O Brasil visto de Berlim

14.10.16_Flávio Aguiar_O Brasil visto de BerlimPor Flávio Aguiar.

É difícil, é difícil, é difícil.

Há uma esquerda no Brasil – uma, porque há várias, e um dos problemas das esquerdas no Brasil e no mundo é o de que cada facção acha que só ela é a “autêntica” – que teima em dizer que o PT e seu governo não são “esquerda”, são “direita disfarçada”.

Há quem diga até que o PT e seu governo (Dilma) cooptam os mais pobres para neutralizar os “verdadeiros interesses” da classe trabalhadora. Quem fala por estes “verdadeiros interesses”? A vanguarda, claro. Jamais “a classe trabalhadora”, para aquela uma abstração subsumida ao seu discurso.

No momento, há uma disputa real sim no Brasil. Não é só entre um projeto e outro, embora seja claro que isto exista. É entre voltar a achincalhar os miseráveis e os ex-miseráveis que conseguiram melhorar um pouco seu nível de vida, ou melhorá-lo ainda mais.

É entre melhorar o salário das pessoas ou piorá-lo. Entre possibilitar o acesso à educação a mais ou a menos pessoas.

Entre manter os vínculos do Brasil com a política de aproximação Sul – Sul ou retocá-lo para o aprisco Ocidental da reedição da Guerra Fria que está em curso.

É disto que se trata, não de provar esta ou aquela teoria. Ou de aquele grupinho tem razão sobre o outro.

Leio muita coisa sobre o Brasil escrita no Brasil, e fora dele. Às vêzes me espanta como ambos os lados da escrita ignoram o que se passa no mundo.

A direita faz um carnaval na Europa. Deita e rola, seja na extrema, na médio ou na centro-direita. As esquerdas estão prostradas. Os partidos social-democratas e socialistas rendidos. As escolas de economia só ensinam a ortodoxia. Aqui na Europa só impera o pensamento único, que é o do PSDB no Brasil. A débâcle das esquerdas é mundial. As esquerdas ainda não se recuperaram das pedras do Muro de Berlim que lhes caíram pelas cabeças. Com exceção, vagarosa, mas exceção, da América Latina. E do Brasil.

Mas tem gente que quer que o Brasil seja uma ilha neste oceano de desventuras. Ou seja, que sobrenade por si só, realizando o socialismo de imediato – amanhã já seria depois demais. É o mesmo pensamento, com outros signos, de quem quer que o Brasil se transforme numa ilha verde – na verdade um parque de diversões para ongues ecológicas – em meio à turbulência das emissões de carbono em escala global. O verde é desimportante? Claro que não. O Brasil precisa de um Partido Verde de Verdade. Não estes puxadinhos biocapitalistas em que o PV e a candidatura malograda de Marina se transformaram.

Mal comparando, penso em mim se eu estivesse na Batalha de Stalingrado. Eu poderia me levantar na trincheira e gritar: sou um pacifista, proponho que deponhamos todos as armas e instalemos um soviete internacional entre russos e alemães. Ou ainda eu poderia propor: não, façamos um seminário acadêmico na trincheira 17 sobre a traição mútua à luta de classes representada pela falácia nazista e a cooptação stalinista. Sou um pacifista? Sim, e entusiasmado. Mas…

Tudo bem: eu não estava na batalha de Stalingrado.

Mas estou na do Brasil, de 2014.

E lá como aqui, há o momento de deixar as dúvidas de lado e partir para – agora – o voto.

Não se trata de esquecer as dúvidas, nem as críticas. Pelo contrário. Elas voltarão ao proscênio.

A seu tempo.

O momento agora é de votar.

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Eleições630p

Especial Eleições: Artigos, entrevistas, indicações de leitura e vídeos para aprofundar as questões levantadas em torno do debate eleitoral de 2014, no Blog da Boitempo. Colaborações de Slavoj Žižek, Mauro Iasi, Emir Sader, Carlos Eduardo Martins, Renato Janine Ribeiro, Edson Teles, Urariano Mota e Edson Teles, entre outros. Confira aqui.

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

1 comentário em O Brasil visto de Berlim

  1. Rafael Kraus // 17/10/2014 às 9:30 am // Responder

    “teima em dizer que o PT e seu governo não são “esquerda”, são “direita disfarçada”.
    Isso se prova e se demonstra com estatísticas (IBGE,PNAD,etc) e com um apertado e acalorado “passeiozinho” de ônibus.

