Berlim: até mais ver
Por Flávio Aguiar.
Não, não estou me mudando. Continuarei morando em Berlim, pelo menos pelos próximos anos.
Mas pretendo mudar de assunto.
Não que falte assunto em Berlim, na Alemanha, ou na Europa.
Agora mesmo, por exemplo, dois temas marcantes emergem neste fim de ano.
Um deles é que pela primeira vez há um chefe de governo da Linke (“A Esquerda”) numa província alemã, a Turíngia. Desde a queda do muro (1989) esta província do antigo Leste era governada pela conservadora CDU (União Democrata-Cristã), partido da chanceler Angela Merkel. Na eleição deste ano (na Alemanha as eleições não coincidem, cada província tem seu próprio “timing”) a Linka foi a mais votada, e formou uma coalização com o SPD e com os Verdes.
Nossa! Foi uma comoção, um terremoto! No dia da votação que elegeu Bodo Ramelow, um ex-sindicalista e militante da Alemanha Oriental, houve protestos em frente ao Parlamento local, pedindo sua destituição por ser um remanescente do “comunismo”. (Convenhamos: parece a turma que pede a volta da ditadura no Brasil ou o impeachment da presidenta Dilma.) A chanceler Angela Merkel fez um pronunciamento no Bundestag advertindo o SPD (em coligação com a CDU no plano federal) sobre isso de fazer aliança com a Linke. Um juiz prrovincial está ameaçando retirar a imunidade de Ramelow para que ele possa ser processado por um confuso caso de manifestações pró e anti-nazis em 2010… Enfim, uma melée, para não dizer meleca.
Por falar em nazis, este é o outro assunto em ascensão por aqui neste final de ano. Há uma instituição aqui na Alemanha, que se chama “Casa para Refugiados”. (Como há agora no Uruguai para receber os refugiados de Guantánamo.) Normalmente elas (são várias) recebem refugiados do terceiro mundo. Já receberam, no passado, refugiados do Vietnã. Houve um grave incidente depois da queda do muro: um grupo de neonazis tacou fogo na casa dos vietnamitas e houve vítimas fatais.
Diante da resolução de criar mais uma em Berlim os neonazis se agitaram de novo, e estão fazendo manifestações semanais contra, no bairro, com apoio de parte da população local. Agora o caso se agravou mais ainda, porque na Baviera queimaram uma destas casas (desta vez sem vítimas) e deixaram suásticas nas paredes em volta, de lembrança. Uma confusão, mostrando que a Alemanha também está acertando o passo com outros países da Europa onde o movimento anti-estrangeiros, da extrema-direita, está ganhando impulso – e votos.
Como eu disse, assunto não falta. Mas… assim caminha a humanidade: volúvel, desde os tempos de Adão e Eva. E eu quero mudar de assunto.
Então de momento aproveito a despedida do ano para me despedir também das “Crônicas de Berlim”. Vou para outro rincão.
Rincão? Para a cozinha, melhor falando.
Faz tempo estou planejando escrever um livro de crônicas encadeadas, chamado de “A conquista da cozinha”. Não é um livro de receitas, embora algumas venham eventualmente a comparecer. Trata-se de um livro épico, sobre a conquista de um território, algo assim como a Ilíada, ou dos sete mares – como no caso dos Lusíadas.
Minha cidade murada, meu mar proibido era a cozinha, território exclusivo das mulheres, fossem donas de casa ou empregadas domésticas. Havia a churrasqueira, é claro, pois estávamos no Rio Grande do Sul. Até mesmo a churrasqueira invisível, aquela feita apenas de uma trempe (grelha no resto do Brasil) com pés ou simplesmente disposta sobre uma armação de tijolos, ou ainda os espetos cravados na terra, no caso do método ser o do fogo de chão, uma vala cavada e cheia de carvão. Este era um território exclusivamente masculino (agora não é mais, o tempora, o mores, as mulheres estão até usando bombachas!).
Mas a cozinha não: aquilo do arroz-feijão de todos os dias, as massas, os bifes, as saladas, as sopas, as polentas, as sobremesas, os tachos de goiabada, as galinhas na panela ou no forno (galeto era do mundo da churrasqueira), o fogão, primeiro a lenha, depois a gás, o fogareiro a querosene, todo este mundo pertencia somente às mulheres.
Mas o fato é que pouco a pouco, por vezes em batalhas fragorosas e renhidas, por vezes através da infiltração sibilina ou da espionagem solerte e suspicaz, terminei por adentrar, invadir e conquistar esta Tróia que parecia inexpugnável, cruzando este oceano da alquimia doméstica. Esta é a história que pretendo contar em 2015.
Feliz Natal, Passagem de Ano, e até lá!
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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