Educação ou cultura?

14.10.01_Christian Dunker_Educação ou cultura_1[Fotogramas do filme Brasil S/A (2014), do diretor pernambucano  Marcelo Pedroso]

Por Christian Ingo Lenz Dunker.

A retórica de campanha dirá que o melhor de Lula já estava em FHC, e que o melhor de Marina já estava em Dilma. Se os tempos benfazejos estão sempre à procura de pais, nem tudo é economia e nem sempre a continuidade é a alma do sucesso.

Os doze últimos anos vêm sendo caracterizados como uma época na qual a política cultural brasileira profissionalizou-se. O Estado abandonou sua pretensão dirigista e construiu um novo sistema de produção cultural baseado em leis de incentivo por meio das quais uma parte dos impostos é redistribuída para iniciativas culturais por meio de um complexo processo jurídico administrativo do qual participam o artista e a empresa patrocinadora. Em vez de leis nacionalistas que prescreviam a posse, uso ou propriedade de meios culturais para diretores, artistas e intérpretes brasileiros, basta que a peça seja adaptada à linguagem e à cultura de nosso país.

Talvez o ciclo desta política cultural tenha se encerrado, não sem deixar bons frutos. Contudo, o principal efeito indesejável, a ser enfrentado pelo novo presidente, é a organização da educação e da cultura ao modo de condomínios. Por condomínio, neste contexto, devemos entender a formação de áreas fortificadas e protegidas, no interior das quais emergem síndicos, gestores ou administradores de um lado e regras formais, códigos de regulação e métricas de comparação por outro.

Uma revolução normativa semelhante ocorreu no âmbito da educação. A abertura de cursos e universidades não segue mais obscuros critérios clientelistas, mas está facultada a qualquer um que conheça os trâmites e esteja suficientemente adaptado à linguagem e à cultura do Conselho Nacional de Educação. Com isso formaram-se gigantescos condomínios educacionais, nos quais vigora uma espécie de indiferença ao conteúdo e à excelência. Não é só que isso seria uma subserviência ao mercado de trabalho, mas a tônica, até certo ponto aceitável, de que primeiro é preciso incluir – colocar todas as crianças na escola, oferecer uma cobertura universitária acessível a todos –, depois pensamos na qualidade.

Cultura e educação tornam-se, por meio desta mutação política, extensões “vigiadas” do mercado. Dois condomínios que funcionam com síndicos que se desconhecem. Garantidos por critérios de seleção mínimos e pela ação gradual, persistente e civilizatória do mercado, cedo ou tarde, com o auxílio da mão invisível do Estado regulador, a qualidade emergirá da quantidade.

Segundo a política originada em FHC e aprofundada por Lula e Dilma, cultura e educação devem se organizar em uma mesma superfície formal sem que ao mesmo tempo exista continuidade real entre elas.

Formação

Cultura e educação são definidas cada vez mais em termos de forma, processo ou métrica sendo o conteúdo deixado à deriva. Cumpridos os requisitos, a qualidade seria indiferente. E o contrário disso não precisa ser uma política autocrática, elitista ou popular, que definiria hierarquias. Ocorre que é justamente a indeterminação entre o ponto onde começa a cultura e onde termina a educação que serve de base para um dos conceitos mais importantes na gênese de cada uma destas áreas – a saber, a noção de formação. Em uma síntese brutal, formação quer dizer que a forma da educação deve admitir a universalidade da cultura como conteúdo, e que, respectivamente, a forma da cultura deve reconhecer que seu conteúdo é a educação das experiências particulares. Sem essa flutuação cruzada, sem essa zona de indeterminação na qual educação e cultura se recobrem sem que consigamos distinguir a quem pertence este condomínio, a formação perde sua função de tratar contradições sociais, ou seja, sua função “terapêutica”.

Os grandes benefícios trazidos pelas novas leis de incentivo cultural e pelos novos marcos regulatórios na educação, esqueceram-se que o preço a pagar pela agilidade técnica e pela definição operacional de suas áreas era justamente a importância desta indeterminação. Surge assim uma paradoxal escolha com a qual somos cada vez mais confrontados. Temos que fazer uma espécie de escolha que jamais deveria ser colocada: o que você prefere, educação ou cultura?

