Desafiando a hegemonia

14.09.08_Desafiando a hegemoniaPor Ruy Braga.

Se confiarmos nas atuais enquetes, Marina Silva apresenta boas chances de derrotar Dilma Rousseff em um eventual segundo turno. Uma guinada desta magnitude na cena política não se improvisa. Mas como interpretá-la? Há tempos, tenho insistido que a hegemonia lulista resulta da convergência entre duas formas distintas de consentimento. Por um lado, o consentimento ativo das direções dos movimentos sociais, tendo os sindicalistas à frente, que se acomodaram ao aparelho de Estado e aos fundos de pensão das empresas estatais. Por outro, o consentimento passivo das classes subalternas que, seduzidas pelas políticas públicas redistributivistas implementadas pelo governo federal, permaneciam ao lado do Partido dos Trabalhadores. Vale sempre destacar que o adjetivo “passivo” qualifica o substantivo “consentimento” e não os próprios subalternos.

No entanto, a atual desaceleração econômica decorrente do aprofundamento da crise internacional e da diminuição de investimentos domésticos ameaça o regime hegemônico lulista. Afinal, uma economia em compasso de espera castiga o mercado de trabalho. Além disso, o aumento do endividamento das famílias trabalhadoras combinado ao aprofundamento da precarização do trabalho amplificam o descontentamento popular com o atual modelo de desenvolvimento. Percebendo os riscos inerentes à desaceleração da economia, as classes subalternas brasileiras colocaram-se em alerta.

Enquanto os setores organizados protagonizam greves e o subproletariado segue firme com o governo, uma massa de aproximadamente 45 milhões de cidadãos formada por jovens entre 16 e 33 anos e mais escolarizada que a geração anterior, percebendo renda individual semelhante à dos pais, desgarra-se da hegemonia lulista, avizinhando-se de Marina Silva. Segundo dados divulgados recentemente pelo Instituto Datapopular, sete em cada dez jovens brasileiros estudaram mais do que seus pais, 65% deles trabalham e quatro em dez conciliam trabalho e estudo. Além disso, nos lares onde vivem estes jovens trabalhadores, de cada R$ 100,00 que um pai injeta nas finanças domésticas, o filho coloca R$ 96,00. Politicamente inexperientes e sindicalmente desorganizados, não é de se estranhar que 59% deles acreditem que o país estaria melhor se não existissem partidos políticos.[1]

Apesar de reconhecer certo progresso sócio-ocupacional na última década e meia, essa massa fartou-se do atual modelo. Nem Aécio Neves, nem Eduardo Campos lograram seduzi-la. Afinal, ambos são políticos tradicionais, ou seja, totalmente identificados com o sistema partidário criticado pelos jovens. Mas o que dizer da líder de um partido que é uma “rede”, uma mulher que não é “nem de esquerda, nem de direita”, oriunda de um grotão esquecido do país, cuja trajetória de vida é ligada à preservação ambiental e que fala o tempo todo em “nova política”?  

Marina Silva surfa confortavelmente na onda “mudancista”. De quebra, ela absorveu parte do voto das classes médias tradicionais animadas com a possibilidade de derrotar Dilma Rousseff. De fato, a pesquisa do Instituto Datafolha que cruzou dados eleitorais com o perfil político dos brasileiros mostra que, em um provável segundo turno contra Dilma, Marina seria a escolhida pelos eleitores de direita (49% contra 35% de Dilma) e de centro-direita (50% contra 38% da atual presidenta). Segundo o Datafolha, parte importante destes eleitores apoiam Aécio Neves, o candidato mais associado às opiniões direitistas.[2]

