O lulismo, a nova política e o libertador
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Por Daniel Bin.*
O Brasil entra na última semana de campanha da eleição presidencial com indefinição tal que não encoraja muitos a arriscar um prognóstico. Nos primeiros momentos do segundo turno, parecia haver uma tendência de Aécio rumo à liderança. Agora, parece que os ventos começaram soprar a favor de Dilma. Claro que até o dia da decisão o quadro pode novamente mudar, o que não surpreenderia.
Independente de confirmar-se ou não, a possibilidade de Aécio vencer ajuda a corroborar hipóteses sobre os limites do lulismo. Retroceder o ponto de partida desta análise em algumas semanas, quando Marina aparecia como favorita à segunda vaga no turno decisivo, pode ajudar na compreensão do fenômeno. Naquele momento, o que se via era a escalda das intenções de voto em uma candidata que, em palavras outrora ditas pela coordenadora de sua campanha, “entra no senso comum da sociedade, do ponto de vista de negar a política, de negar partido.” O desfecho já é conhecido; aquela “nova” política desabou quase tão rapidamente quanto ascendeu.
O PSB, a considerar os passos inicias que dera junto do PSDB nas críticas à execução da política econômica e nas promessas de resgate da ortodoxia neoliberal, não surpreendeu ao aderir a Aécio. Tampouco surpreendeu o igual gesto de Marina. Era o que apontava a sua defesa de uma política econômica que lhe valera, assim como a Aécio e Campos, a simpatia por parte das classes dominantes – destacadamente a finança. Simpatia, diga-se, bem superior à experimentada por Dilma, cujo partido, é bom lembrar, não assusta mais nenhum capitalista tanto quanto fazia antigamente.
Derrotada Marina, que procurou se distinguir das duas principais forças partidárias, Aécio, mesmo liderando uma dessas forças, herdou o sentimento de parte significativa do eleitorado da terceira colocada no primeiro turno. Aécio foi rápido em incorporar ao seu discurso a retórica mais eloquente de Marina. Diz ele que sua candidatura representa não um partido ou grupo político, mas um projeto. A mimetização se completa com o tom messiânico propagado por meio da figura do libertador. O projeto, enfim, é apresentado como aquele que busca desalojar o PT do poder formal; que visa a libertar o país das mãos desse partido. Isso parece soar como música aos ouvidos de quem nutre sentimentos antipetistas.
Mas como a retórica da negação – em si uma contradição, pois negar a política é tática política – outrora ensaiada por Marina e agora apropriada por Aécio conseguiu angariar tamanho apoio?
Não acredito que a resposta possa ser encontrada naquilo que era apresentado sob o signo do “novo,” pois este padece de falta de substância. No caso de Marina, aquela retórica se esvaiu assim que pautas conservadoras despontaram para adequar os objetivos eleitorais às estruturas política e econômica já constituídas. Para Aécio, o “novo” é ainda mais difícil de emplacar, afinal ele é um daqueles que Marina outrora classificava como representante da velha política. Em termos concretos, o conteúdo neoconservador de seu projeto faz este tão socialdemocrata quanto (não) foi a prática do PSDB em sua passagem pelo executivo federal. Também soa como música, agora aos ouvidos das classes dominantes, quando Aécio se diz “preparado para decisões impopulares.”
Em termos de conciliação de classes, os governos petistas, em especial no período Lula, foram mais competentes que seus antecessores. Talvez parte da explicação sobre como a negação da política angariou apoio esteja na forma como o PT mediou as relações entre classes e as relações destas com o estado. Governos que ampliaram políticas favoráveis a demandas materiais das classes subalternas foram ainda mais generosos com as classes dominantes. O paradoxo é bem descrito por Chico de Oliveira ao perceber que no primeiro governo Lula inverteu-se o segundo termo da velha equação gramsciana ‘coerção + consentimento = hegemonia’: “não é mais o dominado quem consente com a sua própria subordinação; agora é o dominante que consente ser aparentemente ‘liderado’ por representantes dos dominados” (New Left Review, n. 42, p. 22).
Ou seja, a “negação” da política começou bem antes, não com discursos, como agora, mas por meio de práticas de cooptações e coalizões tanto à esquerda como à direita. A experiência oposicionista do PT lhe ensinou que se quisesse governar com mais tranquilidade do que desfrutaram governos que o antecederam precisaria ter ao seu lado lideranças capazes de mobilizar as massas. Assim, observou-se ao longo dos últimos anos, junto do preenchimento de posições nos gabinetes da Esplanada, nas diretorias de empresas estatais e de seus fundos de pensão, um afastamento do próprio partido em relação aos segmentos sociais que lhe deram origem. Conforme apontou André Singer, “[o] lulismo, ao contrário do que fazia o PT até 2002, não acentu[ou] a necessidade da organização e mobilização da classe trabalhadora.”
Outros movimentos do PT serviram ainda para nivelar antagonismos sobre projetos. Citando apenas um exemplo, lembro que a primeira reforma sobre a qual Lula jogou boa parte do seu prestígio de presidente recém empossado foi a da previdência dos servidores públicos. O ataque sobre os trabalhadores iniciado por FHC nesse campo, que, contudo, só foi capaz de atingir aposentadorias na iniciativa privada, foi completado por Lula. Sobre as classes dominantes, nenhuma investida capaz de reduzir de forma substantiva as desigualdades materiais, o que poderia advir, por exemplo, de uma estrutura fiscal menos regressiva. Para os dominados, lembra Giovanni Alves, “[a] ideia de cidadania reduziu-se à ideia de acesso ao mercado de consumo de massa.”
Marina disputava um espaço aberto ao longo da mais de uma década de hegemonia petista, e certamente conquistou uma parcela importante nesse espaço. Aécio agora busca atrair para o seu lado essa mesma parcela, o que também parece estar conseguindo em alguma medida. Se será suficiente para vencer, como já disse, pouco importa para os objetivos desta análise. O que importa é que a retórica da negação da política encontrou eco junto a parcelas significativas do eleitorado. Uma delas é a que entrou na cena política tendo crescido em um contexto marcado justamente pelo empobrecimento do debate.
Tal empobrecimento político tem como sinal importante a negação da luta de classes tentada pelo lulismo. Mas como a história se move a partir de contradições, eis que Dilma recorre à suspensão da conciliação como tática eleitoral, apresentando a si como representante das classes subalternas e Aécio como representante das classes dominantes. Se Dilma vencer as eleições, é provável que retome a estratégia conciliadora. Se for Aécio, tal estratégia deverá encontrar maior dificuldade, afinal, parafraseando André Singer, é possível que acentue-se a necessidade de organização e mobilização da classe trabalhadora.
Meu prognóstico é que a estratégia conciliadora será retomada em breve. Ocorre que os seus limites já foram expostos, como salientaram as Jornadas de Junho de 2013.
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Daniel Bin é doutor em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) com estágio na Universidade de Wisconsin-Madison, é professor de políticas públicas na Universidade de Brasília e pesquisador e pesquisador visitante da Universidade Yale, EUA. Email: danielbin@unb.br Dele, leia também A financeirização da democracia brasileira, A (in)visibilidade da luta de classes nas Jornadas de Junho, e “Uma pessoa, um voto”, ou “um real, um voto”?, no Blog da Boitempo.
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