    Quer refutar as vanguardas? Pois terá de se dar mais espaço e mais trabalho (crítico, de preferência, lembra-se?) do que um paragrafozinho minguado e arrogante, e tente realizá-lo enfrentado Marx, Engels, Lênin, Stálin, Ho Chi Mihn, Hoxha, Fidel,etc, e não vale mais historiografia burguesa à la Grupo Record ex catedra , trotskista (xiiii, estou lascado…), antissoviética, antistalinista(de longe, a arma mais letal já cuspida pela besta anticomunista) e profundamente desonesta. Se estiver precisando dos livros fora de catálogo e edição das décadas de 50,60,70 e 80 (editora Progresso, Avante!, Estampa, pequenas editoras, livros marginalizados e perseguidos, etc,etc, posso negociar um empréstimo…). Provavelmente não se atreverá a sequer mandar traduzir os títulos de livros de países e línguas do leste europeu(embora esteja próximo e tenha o privilégio do alemão como chave para tal), e muito menos se afetará pela ideia da necessidade de aprender o que escreveram e o que andam escrevendo os tais russos, “os herdeiros de Lênin”… Experimente! Marx em alemão é chique, hein!

    “É entre voltar a achincalhar os miseráveis e os ex-miseráveis que conseguiram melhorar um pouco seu nível de vida, ou melhorá-lo ainda mais.”

    De reformas e reformistas o inferno está cheio… Peça um convite e talvez lhe recebam até com champanhezinho servido pelo garçom que acabou de encher o copo do seu Cabral, que anda sumido…
    Quero mais, meu caro autor, e quero logo. Conhece outra receita? Sim, conhece, né, faça um esforçinho de memória, bitte.

    Depois de doze anos de PT, a desigualdade ainda é insana, indecente e perversamente alienada (lembra do termo?). Conheço um atalho…
    Recomendo-lhe o clássico “Síntese de indicadores sociais: Uma análise das condições de vida do povo brasileiro. 2013 (IBGE).” Leitura um pouco fria, né, coloque a Nona e deguste alguns daqueles vinhos típicos de Freiburg, e tente usar a imaginação, atributo que tem em alta, eu o sei, para realizar alguns joguinhos mentais (são mais baratos, certo?) sobre os sujeitos e situações REAIS que res-presentam( sem aspas).

    Melhorar o salário das pessoas? Claro, se comparados com o passado, somos a terra do rei Salomão, MAS e se coloco esse fatorezinhos que insistem em inconvenientemente entrar em jogo, como aumento do custo de vida, aumentos dos impostos (sim, melhores que o passado, blábláblá, mas ainda assim absurdos e desproporcionais para 96% da classe trabalhadora (acho que é gente pra c…, não acha?),etc. Veja as tabelas 5.1 e 5.2 do clássico já citado. Mais vinho…

    E, ah: miséria absoluta >>> miséria. O resto é pobre e um restinhitinhotinhotinho é a tal elite, um lixo de elite, mas, enfim, uma elite.
    “(…)política de aproximação Sul – Sul“
    Hummm, a paciência já está estiando, já está estiando… Vou ser breve:
    Unilever, Brasil Foods, ImBev, Coca-Cola, Hypermarcas, JBS, Kimberly-Clark, Nestlé(hummm), Proctor&Gamble, Reckitt Benckister, Fiat, Volkswagen, Chevrolet, Ford, Renault, Carrefour, Walmart, Pão de Açucar (França), Marfrig, JNS Friboi, BRF, Rede globo, SBT, BAND, RECORD, OI, VIVO, TIM, CLARO, NET/Embratel, Kroton, Unopar, Uniasselvi, Anhanguera,etc,etc,etc,etc, e não vou nem falar dos bancos e das empreiteiras que é covardia. Todas deitaram e rolaram com “o partido dos trabalhadores” e seus saudosos aliados. O imperialismo aqui é tão forte e predatório quanto… desde sempre. Ah , o Lula rugiu contra o FMI, já tinha me esquecido…

    Sim, Lula é “o cara”!

    O resto do seu artigo foi escrito de olhos fechados, certo? Bom , vamos dizer que sim… Quem sabe o Habermas não te chame de “o cara”.

    O momento agora é de votar…
    NULO. (Como Mauro Iasi, no artigo “logo ali atrás”. Leiam!)

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