Apesar da presidenta vencer Marina Silva por uma boa margem entre os eleitores identificados com opiniões à esquerda (50% a 43%), o que mais chama atenção nesta enquete é a vantagem obtida pela ambientalista entre eleitores de centro-esquerda (47% a 45%) e de centro (48% a 43%). Trata-se de praticamente metade do eleitorado brasileiro (48%) e, apesar da pesquisa não cruzar dados relativos à idade, é razoável supor que esta fatia acolha parte considerável dos 45 milhões de eleitores entre 16 e 33 anos. Neste sentido, ao contrário do que dirigentes petistas têm afirmado, simplesmente não há como concluir que a maioria dos jovens que flertam com Marina Silva votem à direita.[3]

Na realidade, ainda que distorcida pelo rebaixamento geral de um debate político aprisionado pela polarização PT/PSDB, a aproximação entre a juventude trabalhadora e a candidata ambientalista manifesta eleitoralmente um desejo progressista de mudança social. Trata-se de uma ilusão, pois, certamente, Marina Silva faria um governo mais neoliberal do que Dilma Rousseff. No entanto, o desejo é legítimo e merece respeito. Os jovens trabalhadores que vivem entre um emprego sem futuro e uma faculdade particular noturna de baixa qualidade querem aquilo que o atual sistema político não é capaz de garantir, isto é, a ampliação de seus direitos sociais.

Além disso, eles pressentiram o risco de retrocesso histórico em caso de vitória do candidato tucano. Afinal, não foram os governos do PSDB que produziram desemprego e sucatearam os serviços públicos? Mas o que dizer de uma ex-militante do Partido Comunista Revolucionário (PRC), companheira de Chico Mendes, senadora pelo PT e dissidente, à época (lembremos) pela esquerda, do lulismo? A ex-ministra do meio ambiente surgiu ao olhos desta massa precarizada como uma alternativa confiável à fadiga do lulismo.

Pessoalmente, considero Marina Silva politicamente oportunista, ideologicamente conservadora e economicamente neoliberal. Em suma, uma péssima escolha. No entanto, a imagem que estes jovens despolitizados por mais de duas décadas de neoliberalismo e de lulismo parecem ter da candidata pessebista é bem diferente. Ela identificou-se à pulsão plebeia que anima o ciclo de lutas sociais inaugurado pelas Jornadas de Junho, capitalizando o desejo de progresso ocupacional enraizado na efetivação e na ampliação dos direitos da cidadania. É um baita estilhaço vindo diretamente da explosão das ruas no ano passado.  

Evidentemente, Marina Silva jamais seria capaz de disputar a direção dos movimentos sociais com o PT. Ou seja, o consentimento ativo das direções permanece intocado. Isto garante ao governo um enorme poder de reação. Ademais, o subproletariado não se afastou um mísero centímetro de Dilma Rousseff. Ou seja, a eleição segue indefinida. Entretanto, Marina Silva disputa com o lulismo, e esta é a grande novidade do momento político atual, o consentimento passivo dos subalternos. E o jovem precariado urbano, isto é, aquela massa precarizada de trabalhadores do setor de serviços acantonada nas periferias das principais cidades brasileiras, poderá garantir a vitória da candidata pessebista.  

Afinal, não devemos nos esquecer que a ampla maioria dos milhões de jovens que foram incorporados ao mercado de trabalho na última década recebendo pouco mais de um salário mínimo é formada por mulheres não brancas. A identificação com uma candidata mulher, negra, pobre e trabalhadora, não é acidental. Na verdade, Marina Silva é um tipo de liderança que se encaixa à perfeição nos sonhos desta massa em busca de alternativas. E ainda que a frustração popular seja certa, precisamos reconhecer que sua eventual vitória fluiria diretamente das contradições do atual regime hegemônico.

[1] Para mais detalhes sobre os dados desta pesquisa, ver Alan Rodrigues. “O que os jovens pensam sobre a política”. Istoé, n. 2336, 3 de setembro de 2014.

[2] Para mais detalhes, ver Ricardo Mendonça. “Centro-direita sustenta liderança de Marina no 2º. Turno, diz Datafolha”. Folha de S. Paulo, 7 de setembro de 2014.

