Contratempo: O novo tempo do mundo de Paulo Arantes
Passarinho no ninho
Tudo envelheceu
Cobra no buraco
Palavra morreu
Você que é muito vivo
Me diga qual é o novo
– Belchior
Em O novo tempo do mundo, Paulo Arantes faz o mapa de um tempo – o nosso – marcado pela ausência de perspectiva. O autor identifica a falta daquela consistência histórica que, em períodos anteriores, permitia que os filósofos se lambuzassem na intimidade entre realidade e racionalidade, enxergando signos prenhes de futuros possíveis por todos os lados do presente. Ao invés desses signos, temos experiências sociais com cara de escombros, e sinais de fumaça na figura dos numerosos pensadores contemporâneos com os quais o sempre antenado Arantes dialoga abundantemente. Com a vertiginosa destreza peculiar à “paciência do conceito”, nosso autor recolhe aqueles dispersos fragmentos do espírito do tempo sem espírito, mostra seu emaranhado íntimo, provoca os discursos (às vezes, os mais reacionários) até que eles apareçam também como sintomas caqueirados, e cutuca os escombros mudos e chocados até que eles ganhem voz.
Confrontando desde a acumulação primitiva até a sociedade penal, passando pelo fascismo e pela guerra fria, a pergunta que o livro faz é: o que é a experiência social sob o capitalismo? Como o sentido global da sociedade capitalista – leia-se, as práticas de exploração, expropriação e dominação produzidas pelas elites – se impõe sobre a esfera da vida? O diagnóstico do tempo sem perspectivas representa a resposta para essa pergunta com um eloquente e destrutivo conjunto vazio: a ausência de perspectivas denota justamente uma experiência social onde, por um lado, o sentido amplo e histórico determina o conteúdo da vida, mas, por outro lado, o conteúdo da vida assim determinada não oferece trampolins para fora da determinação mesma. Isso porque aquela determinação se dá através de uma combinação de medo, trabalho e uma organização inteiramente vertical do espaço e do tempo. O argumento de Arantes é montado num espiral de análises detidas de fenômenos sociais paradigmáticos à história do capitalismo, nos quais reluz, por um lado, a tediosa violência dessa história e, por outro, o desenvolvimento progressivo (e, por isso, novidadeiro) dos dispositivos dessa violência, indissociável da intensificação das relações sociais capitalistas. Assim, a tal ausência de perspectivas do novo tempo do mundo é um diagnóstico sobre uma forma de socialização específica, no momento específico da culminância cega do gradiente histórico da modernização burguesa.
“Tempo vivido nas dimensões do mundo”
O primeiro ensaio da coletânea – o qual também lhe dá o título – se confronta com o problema da experiência social na época em que a acumulação primitiva de capital inaugura a dimensão planetária para a ação das classes envolvidas nas operações comerciais trans-oceânicas. Para falar dessa aurora do tempo mundial que marca o capitalismo, Arantes apropria-se malandramente da ideia da Escola dos Anais do conflito entre história totalizante e experiência quotidiana, lendo-a em termos do problema da violenta imposição colonial de uma ordem proto-capitalista mundial sobre populações inteiras. Por um lado, para as populações exterminadas e escravizadas, e a nesga de mulheres e homens “livres” espremidos entre tais populações e os capitães da modernidade, evidentemente o caráter global da experiência social moderna não oferecia, em sua alvorada, qualquer horizonte. Por outro lado, tanto a atuação das elites metropolitanas, quanto a articulação de classes comerciais dominantes nas colônias, testemunha o esforço de elites em se fazerem sujeitos globais, tornando comensuráveis, na marra, através da organização para tanto, a experiência quotidiana e o aspecto totalizante da lógica capitalista que estava sendo inaugurada.
A comensurabilidade entre a lógica totalizante e a especificidade local, portanto, é possível como gesto de classe. No caso preciso das elites coloniais, o que esteve em jogo foi a descoberta de interesses comuns entre “comunidade de proprietários” que formava a elite colonial e a hegemonia global britânica do livre comércio (p. 8). Em meados do século XVII, quando aparece o artefato político que viria a dar forma definitiva à organização dos interesses globais a nível local – a “comunidade política imaginada” através do “artefato político” da Nação (p. 8) – tal aparecimento coincide com a cristalização, no lado metropolitano do mundo, da ideia de “modernidade” – o tempo novo, acelerado.
Modernização permanente e normalização da mudança social
Ora, a modernidade desde muito cedo se pensa como processo, como modernização: os processos de transformação tecnológica, econômica e social que a marcam – a sociedade do Capital – surgem sob a égide da expansão permanente. Assim, a modernidade é uma época marcada por experiências sociais cujo caráter díspar implica uma “generaliza[ção] da contemporaneidade do não-contemporâneo” (p. 17): onde aparece o moderno, aparece também o pré-moderno, território para a expansão do moderno, espaço a ser colonizado e transformado, a fonte de mão-de-obra e matéria-prima barata, o espaço pré-econômico de cujo sangue a economia moderna e civilizada se alimenta. Esse sentido histórico paradoxal empresta à expansão e intensificação das relações sociais capitalistas, bem como o discurso através do qual a burguesia pensava a si mesma, um potencial “anti-sistêmico” (p. 25): trata-se da conhecida ideia – fundamental para o marxismo – de que determinados componentes da socialização burguesa apontam para além da dominação de classe que a caracteriza. A participação da plebe urbana e rural no processo político desencadeado pela Revolução Francesa, as consequências imediatas dessa participação tais como o transbordamento transcontinental do universalismo burguês na rebelião negra de São Domingos (1791) (p. 7), ilustram bem esse potencial anti-sistêmico. O argumento de Arantes é que, desde muito cedo, tal potencial imbuiu as elites, do medo do risco de possíveis conjunções entre disputas pelo poder econômico e rebeliões populares (p. 39), e de uma resultante “avalanche democrática desierarquizante”. Esquematicamente, Arantes sugere que, para responder a esse risco a sociedade capitalista normalizou a mudança social (p. 40), rapidamente sedimentando uma cultura moderna de expectativas. A persistência da associação discursiva entre o desenvolvimento econômico e o progresso civilizatório dá testemunho do longo alcance dessa cultura; mas a realidade daquela associação ao longo da história é um dos elementos em questão no texto de Arantes, que insiste como a normalização da mudança social foi acompanhada em paralelo pela normalização da guerra civil contra a plebe.
