Perfunctório
Por Izaías Almada.
O título é esse mesmo, amigo leitor: PERFUNCTÓRIO.
Qualquer bom dicionário da língua portuguesa explica o significado do adjetivo. Coisa ligeirinha, superficial, feita rotineiramente, sem grandes objetivos, não atendendo a uma utilidade em proveito individual ou coletivo, por exemplo.
E daí? O que é que esse tal de perfunctório é para aqui chamado? O que é que ele tem a ver com o dia a dia de cada um de nós?
Dou uma dica: muitas decisões supostamente impactantes nos campos da economia, da política e da moralização dos negócios públicos no Brasil não passam de medidas perfunctórias. E há muito tempo…
Começaria por dizer que desde o instante em que as naus cabralinas lançaram ferros no litoral baiano, a “terra brasilis” – se não descobriu – com certeza ampliou, com louvor, o jeitinho perfunctório de fazer e administrar grandes negócios e política.
Uma herança portuguesa, cuja intrepidez de seus bravos navegantes quinhentistas mais se caracterizou pela natureza predatória de nossas riquezas naturais e pela firme vocação burocrática. Que o digam os índios remanescentes e os negros, escravizados por mais de duzentos anos e os últimos a serem libertados no mundo. Além, é claro, do atávico e grosseiro machismo disseminado em nossa cultura.
Embora esforçados historiadores e sociólogos pátrios desde antanho tenham mergulhado na interpretação dos fatos e acontecimentos que nos formaram como nação, os anos – em particular os mais recentes – vão comprovando que, com raríssimas exceções aqui e ali, continuamos a trabalhar em cima da perna, perfunctoriamente, com perdão pelo uso do advérbio.
Bom, e daí? Qual é a novidade?
Não se trata da novidade, claro, mas lancemos um olhar – mesmo que perfunctório – sobre as campanhas eleitorais, por exemplo, quando o país consegue respirar um pouco de democracia entre suas ditaduras: ouvimos as mais belas intenções de resolver este ou aquele problema, os indefectíveis auto elogios, as grandes realizações, misturadas que são às tradicionais acusações aos adversários. Um rosário de bobagens que não passa de uma brincadeira perversa com o cidadão.
Faz parte do jogo, do faz de conta, dirão muitos. Sempre foi assim emendarão os resignados. E continuará sendo, perorarão os fatalistas.
Os brasileiros da minha geração se lembram muito bem da corrupção que beneficiou as construtoras na época da construção de Brasília, algumas delas até hoje em franca atividade, quer na realização de obras e também na transferência de divisas para outros países. Corrupção e apartamentos na Avenida Foch em Paris ou na Vila Nova Conceição, bem como fazendas e aeroportos particulares não são novidades entre nós. Muito menos as propinas internas do dia a dia.
E o slogan ‘rouba, mas faz’ de Adhemar de Barros em São Paulo nos anos 1950? Lembram-se? A eleição de Janio Quadros, com a encenação do uso da vassourinha, repetida anos depois com a eleição do “caçador de marajás”… Portanto, e os exemplos poderiam encher várias linhas do artigo, nada de novo no front… Em corrupção, aliás, as únicas coisas que não são perfunctórias são a grana que corre de mão em mão e os impostos sonegados…
Temos uma justiça perfunctória, de classe mesmo, partidarizada, e uma polícia conivente com as tramóias e a impunidade. Tudo como manda o figurino há quinhentos anos, onde a senzala tem de se submeter aos privilégios – quaisquer sejam eles – dos poucos integrantes da Casa Grande. Há que se criar um, dois, três novos Palmares. Ou um, dois, três novos Guevaras!
Calma, senhor articulista, não vá com tanta sede ao pote, calma! Não seja radical. Agora vai ser diferente.
Não ficará pedra sobre pedra, é isso, caro leitor? Muito embora na construção de Brasília o ditado tenha sido, por necessidade das circunstâncias, exatamente o inverso: era preciso que ficassem pedras sobre pedras, senão… Às vezes caem alguns viadutos por aí.
Está bem, vou me conter um pouco: afinal, novo governo, novas ideias. O tema da governabilidade outra vez em alta. Mãos estendidas ao diálogo e à distensão. Apuradas as urnas, mãos a obra. Quanto à corrupção, tudo será apurado, doa a quem doer. A propósito: do que se trata mesmo a tal história da privataria naquele festival de privatizações e roubalheira acobertado por um imortal acadêmico?
Contudo, como será o novo Joaquim? Servirá ele à economia como o outro se serviu da justiça? De repente o lugar comum vem à tona: no Brasil não se governa sem alianças ou pelo menos sem determinadas alianças. Quem tentou, ou se matou ou foi deposto.
Fazer alianças com o diabo tornará o inferno mais confortável?
Mas o mundo é outro, a realidade é dinâmica, tudo muda muito depressa… O senhor articulista não pensa assim?
Sério? O mundo é mesmo outro? Mudou assim tão rápido? Já não vivemos mais no capitalismo, então? Acabou o mais valor? A exploração do trabalho? Os meios de produção pertencem ao estado? O capital especulativo foi enquadrado? As grandes fortunas foram taxadas? O salário mínimo foi para três mil reais no Brasil? A democracia é participativa?
Lá vem o senhor outra vez com essas ironias… O Brasil não será o mesmo daqui para frente.
Claro que não será. Como é mesmo aquela história dos passos? Um passo atrás e dois à frente? Ou seria um passo à frente e dois atrás? Já faço alguma confusão com esses enunciados.
Boas festas e um ano de 2015 melhor para todos. E aqui, sem ironias.
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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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