de pensão por morte. Logo, a redução promovida nos valores das pensões por morte por esta disposição também não atende à contingência prevista constitucionalmente a partir do conceito de dependência ali previsto – o que vale tanto para os dependentes legais como os beneficiários necessários, que são, por disposição literal da Constituição, o(a) cônjuge e o(a) companheira.
Somente para exemplificar trouxemos à tona os comentários anteriores. Por meio deles percebemos que nos encontramos no ápice do processo de deterioração da previdência social que já vinha se desenhando nos últimos anos. E ressalte-se que sequer falamos do seguro-desemprego, que, segundo o “Chicago boy” Joaquim Levy, trata-se de benefício ultrapassado. Ultrapassado??? Tão ultrapassado quanto a contingência desemprego, diríamos ironicamente. Diga-se de passagem, a questão do seguro-desemprego aparece como o “bode” jogado na sala de negociação. Expliquemos. Os jornais já anunciam que há possibilita de que existam neste tema mudanças em relação às regras editadas pela Medida Provisória que versou a seu respeito (Medida Provisória 665/14), sendo que nada mais foi dito, até o momento da publicação deste artigo, a respeito das outras disposições, antes comentadas, tão ou mais graves do que as mudanças operadas no seguro-desemprego. Assim, os propósitos antes mencionados, com o intenso sacrifício da classe trabalhadora, continuarão a persistir, demonstrando qual realmente tem sido o papel do estado brasileiro em questões envolvendo a matéria previdenciária, em especial nos anos elencados neste artigo.
A VACA – ENTRE O PROFANO E O SAGRADO
Na realidade, a tese que defendemos é que, no capitalismo brasileiro, a previdência social somente teve espasmos (ainda assim, na nossa avaliação, singelos) de sistema que tendia à proteção social. O mais consistente destes espasmos não sobreviveu mais de cinco anos – indo da regulamentação da constituição de 1988, com entrada em vigor da Lei de Benefícios (Lei n. 8213/91) e de seu decreto regulamentador, do final de 1991, até meados de 1995 (quando a proteção social legalmente alcançada passou a ser corroída de forma sistemática por atos dos três poderes).
Em geral, a previdência social pátria foi moldada a um estado tipicamente liberal, em que a finalidade de proteção social não era o mais importante. A relação previdenciária protetiva, sob o viés normativo, é função secundária nestes modelos. O mínimo de proteção social é acoplado à dinâmica de que os valores vertidos para o sistema, ou que dele são poupados (desonerações das contribuições previdenciárias por parte das empresas), são pensados na lógica de fatores como o ajuste fiscal ou em função do superávit primário.
Assim, nesta dinâmica, não importa, por exemplo, se o direito às pensões será reduzido a direitos mínimos. Não tem qualquer importância se os doentes, afastados por incapacidade dos ambientes laborais, serão protegidos precariamente. O que importa é a geração de valores para o cumprimento de compromissos como superávit primário, ajuste fiscal e controle de inflação. A previdência social passa, com o tempo, a ser uma peça chave para o cumprimento de metas ligadas a esta tríade. Não está em jogo, portanto, se os valores economizados implicarão a redução do déficit da previdência (embora se queira fazer crer o contrário) – que, neste modelo, existirá sempre, inclusive como forma de ameaçar e romper o pacto entre trabalhadores ativos e inativos.
Com a significativa redução de direitos, certamente superiores aos vinte bilhões hoje apontados como valor do déficit do regime geral de previdência social, a previdência brasileira não tinha como ser considerada deficitária. No entanto, não é isto que interessa. Não estamos diante de um modelo em se pretende realmente a proteção previdenciária efetiva dos segurados – sequer o conceito de previdência é, neste quadro, importante. O que interessa é, com o os valores vertidos pelos trabalhadores e os de que são desonerados os capitalistas, que se contribua para que metas fiscais e superávit primário sejam alcançados. A relação previdenciária, em modelos que se afastam do Welfare, como o nosso, não é uma relação de proteção previdenciária centrada nas contingências (morte, doença, nascimento de filho, desemprego) – embora se esforce para fazer parecer que é disto que se trata. Seu intento é reforçar o estado mínimo na proteção social, embora máximo na captação de recursos dos trabalhadores. Dos trabalhadores, mas não do capital – que gozará, nesta lógica, das desonerações, que, como visto acima, alcança nos últimos anos o próprio valor do déficit apontado.
No plano jurídico, que opera essencialmente com a aparência (embora travestida de essência), precisamos encarar este fato e, se desejamos aumentar a proteção ao trabalhador brasileiro, mudar de tática. Nesta linha, a relação jurídico-previdenciária não pode ser percebida apenas a partir da perspectiva apenas dos direitos sociais, mas prioritariamente a partir da lógica dos direitos individuais. Há que se buscar mecanismos que reforcem o direito de propriedade do trabalhador.30 O direito opera essencialmente, na sua aplicação, a partir da lógica da subjetivação, sendo que qualquer ilusão conceber-se em sentido contrário. Logo, pelo direito, nada mais se faz do que buscar as migalhas decorrentes da única propriedade do trabalhador vendida no mercado, a sua força de trabalho. Quando nem sequer isto conseguirmos obter pelo confronto jurídico, devemos os juristas evidenciar as contradições daí provenientes. Outro dado importante, neste processo, é fazer tudo isto consciente das limitações do estado social e estar sempre disposto a apontá-las, mesmo nos momentos em que se conseguir alcançar maior proteção para o trabalhador.
Fora do direito, o mais importante: a luta social – a partir da percepção de que, tratado como livre e igual para vender a sua única mercadoria, o trabalhador nunca será, de fato, livre e igual, enquanto for vigente a lógica do capital.