Progresso
A noção de progresso desponta como articuladora do imaginário sócio-temporal da mudança permanente na sociedade burguesa. Através dela, é inaugurado um discurso que atribui à expansão e aprofundamento das relações sociais de dominação – inicialmente, a expropriação colonial –, entre outras tarefas, a de superar justamente as mazelas da dominação. Em sua alvorada, quando tratava-se de substituir os territórios inúteis do Novo Mundo por espaços economicamente organizados, de quebra desencadeando uma conversão semelhante dos seus habitantes originários, o discurso do progresso é francamente exterminista; ao longo da história da sociedade moderna, porém, vai assumindo tonalidades diferenciadas. Não obstante, o objetivo do progresso é mais progresso e, com essa autocentralidade, aquele discurso expressa o caráter abstrato do capitalismo, “o sempre igual da acumulação como fim em si mesmo” (p. 17). Trata-se de um imanentismo total, que Arantes encontra no argumento de Moishe Postone1: “não obstante se tratar de uma temporalidade direcional, [o] movimento ascensional [da modernidade] não conduz a um futuro qualitativamente diferente, quer dizer, embora reais e exponencialmente aceleradas, as transformações orientadas para o futuro, na condição de armadura abstrata de todo o processo, na verdade reforçam a necessidade do presente” (p. 28).
Moralização permanente
Na medida que pretende unificar a experiência social, subsumindo-a à perspectiva da atividade da elite global, o ideário do progresso, na aurora do capitalismo, conecta-se ao universalismo iluminista que inaugura a perspectiva de uma humanidade que é sujeito de sua própria história. Com isso, obscurece a diferença entre os “horizontes de expectativa”2 da elite global com mobilidade global, de um lado, e das populações localmente enraizadas e sem perspectiva, por outro. Ao mesmo tempo, no contexto especificamente metropolitano, aquela confusão de perspectivas contida no conceito de humanidade, bem como o problema da contemporaneidade do não-contemporâneo, emergem como uma fratura social dinâmica, geradora de crise e luta entre uma burguesia emergente e (certas) estruturas econômico-políticas do sistema absolutista. Lida através do prisma do progresso, a guerra civil desencadeada pela burguesia como resposta àquela crise engendrou um discurso a respeito da revolução e da evolução3. O fundamento moralizante da transformação política aparece no reclame liberal por uma dissociação entre interesse de dominação e procedimento econômico (Smith), ou como necessidade de superar uma sociedade fundamentalmente corrompida, animando, por exemplo, o pensamento de Rousseau e o teatro de Diderot, para não falar de legados mais distantes tais como os esquemas patologizantes de Durkheim, ou – como veremos adiante – a fantasiosa versão nazista de anticapitalismo (c.f. tópico “Holocausto e acumulação” abaixo).
A ideia moral do progresso afoga a perspectiva do interesse político, e com isso apaga o conteúdo de guerra civil da crise do “Antigo Regime” e do processo de ascensão da burguesia: não há lados em conflito, há a roda da história correndo no sentido certo, aqueles que se comprometem a fazê-la girar mais rápido, e aqueles que precisam ser atropelados. Mas Arantes enfatiza a persistência dessa tendência moralizante na continuidade entre a ideologia moderna primeva e manifestações bem recentes de imanentismo do imaginário despolitizado: o discurso neoliberal da administração competente e desprovida de ideais, vigente numa época em que, nas palavras de Maggie Thatcher “não há alternativas”, e para a caracterização da qual Francis Fukuyama empregou a famosa formulação do “fim da história”.
Ponto de chegada do projeto inacabado
Arantes revisita a tese de Fukuyama4. A bizarra mistura de utopia e distopia fala de um mundo dividido. No lado definitivamente moderno, um espaço de a-historicidade onde todas as relações políticas seriam tornadas obsoletas por uma suave operação econômica: uma confluência local entre experiência finita e tempo do mundo (ou falta dele). Esse espaço de a-historicidade deixaria de fora (ou estaria cercado por) um espaço consumadamente pré-moderno de “violência da luta mal-sucedida pelo reconhecimento entre atores embrutecidos pela ineficiência econômica”. Trata-se de uma reedição, em versão estática e terminal, da contemporaneidade do não-contemporâneo que animava o imaginário burguês primevo, e também uma cristalização da prática primeva da guerra de expropriação permanente.
Guerra civil permanente
No texto de Fukuyama, a era neoliberal fala de si mesma nos termos da modernidade clássica (leia-se: liberal), mas se representa como fechamento dela, um fechamento que é sua cristalização ad aeternum. Por isso mesmo, explicita o teor violento que o jargão moralizante clássico meio escondia, meio justificava, por trás do signo da revolução e do progresso. Teríamos, assim, um contínuo de socialização violenta, aspectos da guerra civil permanente: primeiro, extermínio colonial; depois, luta para dominação burguesa; depois, o regime normal de expropriação capitalista. Arantes explora insistentemente essa concepção de uma socialização que não é beligerante e violenta por acaso, mas por causa de seu princípio de funcionamento, de sua temporalidade de elite, da máquina de moer gente da acumulação como fim em si mesma. Nesse sentido, estão colocadas as bases do argumento que mostrará o quanto fenômenos tais como os campos de extermínio nazistas e a Guerra Fria não constituem exceções surpreendentes à história dessa civilização global, mas episódios-chave para a compreensão da sua normalidade assassina.
Holocausto e acumulação
Para recuperar o nazismo e o Holocausto enquanto resultados específicos da socialização capitalista, Arantes começa apelando à leitura que Moishe Postone apresenta na sua contribuição ao volume Catastrophe and Meaning5. Postone parte da já citada ideia da autocentralidade da acumulação capitalista, apresentada no Tempo, trabalho e dominação social, e enfatiza o paradoxo do conteúdo moralizante do pensamento clássico burguês. As noções de revolução e de progresso como superação através da repetição engendram, na figura do nazi-fascismo, uma espécie de anticapitalismo capitalista cuja essência seria o anti-semitismo. O projeto de revolução moral contido no anti-semitismo teria sua síntese na operação dos campos de extermínio, nos quais o que estava em jogo era uma operação de revelação – a modo de sintoma – da essência abstrata que o capital impõe sobre os seres humanos: no campo, os judeus eram primeiramente convertidos em números; em seguida, eram aproveitados enquanto valor de uso, através da pilhagem de suas posses e do consumo físico pelo trabalho; finalmente, ao serem executados, o nazismo empreendia o gesto final de revolta “fetichizada” (p. 34), a destruição de valor (p. 35), resposta psicótica à época da crise de superprodução, e da passagem do capitalismo de livre-concorrência ao capitalismo administrado (p. 34).
