O reino da cozinha: A colher de pau
Por Flávio Aguiar.
Prezada leitora, prezado leitor.
Como anunciara ao apagar de 2014, começo aqui uma nova série sobre a conquista de um reino, o da cozinha. Já disse que esta série será uma obra épica, sobre adentrar e dominar um mundo que me era vedado por predestinação, as alquimias da cozinha. Não será um livro de receitas, embora possa conter algumas; não será um livro de auto-ajuda, do tipo “melhore sua vida cozinhando”. Ao contrário, algumas das observações poderão piorar a vida das pessoas, pelo menos momentaneamente, pois lidarão com preconceitos, violências do dia a dia, e outras coisas que podem ser desagradáveis para os espíritos mais delicados.
Está feita a advertência. Se quiseres, acompanhe-me na história da conquista deste reino.
***
“Meu reino por…”
Heróis ou anti-heróis trágicos, como o Ricardo III, de Shakespeare, poderão emendar:
“…por um cavalo!”.
Otelo diria (porque na peça não disse):
“…por um lenço de Desdêmona!”
Neste conjunto de crônicas que ora começo, me limito a dizer, mais prosaico:
“…por uma colher de pau!”
Porque a colher de pau foi o primeiro cetro que conheci. Era o símbolo do poder sobre um reino: o da cozinha. A cozinha de todas as alquimias, onde as coisas cruas se transformavam no esperado ou maldito alimento. Porque nem tudo o que vem da cozinha é desejado; algumas coisas são piores do que veneno, pela obrigação de comê-las quando não se quer, ou quando são detestadas.
Na casa de meus pais, quem empunhava o cetro, e com ademanes de absolutismo, era minha avó, mãe de meu pai. A empregada – agregada, como soía ser naquele tempo – o usava, mas por delegação da monarca. Esta palavra vem bem. Para quem conhece a estratificação social do pampa, de onde minha vó provinha, “monarca” designava o campeiro independente, sem documento mas com lenço no pescoço, dono de seu cavalo e do seu nariz, que oferecia trabalho, música e diversão a troco de alimentação e sustento por algum tempo. “Moço monarca não se assina, risca a marca”, diz o ditado campeiro, recolhido por Antonio Pereira Coruja e publicado em sua coletânea de termos gaúchos em 1861, referindo-se ao fato de que a maioria destes homens de cida alçada não sabia ler nem escrever.
Minha avó – de nome Henriqueta – mal sabia ler e escrever; pertencia ao lado feminino do campo; mas tinha algo do desempeno sobranceiro daquela vida pampiana de antanho. Pelo menos assim se comportava em relação a seu reino, a cozinha.
Este reino era motivo de disputa renhida entre ela e minha mãe. Ela, minha avó, estava em vantagem. Minha mãe, mulher moderna, trabalhava, era professora no Instituto de Educação General Flores da Cunha que, apesar do nome, era exclusivamente para moças. Passava os dias fora. Minha avó ficava em casa; trabalhava também, pelo menos durante algum tempo de minha primeira ou segunda infância, em todo caso primeiros tempos de minha memória. Mas trabalhava em casa. Costurava para fora, remendava, pregava botões, fazia e refazia bainhas de calças, virava colarinhos, sobretudo de fardas da Brigada Militar, a PM gaúcha. Muitas vezes a acompanhei, levando trouxas com as fardas remendadas, ao Quartel-General da Brigada no centro da cidade. Talvez houvesse fardas do Exército também, não me lembro.
Por isto, por ficar em casa, minha avó estabelecera na cozinha o seu reinado. E a disputa política em questão era o que comeria o meu pai. Este trabalhava como contador no centro; ia e voltava do trabalho a pé. Podia vir – e vinha – almoçar em casa. Depois fazia uma sesta de meia hora, e voltava ao trabalho, onde ficava até as seis da tarde ou da noite, conforme a estação do ano.
Aquela disputa, que minha avó ganhava todos os dias, tinha um símbolo, um ritual sagrado. Meu pai chegava do trabalho, tirava o paletó, afrouxava a gravata, às vezes abria o colete, arregaçava as mangas da camisa e sentava-se à mesa. Pegava um pedaço de pão que partia com as mãos; enquanto isto, minha avó punha-lhe à frente um prato fumegante de sopa, com carnes, legumes e alguma folha verde. Assim era todo o santo dia, todos os dias da semana, todo o ano, fizesse calor ou frio.
Tão forte era esta lembrança que anos mais tarde, quando eu já morva em S. Paulo, repeti a cena ao receber em casa meus pais. Era a primeira visita deles à minha casa de casado. Minha mãe e minha mulher saíram “para compras”. Fiquei em casa com meu pai, que queria descansar da viagem, feita de ônibus, pois avião era para gente rica e eles tinham chegado na noite anterior. Naquele tempo havia uma faxineira que vinha uma vez por semana à nossa casa. Pressuroso, eu, que ainda não lidava bem com estas coisas, pedira-lhe na véspera que fizesse um prato de sopa para meu pai. Esquentei-a, e servi-lhe o prato.
Frente a frente, ele me olhou com seus olhos esverdeados e límpidos. E me disse, com humildade, como se estivesse pedindo desculpas:
– Eu detesto sopa.
Foi como se um raio me caísse na cabeça. Pela primeira vez tive a medida – ou a desmedida – da extensão do reinado de minha avó, e da importância daquele cetro, a colher de pau.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Morri de rir!
Já eu odeio mondongo…
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