Tariq Ali: Guerra entre fundamentalismos

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Por Tariq Ali.*

Foi um acontecimento terrível. Foi repudiado em muitas partes do mundo e de maneira mais veemente por cartunistas de países árabes e de outros lugares. Os arquitetos dessa atrocidade escolheram seus alvos com bastante cuidado. Eles sabiam muito bem que tal ato criaria o maior dos horrores.

Foi a qualidade, não a quantidade que eles procuravam. Eles não dão a mínima para o mundo dos incrédulos. Como Kirilov em Os Demônios, romance de Dostoiévski, eles pensam que “se Deus não existisse, tudo seria permitido”.

Ao contrário dos inquisidores medievais da Sorbonne, eles não têm a autoridade legal e teológica para assediar livreiros ou donos de gráficas, proibir livros ou torturar escritores, de modo que se sentem livres para dar um passo além.

E os soldados de infantaria? As circunstâncias que atraem homens e mulheres jovens para esses grupos não são escolhidas por eles, mas pelo mundo ocidental no qual vivem – ele próprio é resultado de longos anos de domínio colonial.

Os terroristas que realizaram o massacre no semanário satírico Charlie Hebdo, em Paris, na quarta-feira (7), gritavam “Deus é grande”. Não faço ideia se eles acreditavam que tinham sido acolhidos por Deus ou que estavam a mando dele, mas o que sabemos é que os dois irmãos parisienses – Chérif e Said Kouachi – eram maconheiros cabeludos que viram imagens da Guerra do Iraque, em 2003, e, em particular, das torturas na prisão de Abu Ghraib e dos assassinatos a sangue frio de iraquianos em Fallujah.

Esses rapazes buscaram conforto na mesquita. Foram recrutados por radicais islâmicos que viram na “guerra ao terror” do Ocidente uma oportunidade de ouro para recrutar jovens tanto no mundo muçulmano como nos guetos da Europa e da América do Norte.

Enviados primeiro ao Iraque para matar americanos e, mais recentemente, à Síria (com a conivência do Estado francês?) a fim de derrubar Bashar al-Assad, eles foram ensinados a utilizar armamentos de forma eficaz. De volta à Europa, colocaram em prática os seus conhecimentos. Eram perseguidos e o semanário representava seus perseguidores. Deixar o horror nos cegar para essa realidade seria miopia.

O Charlie Hebdo nunca escondeu o fato de que continuaria provocando os muçulmanos com blasfêmias ao profeta. A maior parte dos muçulmanos estava com raiva, mas ignorou os insultos.

Para a publicação, era uma defesa dos valores seculares republicanos contra todas as religiões. O semanário atacava ocasionalmente o catolicismo, dificilmente – ou nunca – o fazia contra o judaísmo, mas concentrou sua ira sobre o islã.

A secularidade francesa de hoje significa, essencialmente, qualquer coisa que não é islâmica. Defender o direito de publicar o que quiserem, independentemente das consequências, é uma coisa, mas sacralizar um jornal satírico que dirige ataques regulares àqueles que já são vítimas de uma islamofobia desenfreada nos EUA e na Europa é quase tão tolo quanto justificar os atos de terror contra a publicação.

A França tem leis para restringir liberdades se há alguma suspeita de que elas possam causar agitação social ou violência. Até agora elas têm sido usadas para proibir apenas as aparições públicas do comediante francês Dieudonne por causa de piadas antissemitas e proibir manifestações pró-palestinos.

Mas isso não é visto como algo problemático por uma maioria de franceses que chia bem alto. Também não houve vigílias pela Europa quando se soube há alguns meses que foi utilizada tortura contra prisioneiros muçulmanos entregues à CIA por países europeus.

Há um pouco mais que sátira em jogo. O que estamos testemunhando é um conflito entre fundamentalismos rivais, cada um mascarado por diferentes ideologias.

A economia política da Europa está confusa e, na ausência de uma alternativa real ao capitalismo (não apenas ao neoliberalismo), o vácuo político vai crescer e novas forças emergem na luta pelo poder.

A extrema direita está em ascensão na França. Marine Le Pen está na vanguarda, liderando as pesquisas para a próxima eleição presidencial, sempre relacionando os recentes acontecimentos à imigração desenfreada e dizendo que ela sempre havia alertado para isso.

Que pena que o filme de Gilli Pontecorvo A Batalha de Argel (1966) ainda tenha que ser visto em Marselha. Algumas liberdades são claramente mais preciosa que outras.

* Publicado originalmente no jornal
Folha de S.Paulo em 11 de janeiro de 2015.

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Tariq Ali, 71, escritor paquistanês, é autor de O poder das barricadas (Boitempo) e de um dos artigos no livro de intervenção Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. É membro do conselho editorial da revista britânica New Left Review e colaborador da revista semestral Margem Esquerda.

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