“Uma pessoa, um voto” ou “um real, um voto?”

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Por Daniel Bin.

“O estado moderno … depende cada vez mais de manter uma esfera pública empobrecida e higienizada, onde vivem somente os fantasmas de uma sociedade civil mais velha e idiossincrática”
(Retort, Aflicted Powers, Verso, 2005, p. 21).

Em maio último o governo brasileiro instituiu a denominada Política Nacional de Participação Social – PNPS. A maior parte das reações ao ato pareceu assumir que iniciava-se então alguma grande transformação. De um lado, houve quem visse ameaças ao regime democrático; de outro, quem enxergasse oportunidades para o aprofundamento da democracia. Acredito que em ambas as situações algumas das análises padecem da percepção que o Estado capitalista é espaço mais de reprodução que de transformação das estruturas sociais.

As reações que, presas aos limites estreitos da democracia representativa, tratam a PNPS como ameaça parecem mais expressões de um temor quanto ao potencial aumento da concorrência entre visões e interesses diversos. Esse é um risco que nunca estiveram dispostas a correr tanto as classes dominantes como quem administra os interesses dela e os seus próprios a partir do aparato estatal. Assim, não surpreende que o ataque mais significativo sobre a referida política esteja partindo de dentro do próprio estado, no caso, do Congresso Nacional, onde tramita projeto de decreto legislativo que susta a aplicação do decreto que insytituiu a PNPS.

A mesma contradição – eventual aprofundamento da democracia por meio da participação direta ameaçaria a própria democracia – embalou reações contrárias também por parte da grande imprensa. O editorial d’O Estado de S. Paulo trouxe a afirmação que a PNPS “fere o princípio básico da igualdade democrática (‘uma pessoa, um voto’) ao propiciar que alguns determinados cidadãos, aqueles que são politicamente alinhados a uma ideia, sejam mais ouvidos.” Figura ali a velha ideologia liberal de defesa da desconcentração formal do poder político, que, contudo, mantém o poder real dentro de limites seguros. Para a burguesia, esses limites seriam dados justamente pelo que sintetiza o mesmo editorial ao defender que “a participação social numa democracia representativa se dá através dos seus representantes no Congresso.”

Ocorre que nas democracias representativas a participação “social” nunca foi restrita à intermediação parlamentar. Para algumas áreas, arrisco dizer que o parlamento nem mesmo é considerado relevante. Exemplo é a política macroeconômica, da qual o legislativo brasileiro nem mesmo chega a ser um coadjuvante significativo. Nas últimas quatro décadas, marcadas pela expansão financeira da economia, a concentração de poder econômico nas mãos do capital financeiro teve repercussões importantes em termos de poder político. A esse setor da economia franqueou-se um espaço de participação (“social?”) em decisões de governo que se assemelha aos que outrora tiveram a oligarquia agrária e a indústria durante suas respectivas hegemonias. Em todas essas fases, o que observamos foi a lógica “uma pessoa, um voto” sendo comprimida pela lógica “um real, um voto.”

Mecanismo dos mais óbvios, ainda que pouco transparente, é o financiamento privado das campanhas eleitorais. Em termos substantivos, ele acaba funcionando como meio de compra de apoio a políticas alinhadas aos interesses de quem financia. Na eleição presidencial de 2010, pessoas jurídicas doaram às (ou investiram nas?) três principais candidaturas cerca de R$ 265 milhões ante R$ 440 mil doados por pessoas físicas. Na campanha deste ano, a primeira rodada de prestações de contas das candidaturas revelou que 3% das doações vieram de pessoas físicas e 91%, de pessoas jurídicas. Essas diferenças apontam para uma clara distinção quanto à influência que têm alguns poucos e que não têm outros muitos na condução dos negócios do estado.

O sociólogo estadunidense Charles Wright Mills já dizia que quando um membro do que ele nomeou “elite do poder” telefona para uma repartição do governo sempre há alguém para atender à chamada. Em contexto e exemplo atuais, não é qualquer um que dispõe das prerrogativas necessárias para ser recebido pela presidente da República; por exemplo, comandar um banco com dimensões tais que lhe permitem alcançar milhares dos seus clientes mais ricos com indicações sobre os riscos de uma potencial reeleição da mesma presidente.

Este último exemplo, aliás, parece reedição do primeiro ato da sequência formada pelo “lulômetro,” divulgação da “Carta ao povo brasileiro” pelo então candidato Lula, e escolha de ex-presidente de um grande banco estadunidense para chefiar o banco central brasileiro. Tudo isso serve para lembrar que quando divulgam suas opiniões, os intelectuais orgânicos do capital “participam” de escolhas políticas. Assim, diferente do que dizem esperar a imprensa conservadora e aqueles com ideias similares dentro do parlamento, a participação numa democracia é sim efetivada por vias extraparlamentares. Mas ela não é universal, como mostram as estreitas portas dos gabinetes e os amplos cofres partidários alimentados pelo capital.