O trabalho do nacional-socialismo
Também fica sugerida, na leitura de Postone, uma associação entre a imposição da lógica exterminista sobre a realidade pelo aparato de governo nacional-socialista e o gesto revolucionário, o que Arantes interpreta qualificando o Nazismo como revolução autoritária, alinhada às “aberrações regressivas da via prussiana” (p. 35). Entretanto, a já consagrada ideia de uma revolução “desde cima” tende a empurrar para baixo do tapete o problema fundamental de como um golpe de classe se torna um fenômeno social. Esse tema é retomado na segunda parte do livro de Arantes, que começa seguindo os psiquiatras Christophe Dejours6 e Joseph Torrente7 em sua tentativa de pensar a (aparente) exceção histórica do horror nazista como chave para decifrar as violências quotidianas da normalidade neoliberal da acumulação flexível – e vice versa. A comparação entre nazismo e neoliberalismo, aparentemente forçada, é sugerida pela pegunta – proposta por Primo Levi – a respeito do conteúdo das “zonas cinzentas” que separam “não só nos Lager nazistas, as vítimas e os opressores”8 (apud. p. 46), ou seja, a questão da população alemã que colaborou e/ou foi coordenada aos milhões para que o sistema de vida nacional-socialista acontecesse. Na formulação do próprio Levi, contudo, a questão não só textualmente extrapola o caso extremo da violência social nazista, como é colocada em termos que pretendem penetrar concretamente na oposição entre a fonte da opressão – classes dominantes, etc. – e o seu objeto, tangendo uma esfera que, provocativamente, poderíamos denominar de “microfísica”. A análise dos autores franceses sugere que “a colaboração da gente comum no genocídio resultou de uma gigantesca barganha em termos de benefícios materiais, comprava-se diariamente sua satisfação” (p. 46). Trata-se de um “welfare de exceção” preparado pelas décadas de fordismo que também realizaram a massificação social do trabalho e pelo trabalho (p. 49). Essa massificação, aspecto do fenômeno que Max Weber tinha vislumbrado e expresso em termos do sepultamento do capitalismo do livre-empreendimento sob o monolito burocrático do capitalismo monopolista (p. 48), predispõe a população para uma “mobilização total” que será fundamental para o aparato de governo nacional-socialista (p. 47).
Flexibilização neoliberal e submissão racional
Ora, o regime nacional-socialista é responsável pela modernização acelerada da indústria alemã, a equiparação ao capitalismo dos EUA e da Inglaterra, o patamar de produto social e de emprego que permite o desempenho das funções de welfare previstas pelo lado “socialista” do nacional-socialismo. Ao mesmo tempo, o aparato de governo nazista transforma o medo num componente palpável e constante da vida social. A combinação de inclusão econômica e medo é também marca do neoliberalismo. Nele, a empresa capitalista contemporânea – tipicamente gigantesca, transnacional e dotada de poder de fogo econômico suficiente para chantagear países inteiros, ao mesmo tempo que quase monopoliza as possibilidades de venda de força de trabalho – confere tratamento arbitrário e violento a todas as relações sociais, legislativas, ambientais e trabalhistas, numa abordagem que David Harvey quis capturar empregando sarcasticamente a denominação marketeira “acumulação flexível”9. Diante desse tratamento, o cidadão comum de bem – o habitante da “zona cinzenta” de Primo Levi – é compelido à socialização forçada, mas não através do emparedamento num gueto ou atrás do arame farpado do Lager, e sim por uma desgraçada opção desesperada pela inclusão econômica, em contextos sociais nos quais a alternativa é o extermínio ou a inanição. Torrente chama esse mecanismo de “submissão defensiva”10.
O que Arantes quer colocar em jogo é a centralidade da figura totalmente ordinária do trabalho para compreender os horrores da sociedade alemã sob o governo nazista – horrores estes que, diante daquele caráter ordinário, perdem sua marca de extrema excentricidade. No que diz respeito à condução do extermínio dos judeus, seus arquitetos ora a viam como “trabalho sujo” a ser desempenhado pelos próprios judeus – os Sonderkommandos – ora como “a mais gloriosa página de nossa história”, nas palavras de Heirich Himmler (apud. p. 54). A realização dessa suposta missão civilizatória estava ancorada num empreendimento administrativo – de proporções gigantescas, é verdade, mas, especialmente na “zona cinzenta”, não muito diferente da atividade usual sob o capitalismo monopolista: memorandos, telegramas, trabalhos quotidianos, enfim. Assim o indivíduo comum, usualmente alijado do processo de dominação histórico conduzido numa temporalidade de elite, pode recuperar a experiência e o sentido históricos – a comensurabilidade entre a esfera da atividade individual e o “tempo do mundo” – através do mesmo trabalho massacrante, massante, fragmentado, que já tanta crítica mereceu por seu caráter alienado. O cumprimento do dever no trabalho alienado não acontece a despeito da subjetividade do cumpridor, mas com sua contribuição autônoma (a submissão defensiva), micro-peça fundamental da gigantesca máquina burocrática, a qual seria ineficaz se compreendida unicamente através de sua qualidade remota. Daí o paralelo com a “acumulação flexível” do neoliberalismo, o qual, nas palavas de Arantes, “enquanto atividade de ‘governo’ das condutas (não confundir com a instituição estatal) (…) não se define nem contra nem a despeito da liberdade, mas através da liberdade de cada um, no sentido de que se conformem por si mesmos a certas normas” (p. 49) expressivas da violência econômica, fora das quais a opção é o que Karl Marx chamava, com sua acidez costumeira, de violência extra-econômica.
O fundamental desse argumento é entender a correlação entre alienação – em sentido rigoroso, e não na equivocada porém popular acepção psicologizante – e comprometimento subjetivo. A ideia é que o “trabalho sujo”, aquele com o qual nenhum trabalhador pode se identificar ou sentir prazer – aquele que envolve um sofrimento, e que faz violência ao trabalhador – é também aquele que obrigado o trabalhador a encontrar estratégias subjetivas para se concentrar exclusivamente nas operações mínimas exigidas, e que tem, portanto, potencial de tornar-se o trabalho mais eficientemente desempenhado. Assim, o comprometimento do trabalhador com o trabalho acontece a despeito do trabalhador – “pelas suas costas”, para empregar a expressão de Marx. No trabalho violento executado com sofrimento, diminui a distância entre o trabalho prescrito e o trabalho realizado (p. 58). A eficiência é filha do asco, e alternativa equivalente da loucura: Primo Levi, falando dos Sonderkommandos, observa como “ao fazer este trabalho, ou se enlouquece no primeiro dia, ou então se acostuma” (apud. p. 50). E o costume fala tanto de um entranhamento moral quanto de uma produtiva e obediente rotinização na qual já entrou, entretanto, o componente do que Torrente chama de “zelo”: a “mobilização dos mecanismos afetivos e cognitivos da inteligência” (apud. p. 59), os “macetes, gambiarras, truques” (p. 60) que a prática constante com o sofrimento introduz entre ele e o sujeito que lida com ele, de modo a atenuá-lo.