Se você quer se beneficiar das leis de incentivo à cultura, afaste-se da educação, ou esconda-a debaixo do tapete. É verdade, que se você for pedir um financiamento ou incentivo e mencionar que seu projeto tem fins, meios ou agentes de natureza educativa, você será remetido sumariamente a outro departamento. Algo como: guichê errado, educação é do outro lado. Inversamente, se você estiver em uma universidade pública siga a diretriz: ensino, pesquisa e extensão. Mas não esqueça: extensão deve significar serviço à população. Se você deixar transparecer que há uma contribuição cultural efetiva ou pretendida o financiamento tende a declinar, a não ser nas áreas nas quais a cultura é atividade fim (mas aí não estamos mais falando em extensão).

Há um amplo consenso prático e teórico de que essa separação é no mínimo bizarra. Afinal, porque teríamos que escolher entre educação ou cultura como se estivéssemos em uma daquelas piadas sobre o funcionamento burocrático dos países comunistas? O que queremos é uma educação dotada de alto valor cultural e uma cultura que possua grande potência educativa.

Do sistema Capes de avaliação das pós-graduações aos inovadores referenciais da educação infantil; da publicidade à música erudita e incluindo a manutenção do sempre eterno ECAD, passando pela crise das curadorias, cultura e educação tornaram-se tarefas para administradores (assim como a saúde, mas em sentido ligeiramente diferente). Que um artista se torne administrador isso não muda o fato. A continuidade que encontramos de FHC a Dilma passando por Lula é dada tanto pela referência comum ao mercado quanto pelo papel do Estado como aquele que administra, intermedia e regula o pólo da produção. O pólo do consumo, por sua vez, ficará a cargo da educação. A formação de referências e repertórios, a hermenêutica crítica, a tarefa formativa da educação jamais deverá contrariar a cláusula de que a cultura deve ser consumida por quem quer aprender significativamente. O conteúdo, novamente é tratado com indiferença.

O caso do cinema nacional

Outro exemplo. O programa convencional de crítica da brasilidade diria que o cinema nacional é um cinema de tese, que tem uma nova realidade a construir e que reflete sobre suas condições locais de produção em uma orientação pedagógica. Mas se o cinema novo da década de 1960 falava principalmente com a crítica, o novo cinema novo possui outra consciência do processo de produção cultural. Ele considera uma nova classe consumidora, que terá pela primeira vez uma imagem de sua própria divisão e ressentimento refletida na tela. Fernando Meirelles, Beto Brant, Andrucha Waddington e outros egressos do circuito publicitário brasileiro, surgem entre a degradação pelo excesso e a degradação pela falta. Orçamentos diminuíram, agências fecharam ou se fundiram, indústrias inteiras como a fonográfica e a fotográfica desapareceram ou se redimensionaram em menos de cinco anos. O prestígio social diminui com a dispersão da centralidade da cultura televisiva e depois digital.

Mas a posição de resíduo ou de crise da antiga indústria publicitária criou condições objetivas (como se dizia antigamente), para pensar seu próprio processo e, ao mesmo tempo, inventar uma nova forma de brasilidade. Foi uma experiência de aprendizagem e de formação. A qualidade técnica e reflexiva da direção e da criação do cinema da retomada é indiscutível, assim como a hegemonia na forma de produção, pela Globo Filmes. A herança da excelência adquirida na publicidade inclui um sistema de produção expresso, por exemplo, na fotografia de Afonso Beato, na montagem de Eduardo Escorel, nos roteiros de Marçal Aquino e no documentário de João Moreira Sales. A propaganda permitiu investir em formação e favorecer uma primeira geração de artistas-empresários. Antes, os subsídios da Embrafilme bancavam a produção. Isso acabou. O cinema só renasceu quando descobriu o mercado, mas também quando pôde recuar do núcleo da cultura de massa para a periferia da crítica.

