Bill Ferrer, o detetive heterodoxo, e a era FHC

14.09.22_Mouzar Benedito_FerrerFHCPor Mouzar Benedito.

Bill Ferrer é um detetive particular gringófilo. Tanto que adotou esse nome e fala com sotaque do sul dos Estados Unidos.

Sua agência fica na Baixada do Glicério, área decadente da região central de São Paulo. Lá, numa saleta pequena e maltratada, ele toma uísque nacional de marca bem barata, enquanto seu auxiliar, Vasconcellos, toma jurubeba. Os dois comem tremoços e cospem as cascas numa lata de lixo, errando quase sempre, o que deixa o chão em estado deplorável.

Os dois comentam a situação em que estão: há muito não entra dinheiro para Bill Ferrer. A criminalidade é grande e há muita corrupção, pouca coisa é apurada pela polícia, então supostamente deveriam sobrar clientes para o detetive. Mas há um desânimo geral, uma descrença em tudo, e poucas vítimas ou parentes de vítimas pensam em apurar esses crimes. Os que pensam nisso, não têm dinheiro. Com isso, o salário mixuruca de Vasconcellos está pra lá de atrasado e ele é ameaçado de ser posto pra fora do cortiço em que mora.

Bill Ferrer já pensa em fechar a agência e procurar algum emprego, o que dificilmente conseguiria, pois o comum é demitir gente, não contratar, e o desemprego ronda todo mundo.

Estamos falando de 2014?

Não, não, não! É 2002. O livro Pamonhas de Piracicaba e outras histórias está sendo lançado agora, mas foi escrito em 2002. Tem três contos e, para ser mais exato, a última delas foi escrita no início de novembro daquele ano. O fim da história se passa exatamente na noite de domingo em que aconteceu o segundo turno das eleições.

Vasconcellos é um crítico confuso do governo, mas vota sempre na esquerda, ao contrário de seu patrão, Bill Ferrer, reacionário e eleitor tucano. Só que a situação está tão grave que Ferrer chega à conclusão que tem que votar na oposição para ver se muda alguma coisa.

Isso aparece num “lado B” das histórias, nos diálogos entre eles. Ferrer só fala em dólares, o dinheiro que respeitava, e que chegava no final de 2002 a quase R$ 4,00, por causa do medo dos investidores sobre uma possível eleição de Lula para a presidência.

Relendo os originais, fiquei me lembrando do segundo mandato do governo FHC, pois esse volume foi escrito no último ano de governo dele.

O desemprego crescia, havia uma falta geral de perspectiva, um pessimismo danado, um medo do futuro. Lembro-me que entre as pessoas que eu conhecia as mais otimistas achavam que não piorariam de vida nos meses seguintes.

Parecido com hoje? Não acho que o Brasil esteja uma maravilha, mas gostaria que certos tucanos, devotos do “mercado” e muitos jornalistas lessem esse livro. Não vai acontecer, claro. E se algum ler é capaz de me chamar de “petralha”, embora eu nem seja petista. Deixei de ser em 1994, quando o PT abandonava propostas geradas em sua origem e se adaptava ao quadro político existente. Deixava de ser um partido diferente dos outros para ser cada vez mais igual a eles, com vernizes de esquerda.

Adotou um discurso moralista que, como previ e fui muito xingado por isso, daria com os burros n’água.

Bom, vamos ao enredo dos três contos, deixando um pouco de lado esse “lado B”, com histórias paralelas que servem mais ou menos para contextualizar as histórias.

No primeiro caso, À procura de um Zé, Ferrer é contratado para descobrir o assassino de um velho fazendeiro de Mato Grosso do Sul, encontrado agonizando num terreno baldio do bairro do Tucuruvi, em São Paulo. Uma historinha paralela envolve seu auxiliar Vasconcellos, que vive cantando a prima que topa transar com todo mundo, menos com ele, agora tem um começo de paquera com uma policial.

O segundo caso, que leva o título do livro, Pamonhas de Piracicaba, trata de roubo de cargas de carne e troca clandestina de carne de gado especial por outras comuns, para uma rede de churrascarias. O título que não tem nada a ver com isso se deve ao fato de naquele ano serem muito frequentes as kombis anunciando as famosas “pamonhas de Piracicabas” e incomodando Vasconcellos, azucrinando os ouvidos de muita gente. O clima de desânimo, corrupção como cultura e falta de grana já aparece aqui com certo destaque. Vasconcellos acredita que terá um trunfo que fará a prima cobiçada cair nos seus braços, mas isso é outra coisa. Será que conseguirá?

No terceiro, com tamanho dos dois primeiros somados, Onde está o Abreu? Você não sabe? Nem eu!, investiga-se o sumiço de um líder empresarial, o Abreu, sequestrado um ano antes no consultório de uma dentista. Estaria morto? A polícia e outros detetives tentaram em vão descobrir o que aconteceu com ele. Aí a família recorre a Bill Ferrer, que já estava quase fechando sua agência de detetives por falta de clientes.

Neste conto, fica evidente o clima político e econômico da época. Dólar subindo de preço exageradamente e uma falta de perspectivas tão grande que até o reacionário Bill Ferrer resolve votar na oposição para ver se as coisas melhoram.

Discussões políticas e safadezas entremeiam os textos.

Se descobrem o Abreu? Bom… Compre o livro e veja.

Lançamento de Pamonhas de Piracicaba e outras histórias (Editora Limiar)
dia 24 de setembro | quarta-feira | a partir das 18h30
Restaurante Canto Madalena
Rua Medeiros de Albuquerque, 471 | Vila Madalena | São Paulo

Eleições630p

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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças. 

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