A quem interessa o silêncio? Charlie Hebdo e a liberdade de expressão
Um conto atribuído a Malba Tahan1 relata a história de dois amigos que ficaram perdidos na floresta e foram pegos por uma tribo de índios, que, como pena, colocaram corcundas em suas costas. No ritual preparatório para a consolidação da corcunda os índios cantavam: “segunda, terça e quarta; segunda, terça e quarta” e a letra assim se repetia incessantemente. Um dos prisioneiros, então, sem querer, começou a cantarolar baixinho, “segunda, terça e quarta; segunda, terça e quarta…”, ao que foi interrompido pelo chefe da tribo, que perguntou: “quem é que está cantando assim tão bem?”. Os índios responderam: “É ele, é ele, o prisioneiro da cela 1”. O chefe então sentenciou: “Tirem a corcunda dele!” E os índios retomaram o ritual, voltando a cantar… O outro prisioneiro, vendo o que se passou, não teve dúvida: começou a cantar e em voz bastante alta, para não ter dúvida de que fosse ouvido: “segunda, terça e quarta; segunda, terça e quarta…”, mas se empolgou e também querendo agradar ainda mais, complementou: “quinta, sexta, sábado e domingo também!!!!”. O chefe novamente mandou parar a música e perguntou: “Quem é que está cantando assim… tão mal?” “É ele, é ele, o outro prisioneiro”, respondem os índios. A sentença é implacável: “Pois peguem a corcunda do outro e coloquem nas costas dele!!!”
Na mesma linha do conto acima, relata-se que certa vez alguns amigos em um bar ficaram maravilhados com o tira-gosto que lhes fora servido e então chamaram o garçom e pediram a ele que transmitisse ao cozinheiro efusivos elogios, encomendando nova porção. Quando esta veio, o garçom, todo animado, disse que o cozinheiro havia “caprichado”. Ocorre que para agradar dobrou a quantidade do tempero, mas na avaliação dos clientes o que era bom ficou horrível.
A mensagem que esses contos querem passar é a de que há um ponto de equilíbrio, não codificado, a se respeitar. Expressam ainda que aumentar a dose da fórmula que conduziu ao sucesso não significa, necessariamente, obter um sucesso ainda maior, podendo, bem ao contrário, gerar o efeito inverso e destruir a própria essência da conquista, como se, neste instante do texto, percebendo que o leitor está gostando das analogias eu ficasse relatando novos e novos exemplos para ilustrar a mesma ideia…
A nossa liberdade de atuação e de expressão, portanto, encontra limites na perspectiva das correlações sociais e quem define esses limites não é aquele que exerce a liberdade de expressão, mas os que são alvo dela, no sentido do acolhimento ou rejeição, difusão ou desprezo, à ideia.
Esses limites, assim, não devem ser fixados previamente e ao mesmo tempo são flexíveis considerando a dinâmica dialética do processo histórico. Ora, a liberdade de expressão, historicamente, foi uma conquista fundamental da humanidade, pois enquanto não se a concebia como um direito grandes personalidades tiveram fins trágicos, como Giordano Bruno, na época da inquisição.
Assim, é essencial defender a liberdade de expressão, coibindo qualquer tipo de censura, até porque para censurar seria preciso criar arbítrios para separar o “certo” do “errado”, o “bem” do “mal”, e isso nos remeteria ao mundo medieval, ao obscurantismo e aos regimes ditatoriais. Já disse2 e repito, não tenho medo do grito; tenho medo do silêncio. Não tenho medo da discordância; tenho medo da mordaça e da ignorância.
O problema de se tentar criar parâmetros para impedir que algumas coisas sejam ditas é o de obstar o avanço do conhecimento, que parte da contestação aos padrões do conhecimento posto, admitidos como absolutos.
Além disso, essa preocupação com a delimitação é muito mais uma desconfiança da capacidade intelectiva e cultural do receptor da mensagem do que uma forma de estabelecer padrões aceitáveis da convivência humana. Ou bem acreditamos que os seres humanos são capazes de discernir, distinguindo as manifestações que contribuem para a sua evolução e as que se prestam à sua destruição, ou não temos porque ficar criando lógicas de raciocínio.
Importante deixar claro que repudio, de forma veemente, manifestações de cunho racista, machista, elitista, pedófilo, discriminatório, homofóbico, antissemita, islamofóbico, além de outras, carregadas de intolerância de qualquer natureza, que expressam agressões às religiões ou que instigam a violência contra seres humanos, nem acho qualquer graça em piadas com esses conteúdos, sobretudo quando direcionadas a grupos fragilizados com o propósito, não revelado, de favorecer à sua opressão.