NOTAS
1 Nesta linha de raciocínio temos a recente edição de medidas pelo governo Dilma, em que foram introduzidas significativas mudanças em benefícios como o auxílio-doença, a pensão por morte e o seguro-desemprego no apagar das luzes de 2014 (Medidas Provisórias 664 e 665, editados em 30 de dezembro de 2014). A despeito de mencionar um realinhamento nos critérios de concessão de benefícios para acomodá-los à realidade, o governo promoveu intensas reduções nos direitos sociais, em verdadeiro atentado à previdência social brasileira. O tema será objeto de análise em item deste artigo.
2 Como já é sabido e decantado por muitos, esta contínua reforma da previdência se integra a projeto concebido no Consenso de Washington, e que vem sendo mundialmente aplicado. No caso brasileiro, há especificidades, no entanto, que merecem ser destacadas – o que se pretende fazer aqui.
3 A revista Poli – saúde, educação, trabalho, ano VII, n. 37, nov./dez. 2014, p. 02, menciona, somente para o ano de 2013, uma perda de arrecadação, em vista das desonerações (verdadeiras renúncias de crédito da previdência social brasileira), no valor de 19,04 bilhões de Reais – segundo dados da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (ANFIP)
4 Aqui interessante a seguinte colocação de autor que se encontra bastante na moda: “Outra crença otimista muito difundida na atualidade é a ideia de que o aumento da expectativa de vida faria com que a ‘luta de classes’ fosse substituída pela ‘luta de gerações’ – uma forma de conflito muito menos polarizada e aguerrida do que os conflitos de classe, pois, afinal, todos seremos jovens e velhos em algum momento de nossas vidas” (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Trad. Monica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, p. 28). Embora critique esta visão otimista, o autor não perceberá que a luta de classes é fator decisivo para a incidência da luta de gerações no seio da classe trabalhadora – dado que seria importante inclusive para as suas conclusões referentes à concentração típica do capitalismo. As duas não são antagônicas e sucessivas, sendo que, em matéria de direitos sociais, a luta de gerações é sentida essencialmente na classe trabalhadora como fator de ruptura (em questões envolvendo trabalhadores ativos x inativos, por exemplo).
5 Para os que desejam entender um pouco mais do método materialista histórico-dialético e sua relação com o direito, sugerimos a leitura de artigo que escrevemos intitulado Que fazer, publicado na obra Direito: teoria e experiência – estudos em homenagem a Eros Roberto Grau, tomo I, pela Editora Malheiros, em 2013, e organizado por José Augusto Fontoura Costa, José Maria Arruda de Andrade e Alexandra Hansen Matsuo.
6 Aqui devem ser destacados dois autores na atualidade que trabalharam o tema do estado de forma bastante consistente, a partir de bases marxistas, e que podem ser tidos como referências: MASCARO, Alysson. Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Ed. Boitempo, 2013 e HIRSCH, Joacquim. Teoria Materialista do estado. Trad. Luciano Cavini Martorano. Rio de Janeiro : Revan, 2010.
7 MARX, K. O Capital – crítica da economia política – Livro III. Trad. Reginaldo Sant´Anna. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2008, p. 1080.
8 HARVEY, David. Para entender O capital, Livro I. São Paulo: Editora Boitempo, 2013, p. 46.
9 MARX, K. Grundrisse – manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. Trad. Mário Duyaer, Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo editorial; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011, p. 255.
10 Idem.
11 Ibidem.
12 Idem, p. 255 e 256.
13 MARX, K., O capital cit., nota 1, p. 251.
14 MARX, K., Grundrisse cit., p. 243.
15 HARVEY, Para entender O capital, Livro I. cit., p. 80.
16 Idem, p. 93.
17 Ibidem.
18 Idem, p. 100.
19 Idem, p. 102.
20 Idem, p. 105.
21 Marx, K., O capital cit., nota 1, p. 251.
22 PASUKANIS, E. B. A Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paulo Lessa. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1989, p. 119.
23 Idem, p. 122.
24 Ibidem.
25 Idem, p. 125.
26 Idem, p. 125 e 126.
27 Idem, p. 126.
28 Quem desejar entender melhor esta relação, sugerimos a leitura de artigo que escrevemos com Pablo Biondi chamado Uma leitura marxista do trabalho doméstico, publicado na Revista LTr, São Paulo, V. 75, p. 311/317, 2011.
29 A respeito do tema, os que desejarem poderão consultar a 8ª. edição da obra Curso de direito da seguridade social, que escrevemos juntamente com a Professora Érica Paula Barcha Correia, editada pela Saraiva e que será publicada no início de 2015.
30 Esta linha já é a adotada por países como a Alemanha. Em workshop que organizamos em meados de 2014 na Faculdade de Direito da USP, no qual discutimos os modelos de seguridade social da Alemanha e do Brasil, os nossos convidados alemães insistiram na tese do respeito ao direito de propriedade do trabalhador pelos anos de trabalho e do respeito jurídico à sua proteção pela previdência social alemã. A relação de equivalência entre o trabalho despendido e o benefício previdenciário, embora nunca, por óbvio, corresponda ao verdadeiro valor da força de trabalho, alcança patamares mais significativos naquele país, a partir da consideração do direito de propriedade pelos anos trabalhados. É interessante perceber que os juristas alemães falaram insistentemente em respeito ao direito de propriedade do trabalhador ao direito social no lugar da expressão direito adquirido.
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Marcus Orione é livre-docente e Professor da pós-graduação na área de concentração em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Colabora com a edição 21 da revista Margem Esquerda do segundo semestre de 2013 com uma leitura marxista da redução da maioridade penal.
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