Zelo, gambiarra, macete
Ora, esse elemento da contribuição subjetiva que extrapola o trabalho prescrito de modo a realizá-lo mais eficientemente é levado ao paroxismo na “reorganização dita ‘flexível’ do trabalho” sob o neoliberalismo (p. 61). A burocratização extrema conflui, portanto, com o compromisso subjetivo, a astúcia quotidiana sem a qual a vida fica impossível diante de um sistema de relativização da vida. E, por causa dessa confluência, aparecem os limites do estereótipo prussiano da obediência cega evocado, por exemplo, por Zygmund Bauman11 e, até certo ponto, por Hannah Arendt12: o zelo brota da burocracia, e a suprassume. A constelação resultante rescende à compatibilidade, identificada entre nós por Roberto Schwarz, entre a malandragem da precariedade colonial terceiro-mundista e os altos preceitos da capitalismo metropolitano, chamado desenvolvido13. Ademais, no que vai além do meramente prescrito, o zelo é também uma espécie de trapassa, mas sua convivência necessária com o normatizado evoca a lógica do estado de exceção permanente (p. 64) – tema caro a Arantes, tratado em outros trabalhos, e também no presente, mais adiante.
Macete, arbitrariedade, fascismo, exceção
Arantes enxerga uma afinidade entre aquilo que o conceito de zelo expressa para a microesfera do empenho subjetivo e o que havia sido identificado também por Franz Neumann em seu Behemoth na esfera macro do capitalismo mundial: quanto mais se intensificava o regime monopolista de acumulação, mais necessários e correntes se tornavam as arbitrariedades improvisadas dos comandos administrativos de exceção (p. 67). A distância do Füher – que, no dizer de um trabalhador, evidentemente não podia estar em todos os lugares ao mesmo tempo (p. 65) – exigia, além do cumprimento da norma emanada dos escritórios de controle, a invenção zelosa e criativa de novos deveres e normas na zona cinzenta entre aqueles escritórios e o quotidiano da operação. Ou seja: para empreender a estrita administração e dominação sociais características do governo nacional-socialista e fazer valer a vontade do Füher que, no regime nazista de exceção, é a lei, era necessária uma prática de improviso sob responsabilidade dos oficiais do Reich: a exceção dentro da exceção.
Estado e exceção
O papel do conceito de exceção é central, não só em O novo tempo do mundo, mas em outros trabalhos do autor. Aqui, Arantes segue a trilha crítica de Giorgio Agamben14, bem como o testemunho de apologia ditatorial de Carl Schmitt15, o qual, por sua vez, na identificação entre soberania e exceção, na verdade fazia eco a uma intuição iluminista a respeito da natureza de guerra civil permanente do Estado absolutista (p. 21), e da conformação continuada desse modelo de Estado às formas de dominação burguesas. Desse modo, o que está em questão para Arantes é ressaltar o quanto o Estado de Exceção é a origem atávica do Estado Moderno.
O formato especificamente burguês da exceção – a suspensão da ordem legal a partir da própria ordem legal – foi inaugurado pelas “leis francesas de 1849 sobre o estado de sítio”, que formulavam-na da seguinte maneira: “as medidas excepcionais, que a necessidade de concentrar a força pública autoriza, devem ser determinadas por lei, prestando-lhe assim homenagem no momento mesmo de suspendê-la”16. Foi com base nessas leis que Luís Bonaparte deu o golpe de 2 de dezembro de 1851, desfazendo a Segunda República. A violação da constituição tornara-se a razão de ser da própria constituição garantidora da ordem capitalista emergente, volta e meia ameaçada pela desordem sediciosa das novas classes perigosas porque laboriosas (p. 175). Assim, a conhecida circunstância da inauguração do III Reich como “guerra civil legal” a partir da aplicação de um artigo da liberal-social Constituição de Weimar inaugurou o III Reich17 não deveria inspirar surpresa.
Zona cinzenta e exceção
Em Schmitt, Arantes vai buscar também a ideia de que, com o crescimento do corpo burocrático de funcionários da administração pública, o Estado acaba como que desenvolvendo um interesse específico e circular por sua autopreservação, por cima e a despeito dos interesses da sociedade com a qual supostamente o Estado precisa manter um pacto (p. 131). Mas Arantes encontra um eco dessa leitura em Foucault, que expressa o mesmo problema em termos de uma discussão da “Razão Governamental” (p. 132), “esse imperativo ditado pela necessidade superior de se autopreservar em nome do qual o poder se considera autorizado a transgredir o direito” (p. 133)18. É nessa linha que Judith Butler19, argumentando a respeito da convivência entre o arcaico “poder soberano” do Absolutismo com o “poder disciplinar” e o “biopoder” típicos da sociedade burguesa, fala de uma nova soberania estatal, a qual “não é a soberania de um poder unificado sob as condições costumeiras de legitimidade, a forma de poder que assegura o estatuto representativo das instituições políticas. Trata-se muito mais de um poder discricionário e sem lei, um poder bandido (rogue) por excelência” (apud. p. 134). A constelação conceitual montada por Arantes sugere, assim, que a formas quotidianas de exercício do poder tipicamente privilegiadas pelo discurso foucaultiano funcionam naquele registro da “zona cinzenta”, fundamental para explicar a “submissão defensiva” e o comprometimento subjetivo com a dominação na sociedade capitalista, seja em sua variante fascista, seja em sua variante neoliberal.
Exceção / emergência
Toda essa discussão sobre a zona cinzenta e a caracterização da experiência social balizada pela violência econômica e pelo medo contribui para um esforço de descrever o que ocorre quando os eventos de proporção mundial assumem dimensões mais ou menos quotidianas. A desproporção entre a ordem macrológica dos fenômenos em questão – o neoliberalismo e o fascismo –, de um lado, e a vida ordinária, do outro, é resolvida por práticas sociopolíticas massacrantes que são consteladas por Arantes em torno dos conceitos de exceção e emergência. Ambos os conceitos funcionam no mesmo registro da modernização e do progresso que tinham a si mesmos como finalidade. De fato, o que o argumento de Arantes deixa implicado é que o lugar prático e o lugar imaginário do progresso e da modernização foram abolidos pelo discurso e pela prática sistemáticas da exceção e da emergência, as quais, ao mesmo tempo que remetem à circularidade e ao caráter abstrato da acumulação capitalista, fazem-no dispensando a aposta no melhoramento e na autotranscendência. Assim, a exceção traduz o conteúdo universal da lei e dos princípios de gestão social em termos de uma violência arbitrária que tem afinidade com os conteúdos individuais da experiência: a lei é flexibilizada para ser mantida. Já a emergência é a figura da administração social que expressa a necessidade mesma de tornar maleável a experiência social usual, de modo a conservá-la como sempre foi.