Ocorre que a cultura é referida a um mercado que não funciona propriamente como um mercado. Por outro lado o mote da educação para o mercado é quase a paráfrase para educação sem cultura. O artista, mesmo o artista consagrado, agora precisa das leis de incentivo. Ele deve prestar contas ao público, mas a lógica que preside sua prática não é mais nem a do entretenimento, nem a da cultura em sentido estrito, mas sua capacidade de articulação direta de patrocínio e engenharia administrativa ou gestão dos processos de beneficiamento. A qualificação da produção cultural veio junto com seu encarecimento de forma que a bilheteria e consequentemente a presença do público, torna-se um fator coadjuvante na regulação da política cultural. O número de salas de cinema no Brasil declina.

Produtivismo acadêmico

Fenômeno semelhante acontece na educação universitária que se vê cada vez mais dividida entre a excelência de alto custo e acesso limitado contra a acessibilidade de baixo custo com uma administração barbarizante. Neste caso a primazia da forma é conhecida como “produtivismo”. Quem publica mais, leva. Ou seja, desde que você publique – de preferência em revistas bem indexadas, de preferência com seus alunos ou colegas –, o conteúdo é novamente indiferente.

Se poderia dizer, entretanto, que os rankings de revistas são uma forma de valorizar a qualidade do conteúdo, mas isso não é verdade. É próprio do conteúdo sua dificuldade de comparação: daí que o ranking das revistas seja composto, novamente, por critérios formais tais como regularidade, existência de pareceristas, variedade de origem dos autores, internacionalização, etc. O “impacto cultural” de uma pesquisa, tecnologia ou método é irrelevante, porque não pode ser medido. Cria-se assim a pesquisa “junkie” que recria e pasteuriza ideias em tediosa repetição feita para aumentar o índice de produtividade do programa de Pós-Graduação ao qual você pertence, feita para melhorar o índice de impacto de publicação, e ao final em vez de pesquisadores “publicadores formais de papers”.

Uma escolha negativa

Tudo se passa como se a questão do conteúdo se tornasse tão espinhosamente política que aquilo que deveria ser um critério central da cultura, que é sua potência civilizatória, ficasse neutralizado pela métrica formal do processo de distribuição de recursos. E de modo inverso, aquilo que compõe o conteúdo mesmo da educação, sua potência cultural universalizante, fica desativado por critérios formais de desempenho produtivista. Resultado: temos que escolher entre uma educação sem cultura, ou entre uma cultura sem educação. Tudo porque o conteúdo não pode ser medido por critérios de valor agregado.

Pergunta: por que nossas universidades, públicas e privadas, que participam do amplo movimento de redistribuição da renda e dos bens culturais que lhe são consoantes não são também pólos de investimento cultural? Ou seja, devemos escolher entre educação ou cultura desde que esta escolha seja uma escolha negativa. Se o que há de pior na cultura é sua intenção pedagógica e se o que há de pior na educação é sua pretensão mono-culturalizante fiquemos com o oposto de cada uma delas. Tal é a falsa escolha forçada legada por anos de abertura educativa e cultural, baseada na primazia da forma sobre a indeterminação de conteúdo.

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Especial Eleições: Artigos, entrevistas, indicações de leitura e vídeos para aprofundar as questões levantadas em torno do debate eleitoral de 2014, no Blog da Boitempo. Colaborações de Slavoj Žižek, Mauro Iasi, Emir Sader, Carlos Eduardo Martins, Renato Janine Ribeiro, Edson Teles, Urariano Mota e Edson Teles, entre outros. Confira aqui.

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miniaturaEm novembro a Boitempo lança Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros, de Christian Dunker. Novo título da coleção Estado de Sítio, coordenada por Paulo Arantes, o livro parte de uma psicanálise da vida em condomínios para desenvolver uma aprofundada reflexão interdisciplinar sobre a privatização do espaço público e inserção da psicanálise no Brasil. Confira a aula dele, no Café filosófico do CPFL Cultura, sobre as transformações no sofrimento psíquico:

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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012, seu livro mais recente é Sofrimento, mal-estar e sintoma (Boitempo, 2014, no prelo). Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

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