Compreendo, ainda, que a ordem jurídica protetiva dos Direitos Humanos consagra valores que representam um avanço na evolução da racionalidade humana, sendo punível, juridicamente, o retrocesso.
Mas acho também que a punição jurídica não é suficiente nem eficiente, além de ser bastante perigosa a limitação das análises sobre os valores relevantes à evolução da humanidade aos padrões da ordem jurídica posta, vez que esta representa, em dado momento histórico, a reprodução da compreensão da classe dominante e que serve a esta como instrumento de poder para se preservar enquanto tal. A desconsideração da existência da sociedade de classes e a eliminação da legitimidade da luta de classes, ademais, criam a máscara do bem comum, punindo as aberrações para forjar a abstração de uma sociedade justa, enquanto se mantém, na dinâmica concreta, violenta, opressiva, seletiva, machista e racista.
Assim, entre defender cegamente limites para a liberdade de expressão, adotando-se os parâmetros da ordem jurídica liberal, e defender a plenitude da liberdade de expressão, mesmo não concordando com o conteúdo da fala, melhor pender para esta última, para não correr o risco de aprofundar as ilusões do alcance corretivo do direito burguês, para não reduzir as potencialidades do raciocínio crítico e para não eliminar as possibilidades de superação dos desajustes sociais e de minimização das fragilidades humanas.
Vale lembrar que em nome da preservação da ordem jurídica, uma decisão, ainda vigente, da Justiça Federal do Maranhão, determinou, em agosto de 2013, o sobrestamento das atividades do Centro de Difusão do Comunismo da Universidade Federal de Ouro Preto dentre outros motivos porque o curso ministrado seria antidemocrático por sustentar que o comunismo é o “único modelo capaz de explicar e positivamente transformar a realidade”, sendo de se ressaltar que tal decisão, de um juiz a partir da pretensão de um advogado, ou seja, da comunhão do pensamento de duas pessoas, foi aplaudida por alguns veículos jornalísticos (que se dizem “Charlie”) e por tantos outros foi solenemente ignorada.
É relevante perceber, também, que as punições aos valores jurídicos consagrados não são condicionantes do pensamento. Punir a fala não corresponde a alterar o modo de pensar. E, como dito, ao simplesmente punir a fala – o que pode ter propósitos diversos, que não se expressam – mantém-se inalterado o pensamento. Assim, se pautamos toda nossa confiança na humanidade na força coercitiva dos limites juridicamente impostos, deixamos de formular compreensões a respeito dos valores consagrados, sendo, de certo modo, uma forma de desacreditar na humanidade. Ademais, o estágio evoluído da humanidade pressupõe a inexistência do Direito, da desnecessidade de coerções externas, sendo que para chegarmos a isso é preciso enfrentar o desafio da contraposição de ideias, incentivando diálogos abertos, baseados na franqueza, na sinceridade, na confiança e na ética, sem desprezar, é claro, o necessário aprofundamento teórico, o que não elimina, vale dizer, a cultura popular, muitas vezes mais sábia que muitos supostos intelectuais. Fato é que em toda relação pessoal que se estabiliza por intermédio do controle coercitivo predominam a desconfiança e o artificialismo, sobressaindo a própria fragilidade da dominação, até que um dia, como diria Chico Buarque em passagem célebre, o dominado diz: “te perdoo por te trair”3.
Na última manifestação organizada pelo MPL, contra o aumento da tarifa de ônibus, ocorrida em São Paulo no dia 16 de janeiro, o forte aparato policial reprimiu duramente, todo o tempo, a manifestação, e mais ainda quando “decidiu” que o ato deveria terminar, arremessando bombas sobre a multidão e saindo, literalmente, à caça de manifestantes que se dispersaram pelas ruas. Mas ninguém saiu dali convencido de que a Polícia detinha a razão, de que o direito de manifestação não deva ser exercido ou de que lutar por uma sociedade mais justa seja crime.4 Muito pelo contrário, a repressão apenas aumentou a convicção em torno da necessidade de continuar gritando.
Nesse assunto do semanário francês, Charlie Hebdo, parece-me, portanto, que não se pode tentar, minimamente que seja, justificar o morticínio com argumentos de que os cartunistas excederam os limites da liberdade de expressão, estando fora da análise se eram, ou não, de bom gosto as charges que faziam. Ora, se para se contrapor a uma ideia, que, segundo o receptor, lhe tenha gerado uma ofensa moral, o considerado ofendido se vê no direito de matar o ofensor e justificamos o ato, fazendo críticas à postura de quem expôs a ideia, extingue-se a possibilidade do choque de ideais e decreta-se o fim da produção do conhecimento.
