Leon Hirszman e o cinema brasileiro
Por Urariano Mota.
Leon Hirszman é um caso de cineasta que vai além do cinema. Aquilo que Noel Rosa cantou no samba “Não Tem Tradução”, nos versos
“…Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição
Não entende que o samba não tem tradução no idioma francês
Tudo aquilo que o malandro pronuncia
Com voz macia é brasileiro, já passou de português”
bem que se pode aplicar ao que penso de Leon Hirszman. Parodiando Noel, dizemos que o trabalho de Leon já passou de cinema. Mas pode ter alguma tradução, que tentarei em três curtos parágrafos.
Ontem à noite, ao ver no Arte 1 dois documentários seus, eu fiquei com os olhos rasos d’água e o coração em estado de encantamento. A imagem com que ele abre o documentário Nelson Cavaquinho, com a cara de mestiço de índio e negro de Nelson, o modo respeitoso e sério e original e único com que vai para o quarto miserável, vizinho do quarto onde dorme o compositor, na casinha pobre de Nelson. O modo como o filma caminhando entre os vizinhos da ruazinha de vila, a honestidade com que filma o gênio de Luz Negra, do compositor de “respeite a minha dor, não cante agora, perdi meu grande amor faz uma hora”, o modo como exibe a voz embargada de Nelson Cavaquinho bêbado, ou zangado, ou sincero e verdadeiro no samba em que canta não se deve negar uma ajuda a quem necessita, eu nunca vi nada igual em toda a minha vida. Esse respeito à integridade de um compositor popular, a originalidade de imagem, da verdade na entrevista que arranca de Nelson a confissão “o samba vem da minha vida, todo o meu samba é triste,” a montagem dos vários e único Nelson Cavaquinho é tão boa, que quando acaba, recebemos um soco no estômago, de raiva: – “Acabou?! Não pode”. Assim pensamos porque ao acabar o documentário parece ter acabado também o momento mágico de ter Nelson Cavaquinho na sala, sob o alcance das mãos, dos olhos de uma grande fraternidade.
Depois, ao ver o Partido Alto, em que Paulinho da Viola o auxilia, e vemos crescer a voz e a pessoa de Candeia, que puxa o samba com uma voz que liberta e sem querer nos move no ritmo como se nos tomasse um canto de terreiro, no sofá, e vai mais longe, vai mais fundo, com as 3 mulatas que mais parecem as 3 mulheres do sabonete Araxá de Manuel Bandeira, e vai até um clímax, quando já de noite, uma roda de samba, com a negrada toda embriagada a cantar, a negrada que somos todos nós, “eu sou eles, eu sou eles”, a vontade que dá é de pular para dentro da imagem, e começar a improvisar também no partido alto, naquela alegria alucinada que o encontro da música favorece, e quem o provou alguma vez sabe que é ótimo e nunca mais se esquece. Isso porque nessa altura Leon Hirszman filma dentro da roda de partideiros, pois a câmera também canta como mais um dos sambistas, e até a imagem escura na noite, a precariedade da luz é boa e sincera, só falta a gente gritar “não acende a luz”, porque se acenderem vão me ver gritando de felicidade.
Então ao acabar esses dois documentários eu comentei com a minha mulher, no último domingo: esse era um cineasta que amava o povo brasileiro. Esse é o cinema que nenhum cineasta brasileiro hoje faz. O trabalho de Leon Hirszman não é uma filmagem exterior, de teoria do bar com a patota, ou sobre o mundo do lúmpen como a classe média imagina que seja o lúmpen. Em dúvida, olhem o amor de Leon Hirszman ao Brasil aqui
Nelson Cavaquinho (1969)
Partido Alto (1982)
***
Soledad no Recife, de Urariano Mota, está à venda em versão eletrônica (ebook), por apenas R$10. Para comprar, clique aqui ou aqui.
***
Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, e do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
Os documentários que acompanham esta publicação da Boitempo são
simplesmente formidáveis!
CurtirCurtido por 1 pessoa