Outros mecanismos de influência têm a ver com a própria lógica de regulação do regime financeiro de acumulação. A preponderância da preocupação com o valor de compra da moeda nesse regime posicionou os bancos centrais dentro das estruturas hegemônicas dos aparatos estatais. Em certos casos essas próprias estruturas foram redesenhadas, como quando concedeu-se à autoridade monetária independência em relação aos respectivos governos eleitos. O que sustenta a defesa de tal independência é a lógica parcial segundo a qual um banco central tão mais protegerá o valor de compra da moeda quanto menor for a interferência de outras áreas do governo sobre a política monetária. Um problema dessa racionalização é que a interferência política não se restringe a governos.

Uma das maneiras pelas quais o capital interfere em decisões políticas que lhe dizem respeito tem a ver com aquilo que nos Estados Unidos é discutido sob a metáfora da “porta giratória” (revolving door, no original). O termo é utilizado para indicar movimentações de profissionais que transitam entre empresas privadas e organismos governamentais encarregados de supervisioná-las. Cito aqui apenas alguns exemplos relevantes, como o do último secretário do Tesouro estadunidense a deixar o cargo, tendo então ido ocupar a presidência de um fundo de participações. Seu antecessor tomara sentido inverso ao assumir o Departamento do Tesouro após ter presidido um dos maiores bancos de investimentos do país. Banco este onde já trabalhou também o atual presidente do Banco Central Europeu.

Similares têm sido algumas movimentações de membros da diretoria do banco central brasileiro, cuja formação coincide com a composição do seu Comitê de Política Monetária. Desde a criação do Comitê, em 1996, até 2012, mais da metade dos seus componentes teve como origem ou destino bancos, administradoras de fundos, corretoras, Banco Mundial ou FMI.

Implicação desse tipo de movimentação é apontada pelo ex-economista-chefe do Banco Mundial Joseph Stiglitz ao lembrar que ministros de finanças e dirigentes de bancos centrais geralmente são ligados à comunidade financeira, sendo “natural” que vejam o mundo como os olhos desta. “Esses técnicos são facilmente capturáveis” foi dito certa feita pelo ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira perante comissão da Câmara dos Deputados ao expressar contrariedade à independência do Banco Central, que, segundo ele, existiu de fato durante os governos FHC e Lula. E eis que o assunto aparece com força na atual campanha presidencial. Pesquisas de intenção de voto têm feito a finança sorrir a cada avanço da candidata cujo programa de governo é descrito por analistas do insuspeito Citibank como “economicamente conservador” e potencialmente favorável “a bancos privados.”

É essa estrutura de regulação da economia—da qual os exemplos citados são apenas alguns—que por ora parece imune a qualquer tipo substantivo de democratização. O decreto que instituiu a PNPS prescreve que “os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social…” Não sei qual será a extensão do trecho “respeitadas as especificidades de cada caso,” mas entendo que deva ser analisado à luz do insulamento tecnocrático a que foram submetidas as decisões sobre política macroeconômica nestas últimas décadas (o destaque dado a essa política deve-se ao fato dela condicionar qualquer outra que dependa da repartição dos recursos arrecadados pelo estado).

Além dos limites à extensão da PNPS dados pelo contexto socioeconômico, ela própria, mais especificamente a sua institucionalização, pode engendrar estratégia de contenção de pressões populares. Contenção essa que pode advir justamente dos limites “democráticos” das instituições estatais dados pela figura da representação. Chamar atenção para esse risco não se confunde com a ideologia que embalou as críticas conservadoras à PNPS. Ao contrário, este alerta parte de uma concepção de democracia segundo a qual esta será tão mais democrática quanto maior for a quantidade de espaços de participação popular efetiva. Assim, o risco que se apresenta não é sobre o tipo de democracia existente, mas sim que os limites desta alcancem uma potencial outra democracia.

Essa outra democracia poderia ser aquela em que governantes e burocratas estivessem à disposição para ouvir demandas populares em detrimento da lógica “um real, um voto.”

É legítimo esperar que a institucionalização de espaços de participação tenha algum potencial democratizante. Contudo, a realização disso vai depender do quão democráticos forem os seus processos de composição, de definição das pautas e de “deliberação.” Vai depender mais ainda do quanto tais espaços estiverem articulados com os diversos segmentos populares. Imaginar que qualquer espaço possa levar ao aprofundamento democrático se for desenvolvido longe das ruas, bairros, sindicatos, locais de trabalho, enfim, longe dos diversos espaços sociais, fatalmente confirmará o que disse um dos ministros que subscreveu o decreto que instituiu a PNPS: “não muda nada a realidade de hoje. Apenas organiza aquilo que já está acontecendo.”

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Daniel Bin é doutor em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) com estágio na Universidade de Wisconsin-Madison, é professor de políticas públicas na Universidade de Brasília e pesquisador e pesquisador visitante da Universidade Yale, EUA. Email: danielbin@unb.br Dele, leia também A financeirização da democracia brasileira e A (in)visibilidade da luta de classes nas Jornadas de Junho, no Blog da Boitempo.

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