O encanto da vida

14.10.31_Roniwalter Jatobá_EncantoPor Roniwalter Jatobá.

Quem nunca sonhou com uma vida de aventuras no estilo Indiana Jones? Acho que muitos, principalmente aqueles nascidos na selva de São Paulo. Quando criança sonhei em ser aventureiro, quando me via atravessando savanas cheias de animais no continente africano, matas com imensas jibóias e rios cheios de peixes, na Amazônia. Talvez essas imagens infantis tenham vindo das incríveis histórias de meu pai, que durante mais de um ano viveu no Pará. O velho João contava que morou num lugar distante “dois dias de barco de Belém”, num improvisado rancho à beira de um rio, onde nas noites ouvia do quintal rugidos de onças famintas e pescava piranhas usando apenas um pano vermelho.

Nos fundos de casa, copiava as aventuras paternas. Outro dia, era mocinho e à tarde bandido. Com amigos rolava no capinzal macio e morada de formiga se transformava em montanha e despenhadeiro. Balas de revólver zuniam na imaginação. Porcos, galinhas, perus viravam manadas de elefantes ou zebras e cabo de vassoura cavalo veloz. Na manhã seguinte já virava corajoso caçador. Adorava os perigos e abominava a vida calma e serena da vidinha de sempre.

Hoje, adulto, ao contrário sonho com vivências de tranquilas calmarias. Mais perto de todos nós, homens comuns. Quando penso nisso, logo vem à memória a figura de Orestes Nesti, e seu livro, Da Fenícia à Paulicéia, de ensaios sobre a história da cidade de São Paulo.

Conheci bem a vida desse paulistano. Nasceu em 1913. Foi criado na Aclimação. A sua primeira casa foi na Rua Espírito Santo, naquele tempo calçada com pedras irregulares e iluminada a gás. Perto dali, na Rua Pires da Mota, havia um vale profundo com uma bica que fornecia água potável para todas as casas da vizinhança.

– Um vizinho, Aristodemo Gazzotti, morava numa vila da minha rua – ele me disse um dia. – Aos domingos, costumava transformar a janela de sua casa em um teatro que encantava adultos e crianças, contando histórias inventadas ao sabor de nossas reações.

Em 1920, seus pais mudaram para a Alameda Tupi, no bairro de Caaguaçu, atual Rua José Maria Lisboa, no hoje Jardim Paulista. Entrou na antiga Light em abril de 1928, como auxiliar de escrita. O escritório da empresa canadense era na Praça Antonio Prado, num edifício que serviu mais tarde ao Citibank e à Bolsa de Cereais. Ele dizia:

– Houve um tempo em que a Praça Antonio Prado passou por uma reforma e a gente ficava vendo das janelas os trabalhos de escavação, frequentemente interrompidos pelo achado de ossadas humanas, remanescentes do cemitério da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que havia existido no local.

Em 1929, foi inaugurado o novo prédio da Light e Orestes foi transferido para a Rua Xavier de Toledo, esquina com o Viaduto do Chá. Trabalhou ali por mais três anos e pediu demissão. Foi pressionado por seus pais, que se preocupavam com o seu crescimento muito rápido. Voltou, depois, em 1935.

– Casei-me em abril de 1940 com Beti Luters, uma união que durou cinquenta anos.

Deixou netos e bisnetos. Sempre gostou de música. Ainda menino, quando estudava no ginásio, foi convidado a integrar o coro que acompanhava as cerimônias religiosas da igreja do Carmo. Quando o escritor Mário de Andrade criou, em 1938, o Coral Popular, juntamente com o Coral Paulistano e o Coral Lírico, lá estava ele como cantor. No Coral Lírico ficou até a idade limite de 70 anos, quando foi obrigado a se aposentar.

– Eu ainda estava no Teatro Municipal, trabalhando paralelamente na Light, quando propus a formação de um coral com os funcionários. A ideia logo se transformou em realidade: fundado em 14 de outubro de 1947, o Coral Lightiano atuou brilhantemente em espetáculos e nas solenidades oficiais da empresa. Permaneci como regente até a minha aposentadoria em 1968. Mas não pense que abandonei a música, pois continuo atuando em corais. Ainda escrevo. Além disso, tenho as minhas composições musicais. De vez em quando faço alguma coisa: um motete, uma missa, geralmente música sacra.

Toda trajetória nesse “vale de lágrimas” tem o seu encantamento. Outra vida que admiro é a de meu irmão mais moço. Veio para São Paulo cheio de garra, onde trabalhou alguns anos. Foi operário na Goodyear, nas proximidades da Avenida Celso Garcia. Saía de manhã, tarde ou noite, conforme o horário, cuspindo a borracha preta dos pneus. Não se acostumou. Vivia triste, saudoso. Foi embora. Vive na roça. Planta e colhe ao sabor do tempo. Longe da metrópole, tem cinco filhos e uma vivência sem aventuras, mas sempre sem se abater como Orestes Nesti. A rotina é tão tranquila como o lento escorrer das águas puras do rio Aipim, onde toda tarde, ao pôr do sol, toma frios e revigorantes banhos. Um dia me disse:

– O mundo é grande visto de qualquer lugar.

***

Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, Minas Gerais, em 1949. Vive em São Paulo desde 1970. Entre outros livros, publicou Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura 1976); Crônicas da vida operária (finalista do Prêmio Casa das Américas 1978); O pavão misterioso (finalista do Prêmio Jabuti 2000); Paragens (edidado pela Boitempo, finalista do Prêmio Jabuti 2005); O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e Contos Antológicos (2009). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

1 comentário em O encanto da vida

  1. Leiliane Silva // 05/11/2014 às 8:02 pm // Responder

    OLÁ BOA TARDE! ESTOU FAZENDO UM TRABALHO SOBRE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, E PRECISO FAZER A ANALISE DO POEMA AUSÊNCIA, SERÁ QUE PODERIAM MANDAR ALGUM MATERIAL QUE VENHA AMPLIAR MEU TRABALHO POR FAVOR??! ATT: Leylla Abçs

    te: Fri, 31 Oct 2014 14:33:42 +0000 To: leilianny.silva@hotmail.com

    Curtir

1 Trackback / Pingback

  1. O encanto da vida | MANHAS & MANHÃS

Deixe um comentário