Claro, existe bastante hipocrisia neste assunto, já que muitos defensores da liberdade de expressão não a aceitam quando a ideia exposta contraria seus valores. Do ponto de vista do suposto choque de civilizações, o que se tem visto, nos meios de comunicação que temos acesso, é uma tendência a uma espécie de naturalização da ridicularização do mundo muçulmano ao mesmo tempo em que se caminha para uma institucionalização de autênticos tabus da tão preconizada racionalidade ocidental. De todo modo, não é uma disputa entre o bem e o mal, não se exigindo, pois, um posicionamento em favor de uma ou de outra cultura, sendo essencial, isto sim, reconhecer a existência das imperfeições que carregam, afinal o conhecimento deve suplantar todo tipo de fundamentalismo.
Assim, a explicitação da hipocrisia liberal não é argumento para negar a relevância da liberdade de expressão até porque não é ela a causa dos problemas identificados, constituindo, bem ao contrário, o instrumento para sua denúncia e contestação. Em outras palavras, é apenas o direito à liberdade de expressão que pode afrontar a hipocrisia e apontar as contradições, buscando superá-las.
Na realidade brasileira, por exemplo, o conhecimento tem sido negado a várias gerações, estabelecendo-se uma censura velada do que pode e do que não pode ser dito nos meios de comunicação, nas escolas, nos livros, nas faculdades, a tal ponto que não conhecemos a nossa própria história e nem mesmo as diversas “comissões da verdade” criadas conseguiram chegar a revelações completas. Temos, portanto, um grande déficit no exercício do direito à liberdade de expressão, sobretudo se considerarmos a realidade dos segmentos econômica e politicamente menos favorecidos da sociedade de classes em que vivemos. A deficiência da formação intelectiva é impeditiva da formulação de sensos críticos próprios, restringindo a liberdade de expressão a uma fórmula vazia de reprodução dos valores dominantes, que são, midiática, ditatorial e incessantemente inculcados.
Além do aspecto da formação do conhecimento, a efetividade do direito à liberdade de expressão exige o acesso democrático aos instrumentos de difusão das ideias. A dominação antidemocrática dos meios de comunicação em massa constitui obstáculo à efetividade da plena liberdade de expressão em dada realidade social.
Os meios de comunicação em massa, empurrando a fórceps nas mentes de todos a racionalidade da classe dominante, utilizam-se de figuras abstratas, quase mitológicas, como a da “sociedade civil”, desprezando a configuração da sociedade de classes e as condicionantes econômicas que geram grandes diversidades nas experiências humanas e as delimitam. É assim, por exemplo, que a grande mídia, para minar os movimentos grevistas, sempre põe em destaque os prejuízos gerados pela greve à “sociedade”, como se a tal sociedade fosse um todo indivisível e um adversário dos trabalhadores grevistas, que neste instante deixam de se integrar à “sociedade”. Esquece-se, ademais, que a “sociedade prejudicada” é composta de vários outros integrantes da classe trabalhadora, que, mais dia, menos dia, estarão em greve e se verão submetidos ao mesmo massacre midiático.
O que a limitação à liberdade de expressão, ou a sua produção restrita à perspectiva da classe dominante, tenta fazer é evitar a produção de um conhecimento vital à consciência de classe, ao mesmo tempo em que as deficiências estruturais do modelo de sociedade capitalista servem para negar aos trabalhadores as possibilidades concretas, dos pontos de vistas político, jurídico e econômico, de difundirem, com pretensões massificadoras, a sua visão de mundo, os seus interesses e a legitimidade de sua luta, sendo certo que não se deixa de utilizar, caso necessário, a força institucional repressiva, trazendo-se à tona, inclusive, a alegada prevalência jurídica dos valores liberais.
É assim, por exemplo, que as greves e as manifestações populares são violentamente reprimidas com base na proteção dos valores liberais clássicos, como o “direito de ir e vir” e o “sagrado” direito de propriedade, mesmo que esta esteja em desacordo com a ordem jurídica posta, que lhe garante legitimidade apenas quando cumpra uma função social.
As greves são a essência da liberdade de expressão dos trabalhadores, pois são, ao mesmo tempo, consciência e meio de difusão. Reprimir a greve, tratando-a como caso de polícia, é negar vigência à liberdade de expressão, sendo a defesa do direito de “ir e vir” apenas um subterfúgio para se atingir esse objetivo, até porque o tal direito de ir e vir também atinge os grevistas.