Guerra mundial como guerra civil
O binômio exceção-emergência é fundamental para entender a ideia – à qual Arantes retorna diversas vezes – de que a realidade social sob o capitalismo tem a textura de uma guerra civil permanente. Trata-se de entender, no conteúdo exterminista das guerras coloniais, no quotidiano da sociedade penal contemporânea, e nas guerras mundiais propriamente ditas, a dimensão de gestão violenta da vida. Assim, Arantes chama atenção para como o “colapso imperialista de 1914” consistiu uma “guerra total” não só porque consistiu num embate entre as principais potências europeias, etc., mas sobretudo “pelo fato de abrir um front interno regido pelo estado de sítio, ampliando sistematicamente os poderes governamentais ao longo de todo o conflito e, sobretudo, muito além dele” (p. 145). A tecnologia social que possibilitou a abertura desse front interno, no argumento de Hannah Arendt20, havia sido desenvolvida no laboratório da administração colonial, de tal modo que o apogeu imperialista é a passagem da “administração por decreto” das colônias para a “interiorização metropolitana desse mesmo desregramento” (p. 146). Arantes também lembra como, para Giorgio Agamben21, o quadro sócio-político contemporâneo de exceção normalizada “se confunde (…) com a ampliação dos poderes governamentais desencadeada durante a Primeira Guerra Mundial, mesmo entre os não-beligerantes, como a Suíça” (p. 161), com a confusão entre atribuições dos Poderes Legislativo e Executivo. Outro exemplo é como a legislação de exceção vigente durante a guerra na Grã-Bretanha foi citada como inspiração para o Emergency Powers Act, em 29 de outubro de 1920, que, num contexto de fortalecimento dos sindicatos de mineiros, autorizava o governo a declarar estado de exceção em condições associadas às práticas grevistas, conforme lembra Gilberto Bercovici22. A guerra mundial prolonga-se como guerra civil através da Revolução Russa de 1917, “durante a crise social e econômica no entre-guerrras – hiperinflação, depressão econômica, revoluções sociais e finalmente, fascismo” (p. 145).
Guerra, bem-estar social e emergência
O binômio exceção-emergência contribui para que se enxergue o contínuo formado pela sucessão de guerras oficiais declaradas e a paz infernal da guerra social. Esse contínuo traga mesmo os chamados “trinta anos dourados” de desenvolvimento econômico e welfare state que preenchem a história europeia entre o final da Segunda Guerra e a crise da década de 1970, em cuja fornalha se prepara o neoliberalismo. Arantes demonstra a continuidade entre as supostas décadas de ouro e o período imediatamente anterior. Dois argumentos são fundamentais para essa demonstração: a leitura que Herbert Marcuse faz do período da Guerra Fria23 e a discussão de Paul Virilio24 sobre o Beveridge Report, o relatório de 1942 que orientou a criação do welfare state britânico.
Marcuse lê a Guerra Fria como período regido pela combinação de terror nuclear e “mobilização total, na qual se combinam produtivamente o bem-estar social com a prontidão militar de uma sociedade de guerra” (p. 36). A intervenção estatal industrializadora na economia, geradora de conforto material, tem como conteúdo a produção de armas de destruição em massa, de modo que a prosperidade econômica depende da existência e manutenção de um Inimigo com maiúscula: o medo como fundamento da coesão social. Ora, segundo Virilio, justamente esse binômio emergência permanente + redistributivismo proporcionou uma sobrevida do processo material marcado pelo consumo destrutivo da guerra total (p. 143). Como componente desse quadro, o Beveridge Report projeta para o governo uma atuação propriamente e exclusivamente administrativa, voltada para um “objetivo sanitário” que vê a sociedade como lugar do indivíduo a ser gerido como “organismo anônimo”, o habitante dos “grandes campos de batalha”, dos “asilos”, das “prisões”, dos “campos de internamento”, mas também o cidadão assistido por excelência, de tal modo que a sociedade da administração do bem-estar trabalha com uma similitude entre a vida massacrável e a vida assistida (p. 144). A trégua dos “trinta anos dourados” representaria, assim, uma tradução, em termos civis, da emergência da guerra. O Estado de perfil garantista teve sua certidão de nascimento lavrada pela urgência de resposta à crise social do conflito armado total, e o Beveridge Report literalmente declarava uma guerra de assistência contra “Cinco Males Gigantescos” em uma Grã Bretanha arrasada.
O que está em jogo para Arantes, evidentemente, não é uma demonstração de que o welfare state seria, “na verdade” um estado de sítio, mas a inclusão do welfare state na periodização do capitalismo em termos de regimes de exceção, na medida que se trata, afinal, de outra modalidade de atuação dessa máquina de guerra civil que é o Estado moderno. Longe de aparecer associado com as expectativas anti-sistêmicas da modernização, o bem-estar social é o último resultado do mesmo longo espasmo de intensificação da produção e de integração social pelo trabalho que deu origem ao fascismo e à guerra mundial. É produto de um processo ininterrupto de submissão direta do funcionamento da vida social ao maquinário do binômio Estado-capital, e ocasião privilegiada de sofisticação desse processo. Amparado como esteve na Guerra Fria, o bem-estar social ainda engatou a operação econômica normal à produção e manutenção tecno-burocrática da guerra de maneira definitiva e irrevogável. Assim, no consagrado esquema segundo o qual o chamado neoliberalismo desmonta o bem-estar social no fechamento da crise dos anos 1970, deve-se perceber o quanto o tal desmonte é cuidadosamente seletivo, na medida que deixou intacto o aparato do armamentismo e da administração social.
Ditadura, modernização, exceção
Evidentemente, o capítulo terceiro-mundista da guerra civil permanente não passou pelo Estado de bem-estar social. O caso brasileiro é paradigmático: entre nós, a oportunidade modernizadora da Guerra Fria foi ocasião de uma guerra civil declarada sob a forma da ditadura militar. Aqui, a conexão entre exceção e neoliberalismo é bem direta. A ditadura seria o capítulo nacional de um movimento global de mudança de regime de acumulação (identificado por Michal Kalecki25) em direção a uma financeirização que possibilitava um capitalismo independente do pleno emprego, impossibilitado pelo aumento da composição orgânica de capital, e do empoderamento sindical acarretado pelo pleno emprego. A financeirização aumenta os riscos do negócio; através do arrocho salarial e do corte de gastos estatais, os riscos recaem sobre uma população economicamente vulnerabilizada; essa população é politicamente desmobilizada através do “aprendizado do medo”. Assim, “a Doutrina da Segurança Nacional (…) estendeu-se até à Segurança Econômica”, e uma complementava a outra (p. 168). O sistema de governo assassino não deixou de incorporar a mentalidade técnica que permeou essa mudança de regime no lado metropolitano do mundo – mentalidade essa que, ainda operante na chamada “Era FHC”, representou o aprofundamento da financeirização em termos de propaganda modernizadora. Arantes demonstra, ainda, como o aparato repressivo e econômico da ditadura, longe de ter marcado de forma episódica a administração estatal brasileira, opera continuamente até hoje. A militarização da segurança pública, a entrega da “Garantia da Lei e da Ordem” às Forças Armadas, a “Lei de Responsabilidade Fiscal”, a privatização e criação das agências reguladoras (p. 159), “do Banco Central ao Código Tributário, passando pela Reforma Administrativa de 1967, a Constituição de 1988 incorporou todo o aparelho estatal estruturado sob a Ditadura” (p. 164).
