O som de Junho
Por Lincoln Secco.
Junho não marcou apenas um novo ciclo político no Brasil. Decerto ele também terá seus reflexos artísticos, comportamentais e literários. O novo vocabulário político, a gíria e o jargão se consolidaram (os “coxinhas” que o digam). As inovações táticas das lutas de rua e, para desprezo de velhos esquerdistas, até mesmo o anarquismo (que já renascia na literatura e nas ações editoriais bem antes), retomaram um espaço que há muito não possuía.
Entre os sons de junho, houve a retomada de uma antiga forma de conteúdo sempre contestador. Mau, o antigo vocalista da banda de punk rock mais lendária do ABC paulista (Garotos Podres) uniu-se a bons músicos (Kaká Saffiotti, Shu e Uel) para criar “O satânico Doutor Mao e os espiões secretos”.
No primeiro CD a referência a Junho é evidente na faixa “Repressão Policial”. Curiosamente, as jornadas juninas não racharam somente grupos políticos. Pouco antes os Garotos Podres já estavam acabando por motivos ideológicos. O vocalista ficou cada vez mais isolado na defesa de posições de esquerda contra os que aderiram às teses neoliberais e neofascistas, seguindo músicos como Lobão e Roger, outrora “contestadores” quando isso era moda nos anos 1980.
O CD do Satânico Dr. Mao não rompe com seu passado, mas se compromete com as lutas do presente. Uma das características dele sempre foi o humor e, particularmente, uma auto-ironia que desconstrói seu radicalismo estético no exato momento em que o afirma.
Mas aqui se mostra a sua inteligência artística e política (indissociáveis): ao ironizar a fórmula secreta para uma bomba ou imaginar uma improvável destruição da Casa Branca, o que se nos revela é o caráter ridículo da auto-propaganda dos Estados Unidos e de seus porta vozes midiáticos. Afinal, se todo mundo foi obrigado a ouvir a falsa acusação de que Sadam Hussein possuía o que não tinha, qual o problema de defendermos a “democratização das armas de destruição em massa”? Para isso, basta ouvir Mao a ensinar um pouco de termodinâmica…
Até mesmo o humor com uma batida respeitável (faixa “Espião Secreto”) não deixa de fazer eco à espionagem internacional denunciada por Assange, Snowden e outros.
É claro que não faltaram ao CD as tradicionais “homenagens” políticas. Mao gravou “Avante Camarada”, hino do Partido Comunista Português e SAM Song, uma música irlandesa dedicada ao IRA cuja Gaita cromática de Kaká Safiotti a torna irrecusável. Também a clássica Guantanamera aparece neste CD de forma inesperada: a voz do vocalista, “envelhecida” e mais rouca deixa a canção muito melhor.
Por fim, a participação de João Gordo (Ratos do Porão) com sua voz gutural na música clássica do punk cruspiano dos anos 1980 (Hospício) fecha um disco digno das Jornadas de Junho.
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Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicou pela Boitempo a biografia de Caio Prado Júnior (2008), pela Coleção Pauliceia. É organizador, com Luiz Bernardo Pericás, da coletânea de ensaios inéditos Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, e um dos autores do livro de intervenção da Boitempo inspirado em Junho Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Colaborou para o Blog da Boitempo mensalmente durante o ano de 2011. A partir de 2012, tornou-se colaborador esporádico do Blog.
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