Essas formulações exemplificativas, acima expostas, reforçam a afirmação de que é preciso defender a liberdade de expressão para superar a censura e permitir a produção do conhecimento, admitindo como conseqüência inevitável, a contraposição no campo das ideias.
Defender de forma coerente a liberdade de manifestação requer uma demanda de que ela se exerça, concreta e democraticamente, por todas as pessoas, independente da posição social, sendo que a constatação da inviabilidade real de seu exercício pela classe trabalhadora constitui a demonstração clara das falácias dos valores liberais em um modelo de produção capitalista.
Portanto, não me parece que seja função do pensamento de esquerda apontar as contradições da racionalidade burguesa para se contrapor à liberdade de expressão. Muito menos lhe cumpre minimizar a importância das manifestações populares que têm ocorrido em defesa desse valor, que não é essencialmente burguês, mas uma conquista da humanidade como um todo, ainda que não esteja servindo, concretamente, a todas as classes sociais.
Quando se diz que é indigna essa defesa porque não se a viu com a mesma intensidade com relação a tantas outras atrocidades que ocorrem mundo afora acaba-se reproduzindo uma racionalidade reacionária, que conduz a humanidade a uma imobilidade e ao conformismo, negando a própria força das iniciativas populares.
Lembre-se que a mesma lógica argumentativa, de índole reacionária, é costumeiramente produzida quando algumas pessoas lutam por pautas específicas, como, no caso brasileiro, a moradia e a tarifa-zero, ou quando se solidarizam com aquelas que lutam, dizendo-se, por exemplo, que: “esses ‘invasores’ de terras são espertos e querem passar à frente de quem espera na fila para obter uma moradia popular”; “o que adianta lutar pela redução de apenas 0,20 na tarifa?”; “onde estavam essas pessoas quando tantas outras foram presas e mortas?”; “por que não se solidarizaram com os mortos dos regimes ditatoriais de esquerda?” E por aí vai… Ora, toda luta por direitos, a luta do dia-a-dia, é importante e a tentativa básica de eliminá-la é preconizar que a ação só vale se for pela solução completa dos problemas sociais ou que quem nunca lutou por nada não pode, agora, lutar.
O mundo tem vários obscurantismos e injustiças sociais, envoltos em inúmeras contradições, que somente serão desafiadas e superadas com o conhecimento cujo desenvolvimento requer o exercício pleno do direito à liberdade de expressão.
Vale um destaque final ao humorismo, que deve ser mesmo entendido como uma reprodução caricata da realidade social. Ainda que seja bastante tênue o limite entre a genialidade e a mediocridade, ou mesmo a bestialidade, nessa forma de comunicação, sua importância não pode ser negada tanto para o avanço da compreensão humana, pois a institucionalização do raciocínio tende a uma rigidez tal que muitas vezes faz bem que seja exposta ao ridículo ou ao seu lado tragicômico, quanto para, simplesmente, aliviar um pouco o espírito5. Nesse tema da liberdade de expressão, por exemplo, é impagável a cena em que Bart Simpson6, enquanto sobrepõe, nas imagens de um livro, um diálogo imaginário7 entre Abraham Lincoln e George Washington, diz: “obrigado pela liberdade de expressão: otários!”.
São Paulo, 18 de janeiro de 2015.
NOTAS
1. Júlio César de Mello e Silva, escritor e matemático brasileiro, famoso pela difusão de fábulas e lendas passadas no Oriente.
2. Jorge Luiz Souto Maior, “Vencendo o terrorismo do medo: a hora da política“, Carta Maior, 24/06/2013
3. Música, Mil perdões, 1983.
4. Embora parte da grande mídia, no mesmo dia e no dia seguinte, tenha cumprido o que considera ser o seu papel de tentar convencer a “sociedade” de que os manifestantes não fazem parte da “sociedade”, que são vândalos e baderneiros, que não possuem uma consciência e que se equipararam à Polícia no poderio bélico e na prática de atos de violência, desvirtuando completamente os fatos, tudo para aniquilar o direito da manifestação popular.
5. E por isso que a graça quando se presta à agressão, ainda mais de forma seletiva, perde a graça e a sua função.
6. Os Simpsons, temporada 24, episódio 10.
7. Lincoln: “NICE WIG, GRANDMA”; Washington: “AT LEAST A CAN TAKE A BULLET”.
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Confira o especial Charlie Hebdo, no Blog da Boitempo, com reflexões, vídeos e artigos de Slavoj Žižek, Michael Löwy, João Alexandre Peschanski, Gilberto Maringoni, Osvaldo Coggiola, Tariq Ali, Ruy Braga, Julian Assange, entre outros. Veja aqui.
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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.
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