Estado penal
Não obstante, tanto no lado metropolitano do mundo quanto entre nós, a ameaça da privação material que traduz a constelação do medo e do trabalho como princípios de socialização, intensifica-se no desmanche do Estado garantista da “segurança social”. Tal desmanche parece extirpar do autocentrado processo civilizatório capitalista as últimas nesgas do antigo discurso da superação dos malefícios do progresso através do progresso. Para descrever como esse cenário se aproveita da militarização social do período anterior, Arantes apela à argumentação de Loïc Wacquant26, que demonstra como a “insegurança social” normalizada é traduzida como “insegurança criminal” e “administração da pobreza” pela operação estatal contemporânea. O setor social que era beneficiário do welfare passa a ser o alvo do workfare – o acesso à assistência social condicionado ao desempenho do “trabalho desclassificado” (p. 69) – e do o prisonfare, a intensificação penal. Diferentemente do encarceramento moderno, que tinha finalidade de disciplinamento para o trabalho, a prisão, no quadro contemporâneo, assume a mesma autocentralidade da acumulação capitalista e do próprio trabalho, tornando-se fim em si mesma. Os encarcerados de hoje não pertencem a uma pré-modernidade modernizável, mas ao estrato dos “detritos sociais” (apud. p. 73). Com o prisonfare, portanto, “pune-se para punir” (apud. p. 72), conforme atesta a engenharia do sofrimento das prisões americanas analisada por Wacquant. Essa engenharia é resultado de um regime de exceção calculado, na medida que os assalariados da polícia e do sistema carcerário, trabalhando perpetuamente com o limite do suportável, necessariamente engajam-se no zeloso mecanismo subjetivo identificado por Dejours. O que fica sugerido, aí, é que elementos da esfera do incidental, acidental, e portanto do macete – da exceção, enfim – são necessários ao trabalho dos agentes do prisonfare (p. 73). Assim, Arantes contextualiza a “virada punitiva” na administração social de que fala Wacquant: a experiência dos pobres não consiste numa aberração normativa, mas da gradação extrema de uma qualidade única de operação sócio-econômica.
Imanentismo e regime de alerta
O gesto social de punir para punir, num quadro em que não há perspectiva de reinserção sócio-econômica para populações empobrecidas que se encontram encarceradas justamente porque foram ejetadas da ordem econômica, marca a experiência dos encarcerados como uma espera por nada. Essa espera por nada oferece o contraste máximo com o lema do processo sempre inacabado da modernização e do progresso que marcou a leitura de elite do tempo na alvorada do capitalismo (p. 76). Ingressamos, então, numa era de franca e transparente autocentralidade, imanentismo, ausência histórica de perspectivas. A operação estatal nessa temporalidade quase congelada consiste numa permanente e declarada restauração, a contínua declaração de emergências a serem superadas para restabelecimento do estado anterior. É nesse sentido, sugere Arantes, que deve ser lido o conceito de “capitalismo de desastre”, de Naomi Klein27, e a “governabilidade securitária”, de Frédéric Gros28, que fala de uma humanidade reduzida a “uma única comunidade de viventes” (p. 99) – não sujeitos de direito, mas seres vivos mesmo – vivendo em risco permanente. De fato, é a insegurança mesma que projeta a unidade dessa humanidade administrada: “do vírus ao atentado, da sexualidade ao meio ambiente”. Assim, se, por um lado, as formas especificamente penais de controle da insegurança estão especificamente reservadas à “população liminar”, por outro lado generaliza-se a resposta em regime de urgência à insegurança constante, o que normaliza a violência estatal em “estados de violência” que estão substituindo a guerra em sentido clássico (p. 100): “o tempo morto da onda punitiva é o tempo ora morno, ora vertiginoso do estado de alerta indefinido que veio se substituir ao tempo descontínuo do perigo de guerra” que mobilizava unidades nacionais aos espasmos na época do grande Inimigo (p. 101).
Emergência e (i)legitimidade
O mesmo mecanismo está em jogo na noção da “zona de desordem permanente” (p. 109), dispositivo de controle populacional especificamente contemporâneo descrito por Girogio Agamben29, exemplificado, na França, pelas 752 “Zonas Urbanas Sensíveis” (ZUS), onde vivem 5 milhões de pessoas, a maioria franceses de origem árabe ou africana. Determinadas através da falência calculada das políticas de bem-estar social, as zonas de desordem permanente recriam sistematicamente situações de emergência, formalizando o caráter urgente da atuação estatal, que é sempre uma resposta rápida, truculenta, mais ou menos precária, de modo a restaurar o mesmo estado de coisas que produziu a emergência – a “ordem” declaradamente desordeira. Assim, o governo atua caracteristicamente jogando com uma sensação permanente de insegurança que garante legitimidade para ações enérgicas, caça às bruxas, etc., o que, num argumento de Jacques Rancière30, culmina na ideia do medo como princípio de coesão social (p. 110, 114).
