Weber e o estatuto do reformismo marxista

Por Ricardo Musse.

Em Max Weber o conflito de valores desemboca em uma atitude de neutralidade axiológica que se contrapõe ostensivamente à concepção marxista de crítica. Uma consequência imediata da neutralidade axiológica, por exemplo, seria a separação extrema entre teoria e prática, desfazendo a tensa unidade entre ambas, proposta por Marx com o conceito de práxis.

A separação entre juízos científicos e juízos de valor abriu caminho tanto para o “socialismo ético” dos austríacos, embebidos de neokantismo, quanto para o revisionismo de Eduard Bernstein. De qualquer modo, parece que o resultado histórico da incorporação pelo marxismo da tese weberiana da neutralidade axiológica, em particular, da afirmação conexa a ela da separação entre teoria e prática, resultou, geralmente, em modalidades de formulação teórica da prática reformista. Vejamos um exemplo dessa incorporação, o “Prefácio” a O capital financeiro, de Rudolf Hilferding.

Nesse prefácio, Hilferding apresenta (a título de esclarecimento, visando dirimir as “controvérsias metodológicas suscitadas pela sua abordagem da política econômica”) duas teses interdependentes. A primeira tem como alvo explícito a distinção feita por Max Weber entre ciência e política, ou, nas palavras de Hilferding, a concepção que sustenta que “a política é uma doutrina normativa determinada, em última instância, por juízos de valor. Como esses juízos não constituiriam objeto de ciência, o estudo da política estaria fora do âmbito das considerações de ordem científica” (O capital financeiro, p. 28).

Em nenhum momento coloca-se em discussão o estatuto científico da teoria econômica marxista. Pelo contrário, inserindo Marx e o marxismo na linhagem da ciência econômica, dita “burguesa”, Hilferding defende que a questão em pauta no seu livro (a compreensão do capitalismo “moderno”, cujo traço mais característico seria um processo de concentração que, além de favorecer a formação de cartéis e trustes, aproxima até à indistinção o capital bancário e o industrial), isto é, a determinação das “leis e da função do capital financeiro”, tornou-se um ponto indispensável para qualquer espécie de ciência econômica. Assim, o que se encontra propriamente em jogo aí é apenas o teor da teoria política marxista, cuja cientificidade Hilferding advoga.1

Trata-se de um combate em dois planos: intra muros, contra a visão economicista que reduz o marxismo a mera teoria econômica; no campo do adversário, contra aqueles que o acusam de ser uma teoria essencialmente política e, portanto, não científica. Ao insistir no caráter científico da política, definida como o estudo de relações causais, Hilferding (aceitando e, por conseguinte, introduzindo subrepticiamente no interior do marxismo a distinção de Max Weber entre ciência e juízos de valor) concebe o marxismo como um saber segmentado em duas partes: uma, econômica, ou melhor, histórica-econômica, voltada para o conhecimento das “leis da sociedade baseada na produção mercantil”, e a outra, política, orientada para a descoberta, “em termos de relações causais”, da “vontade coletiva das diversas classes dessa sociedade”.

A segunda tese, mais polêmica ainda, sustenta que apesar de a identificação do marxismo com o socialismo ser facilmente compreensível por meio do próprio interesse dos “representantes” do proletariado em aderir a conclusões científicas que “prometem” a vitória à sua classe, tal associação seria intrinsecamente falsa:

“Considerado sob o ponto de vista lógico, apenas como sistema científico e deixando de lado os seus efeitos históricos, o marxismo é apenas uma teoria das leis da dinâmica da sociedade, uma teoria geral da concepção marxista da história que aplica a economia marxista ao período da produção mercantil. O socialismo é resultado das tendências que operam na sociedade baseada na produção mercantil. Aceitar a validade do marxismo e reconhecer, inclusive, a necessidade do socialismo, não implica, de modo algum, a formulação de juízos de valor, nem constitui uma regra prática de conduta. Uma coisa é reconhecer a necessidade, e outra coisa é colocar-se a serviço dessa necessidade” (O Capital Financeiro, p. 29).

Hilferding submete o marxismo a uma dupla significação. Do ponto de vista histórico, ele pode ser compreendido como um patrimônio do proletariado, o que explicaria inclusive o equívoco da denominação “ciência proletária”. De uma perspectiva estritamente lógica, porém, o marxismo, enquanto saber isento de juízos de valor, é uma ciência guiada pela aspiração à validade objetiva e universal.2

Desse modo, a ampliação do escopo científico do marxismo que Hilferding promove, contra os economicistas, tem como contrapartida a redução da política – dimensão decisivamente característica do marxismo desde as lutas contra as concepções anarquistas no seio da Primeira Internacional – a mero saber teórico. Para lhe conceder estatuto científico, Hilferding isenta o marxismo de qualquer consideração acerca de “regras práticas de conduta”, instaurando um abismo insuperável entre a teoria e a prática.

Podemos concluir, portanto, que, de modo geral, os quadros políticos e teóricos mais representativos da social-democracia alemã (baluarte da Segunda Internacional) e os membros mais eminentes da sociologia clássica alemã, apesar de suas posições muitas vezes diferenciadas no debate público da época, compartilharam uma mesma experiência social que poderíamos, para simplificar, designar como “o estabelecimento dos primórdios do Estado do bem estar social”.

Essa experiência compartilhada não apenas permitiu o trânsito de conceitos entre campos institucionais tão distintos e distantes, como parece ter marcado ambos os movimentos por um horizonte de expectativas em que a prática política reformista apresentava-se mais do que como uma potencialidade ideal. Parecia mesmo configurar uma exigência do presente histórico.

Leia também “O politeismo de valores, segundo Max Weber“, na coluna de Ricardo Musse no Blog da Boitempo.

Referências bibliográficas

HILFERDING, Rudolf. O capital financeiro. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
WEBER, Max. Ciência e política. Duas vocações. São Paulo, Cultrix, 1972.

NOTAS

1 Hilferding apresenta o seu livro como uma tentativa de “compreensão científica dos fenômenos econômicos referentes ao desenvolvimento capitalista mais recente. Isso significa tentar incorporar esses fenômenos ao sistema teórico da economia política clássica que começa com W. Petty e encontra a sua expressão máxima em Marx” (O Capital Financeiro, p. 27).

2 Não há como deixar de relacionar essa ótica dual com a dupla significação a que Kant, no Prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura, submete os objetos, “a saber, como fenômeno e coisa em si mesma”, matriz indiscutível de uma série de dualismos: entre o transcendental e o empírico, a teoria e a prática etc. Outro tópico também abordado por Kant neste Prefácio consiste na descrição da ciência como um saber dotado de validade universal e objetiva.

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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.

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