Mas é interessante observar que a legitimidade que está em jogo aí já não tem muito a ver com o princípio de racionalidade social das teorias burguesas clássicas do Estado, e dos seus derivados. Em tais teorias, coesão social e legitimidade estavam ligadas de tal maneira que, na ausência da segunda, a primeira era dissolvida: nas supostamente benévolas variantes humanistas, havia uma aposta enfática na necessidade e na capacidade da humanidade gerir a si mesma de forma mais ou menos consciente e voluntária. A legitimidade figurava no discurso burguês clássico como sendo ao mesmo tempo a fonte da vontade política fundadora e o resultado do seu exercício. No quadro contemporâneo que interessa a Arantes, coesão social e legitimidade são declaradamente mediados por um princípio negativo, a insegurança, o medo. Assim, a emergência contemporânea trabalha à luz de um discurso abertamente paradoxal: o conteúdo concreto da insegurança é a representação da coesão social desfeita, ao mesmo tempo que o caráter de legitimidade da atitude emergencial da administração pública advém da manutenção da coesão social. A lógica do governo da insegurança permanente, portanto, parte da coesão social, e dela deriva sua legitimidade, ao invés de trabalhar com um fundamento legítimo para a coesão social. Nesse quadro, sendo a preocupação fundamental a manutenção do business as usual, as ações emergenciais podem ser percebidas como legítimas sem que a legitimidade do todo social – “justiça social” e coisas assim – entre em questão. Na lógica da emergência, pode ser que o business as usual seja um procedimento assassino, uma máquina quotidiana de moer gente, mas o que importa é mantê-lo funcionando. E por que? Porque, ao colocar em questão a coesão social, a emergência é um ataque aos referenciais sociais da reprodução da vida, e às vezes até à própria vida. No imaginário burguês clássico dos legisladores de casaca e filósofos de peruca, a alternativa à coesão social era… uma outra coesão social. Tratava-se de um modo de pensar muito adequado à perspectiva revolucionária ou ao projeto histórico de consolidação de uma forma sócio-econômica nova. Na época em que a novidade desapareceu, a bem-informada sociedade de massas trabalha com a experiência concreta de que a alternativa à coesão social seja a destruição. Onde Iluminismo & Cia. viam a vontade política e a legitimidade, o novo tempo do mundo colocou o medo e a emergência, dos quais deriva uma legitimidade indiferente às questões clássicas da vontade. Quando a alternativa é a destruição, a vontade é substituída pelo reflexo, e o consenso em torno de um projeto sócio-político é substituído pela adesão desesperada dos que podem se agarrar ao existente como quem escapou por um triz: não tanto as elites contemporâneas, mas as classes antigamente “médias” que vêm constantemente dando respaldo (eleitoral, quando não ativista, como é o caso do ressurgimento europeu da extrema-direita) ao Estado Penal. Nesse gesto de respaldo, não há exatamente espaço para a escolha consciente fundante dos clássicos: essa escolha dependeria da reabertura do horizonte de expectativas da modernidade – o que parece impossível, dado o sentido inegavelmente regressivo que o desenvolvimento do capitalismo assumiu, conforme amplamente mostrado por Arantes, que parece, por eliminação, estar mostrando a necessidade (verdadeiramente urgente) de inaugurar um novo horizonte de expectativas.
Elites ilegítimas e rotinização do protesto
Esse quadro de consenso em torno de ilegitimidade, através de cujo prisma a submissão defensiva da sociedade fascista novamente lança luz sobre a contemporaneidade, ecoa o conceito de “rogue power” de Judith Butler trabalhado acima, bem como a noção, desenvolvida por Frank Furedi31, de elites governantes que operam num regime de indiferença à “legitimidade de sua própria autoridade e de seu modo de vida” e ao “mais ligeiro senso de missão histórica a cumprir” (p. 111). Tal indiferença aponta para o desmantelamento da unidade nacional enquanto catalizadora da unidade social. Há um paralelo entre a “exaustão política” das cliques que governam descaradamente para si mesmas, calculadamente desconectadas dos interesses dos demais envolvidos no seu governo (p. 112), e a “falência múltipla das comunidades políticas imaginadas” (p. 113) da aurora da modernidade. Tal falência é outra marca da superação do paradigma da contemporaneidade do não-contemporâneo. Com essa superação, ocorre uma “normalização do discurso da extrema direita” (p. 114).
No mapa de Furedi, entretanto, a “exaustão política” atinge também a outra ponta sociedade administrada pelas armas: se, por um lado, segundo censo oficial, entre 1991 e 2000, ocorreram 341 motins na França, um terço dos quais deflagrados por excessos policiais; e se, em 2003, foram incendiados nos subúrbios franceses 21.500 carros, 60 em média por noite, por outro lado, a rotinização dessa forma de violência por parte – como se diz – “dos de baixo” também sugere a possibilidade de que a vida normal e a revolta constante tenham se tornado compatíveis. Para a sociedade capitalista que superou a modernização, a revolta é usual e não traz problema político: se muito, administrativo. É nesse sentido que Furedi fala de “protesto desengajado” (apud. p. 118). Nas margens revoltadas da classe média do Primeiro Mundo, essa rotinização do protesto também já produziu toda uma cultura que permite à juventude engajar-se politicamente em tempo integral, preparando alimentos veganos de manhã, frequentando o centro cultural ocupado de tarde, promovendo festa num squat de noite, e participando mensalmente de demonstrations que, como obras de arte do período burguês clássico, tomam o ato de mostrar como fim em si mesmo.
Emergência social
A existência de zonas de desordem permanente – e a ocupação armada de territórios urbanos pelas Unidades de Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro também mostra bem do que Agamben está falando com esse conceito – lança luz sobre o papel múltiplo da urgência/emergência no contexto da guerra civil ou do estado de exceção permanentes. Por um lado, nessas zonas, está em jogo a suspensão oficial e pontual – no tempo e/ou no espaço – de garantias constitucionais básicas, dentro de um quadro total de desmonte do estado social que não consiste em outra coisa que na erosão de direitos básicos. Por outro lado – e o mesmo se passou com as ZUS francesas quando da decretação do Estado de Urgência diante dos levantes suburbanos de outubro e novembro de 2005 –, as zonas de desordem permanente são alvos constantes de “pacote[s] de recuperação social”, através dos quais se fazem valer as antiquíssimas reivindicações da esquerda por uma atuação – agora enérgica – por parte do Estado na direção da garantia de direitos (p. 137). Entre nós, temos o “choque de ordem” ou “choque de serviços” promovidos pela administração pública do Estado do Rio de Janeiro como suposto complemento social às intervenções policiais-militares nos territórios de pobreza32. Com o colapso da modernização, dá-se uma “convergência inusitada entre esquerda e direita diante dos apelos contraditórios da emergência onipresente e a correspondente demanda não menos contraditória por segurança e proteção social, uma e outra cada vez mais escassas e seletivas” (p. 138).
Decomposição sem superação
Essa convergência não pode ser desprezada, nem tratada como um acidente de percurso do qual parte da esquerda teria se eximido refugiando-se no rigor moral/intelectual e no distanciamento do aparato político. Ela nos diz algo a respeito do caráter assumido pela acumulação capitalista, e das implicações desse caráter sobre as possibilidades dos dispositivos modernos de administração social. Por um lado, o objeto real do discurso da direita a respeito do “fim da história” é uma sociedade que superou a inclusão econômica massiva através do trabalho: é um “mundo em crescente descontrole” (p. 136), a “sociedade do risco” que combina o empreendedorismo de si mesmo com a espera constante pela catástrofe (p. 139). Dessa forma, o teor triunfalista da formulação thatcheriana, “não há alternativa”, foi substituído por uma resignação de elite francamente violenta. Por outro lado, a esquerda mesma também está colocada diante da catástrofe, e concentra seu fogo não mais na expansão dos direitos burgueses clássicos – como no “tempo em que a luta de classes civilizava o capital” (p. 142) – mas na sua conservação: na “sociedade securitária de risco (…) não lutamos mais para que o futuro seja melhor, simplesmente para que não seja pior” (p. 141). Condicionada à administração social armada por séculos de guerra civil permanente, o Estado tomou feições que obrigam tanto a esquerda quanto a direita a operar “sobre um fundo comum de ortodoxia econômica”, à luz da “economia de risco permanente” (p. 140). A ausência de perspectiva transformadora de que tal comportamento dá testemunho é sinal de que, por si só, “a decomposição da sociedade capitalista a rigor não anuncia mais nada” (p. 141).
É para essa ideia de uma decomposição social sem superação do capitalismo que o livro de Arantes empurra o leitor. A sociedade capitalista está atrelada a um aparato econômico-governamental que se moldou para a crise social permanente. O Estado e as operações de reprodução da vida há décadas entraram no compasso da manutenção da emergência, impulsionadas pelas necessidades intrínsecas da acumulação capitalista. Ao contrário de significar que a vida sob o capital se tornou impossível, e que os aparatos de dominação já não são eficazes, o que isso tudo nos diz é que o capital produz continuamente e com sucesso uma realidade social funcional, desde o ponto de vista de sua compatibilidade com os ditames da acumulação autocentrada, e por isso mesmo aquela funcionalidade está marcada pela exceção. Assim, o Estado, o mercado, o trabalho, a mercadoria, a acumulação, os pilares da sociedade burguesa clássica estão de pé. Mas a argumentação de Arantes mostra como esses pilares dissociaram-se historicamente da perspectiva anti-sistêmica contida na modernização, num processo que atinge sua culminância na sociedade penal contemporânea. Nesse sentido, a sociedade burguesa clássica foi revogada, e talvez fosse necessário dizer que vivemos todos numa pós-modernidade. Assim, é como se a prática e a teoria da crítica social não tivessem no que se agarrar: afora um discurso anacrônico que rumina ainda o universalismo burguês, meio tentando postergar seu passamento, meio buscando crer na sua renascença, não há nada no processo social mesmo que aponte para além dele, por mais que, por outro lado, continuemos precisando dele para sobreviver. A falta de perspectiva histórica que motiva o livro de Arantes significa exatamente isso: não está dado o material social através do qual a experiência social dos dominados pode adquirir um sentido histórico diferente do necessário à manutenção da máquina de moer gente da acumulação capitalista. Obviamente, o fato de que tal material não esteja dado não significa que não possa ou não deva ser construído, embora em que bases seja uma questão que extrapola o livro. O que Arantes nos mostra é que estamos num mato sem cachorro; mas até agora nos tínhamos deixado guiar por Cérbero.
NOTAS
1 Postone, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social. São Paulo: Boitempo, 2014.
2 A expressão é de Reinhart Koselleck, Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad.: V. Mars e C. Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto/Edipuc, 2006.
3 Aqui o diálogo é com o Koselleck de Crítica e crise. Trad.: L. Castelo-Branco. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.
4 Fukuyama, Francis. O fim da história e o último homem, Rio de Janeiro: Rocco, 1992
5 Postone, M.: “The Holocaust and the Trajectory of the Twentieth Century”, in M. Postone e Eric Santner (orgs.) Catastrophe and Meaning. Chicago: Chicago University Press, 2003.
6 Dejours, C. Souffrance en France: la banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil, 1998
7 Torrente, J. ”Travail et Banalité du Mal” in Revue de la Shoa, 175.
8 Primo Levi, Os afogados e os sobreviventes, trad de Luis Sérgio Henriques (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, pp 19-20)
9 Harvey, David. Condição pós-moderna. Trad,: A. U. Sobral, M. S. Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2011.
10 Torrente, J. “Travail et banalité du mal” in: Revue d’histoire de la Shoah (nr 175).
11 Zygmunt Bauman, Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998
12 Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
13 Schwarz, Roberto. “A nota específica” in Seqüências Brasileiras. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
14 Agamben, Giorgio. Estado de exceção. Trad.: I. D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
15 Schmitt, C. Dictatorship. Polity Press, 2013.
16 Arantes, Paulo. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 154.
17 Cf. Giorgio Agamben, Estado de exceção (São Paulo, Boitempo, 2004, p.12)
18 Foucault, Michel. Sécurité, territoire, population: Cours au Collège de France (1977-1978). Ed. Senellart, Michel. Gallimard; Seuil: Paris, 2004
19 Judith Butler, Precarious Life, London, Verso, 2004.
20 Hannah Arendt, Imperialismo: a expansão do poder, Rio de Janeiro: Documentário, 1976
21 Op. cit.
22 Bercovici, Gilberto. Soberania e constituição, USP 2005
23 Marcuse, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1973
24 Virilio, Paulo. L’insécurité du territoire, Paris: Galilée, 1976, Primeira Parte, “L’État suicidaire”.
25 Apud. Bercovici, Gilberto. Op. cit.
26 Loïc Wacquant, Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
27 KLEIN, Naomi. A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2008.
28 Frédéric Gros, États de violence: essai sur la fin de la guerre (Paris: Gallimard, 2006)
29 Agamben, G. Entrevista a Vladimir Saflate, Folha de São Paulo, 18/09/2005.
30 Rancière, Jacques. “O princípio da insegurança”, Folha de São Paulo, 21/09/2003, caderno Mais!, pg.3
31 Frank Furedi, Politics of Fear: Beyond Left and Right, London: Continuum, 2005
32 c.f. Até o último homem, p. 81.
* Esta resenha foi matéria de capa da revista
Conhecimento Prático Filosofia, de agosto/setembro 2014; ed. 50.
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Sobre a submissão da política à polícia e a militarização do espaço urbano, a Boitempo publicou recentemente o livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, organizado por Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito.
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Pedro Rocha de Oliveira é um dos colaboradores do livro de intervenção Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, organizado pela Boitempo. Com textos de David Harvey, Slavoj Žižek, Mike Davis, Ruy Braga, Ermínia Maricato entre outros. Confira, abaixo, o debate de lançamento do livro no Rio de Janeiro, com os autores Carlos Vainer, Mauro Iasi, Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira:
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Pedro Rocha de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Coorganizador, com Felipe Brtito, de Até o último homem: Visões cariocas da administração armada da vida social, publicado recentemente pela Coleção Estado de sítio, coordenada pelo filósofo Paulo Arantes e editada pela Boitempo Editorial. Colabora esporadicamente com o Blog da Boitempo.
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