[3] Ver Valter Pomar. “Quem não sabe contra quem luta não pode vencer”. Blog de Valter Pomar. Set. 2014.

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Eleições630p

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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

11 comentários em Desafiando a hegemonia

  1. Bom que o texto tem uma tese bem clara. Que é positiva e pedagógica, por da uma nova (outra) possibilidade de ver o quadro atual, até porque é acompanhada de uma análise bem qualificada.
    No entanto, concordo pouco com a tese, pois compreendo que o atual quadro se dar basicamente pela derrota do governo no campo econômico e não por uma procura de direitos por uma franja da população.
    Ou seja, é uma guinada explícita em direção a um posicionamento mais conservador, a minha conterrânea, embora tenha uma origem recheada disso ou daquilo, é a pessoa certa para capitalizar esse sentimento que ronda o país.

    https://www.facebook.com/jporfiro

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  2. não temos em quem votar e os descompromissados votariam em Marina ,só para variar.

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  3. Assis Carlos Silva // 09/09/2014 às 4:07 pm // Responder

    Excelente texto. Acrescentaria o afastamento de Dilma e do PT dos movimentos sociais e sindical, principalmente de Dilma que acreditava em governar para o setor desorganizado da sociedade que apesar de se encontrar beneficiado pelos programas sociais uma parte não vai votar em Dilma. Os casos de corrupção que o PT se envolveu também reflete o desgaste dos 12 anos a frente do governo. Tem que ser mais e não mais do mesmo.

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  4. Ruy Braga discordo ‘da candidata ambientalista’, ela se diz ambientalista, mas nós sabemos que ela não o é. Pelo que eu saiba, contrabando de madeiras (cujo marido dela é), grilagem e agronegócio não é algo ambiental. Chico Mendes se revira no caixão com as idiotices dessa senhora.

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  5. Armando Watson // 09/09/2014 às 5:46 pm // Responder

    Marina – Dilma, Dilma – Marina, não me interessa o que uma ou outra possa prometer ou que seguimento do eleitorado vai com uma ou outra.
    O que me espanta na atualidade e falta (quem sabe total) de posicionamento ideológico.
    Marina, Dilma digam a que vêm, qual é o norte pelo qual vocês se orientam, prometer eu não prometo, mas qualquer um promete o que quiser, promessas vazias, ideário vazio.

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  6. Bela síntese Ruy.

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  7. O problema talvez seja a ambiguidade da expressão “ambientalista”. Há várias definições e a maioria delas refere-se ao ambientalismo “de Mercado”, capitalista e financeirizado. É neste sentido que considero Marina Silva “ambientalista”. Não “ecossocialista”, naturalmente. É por isso que concordo com Ruth. Chico Mendes deve estar se revirando no túmulo…

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  8. Lourival Trombim // 11/09/2014 às 12:27 pm // Responder

    Resume. Txt grande d+. Faltou falar dos gastos governament, corrupção, petr4, ….pt virou lixo ou sempre foi??

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  9. Lopes Castro // 11/09/2014 às 8:04 pm // Responder

    Um texto sem uma letrinha se quer sobre o que move as forças insatisfeitas com Dilma, fazendo uma órbita muito afastada quando fala de ‘Jornadas de Junho e Julho’, e ainda coroa com uma joia celeste: “Percebendo os riscos inerentes à desaceleração da economia, as classes subalternas brasileiras colocaram-se em alerta.”, como se essas classes estivessem organizadas ao redor de tanto! É natural que os apoios petistas vão adorar correr seus olhos por um conteúdo onde não serão espetados por nenhuma verdade forte, a principal delas é que a fadiga no ‘lulismo’ está na plena e devastadora desconstrução do significado da política para todo mundo, velhos e jovens, pobres e ricos, um distanciamento dos valores e dos limites propostos por todos que sonhavam lá nas épocas de FHC, principalmente dos princípios levantados pelo nove-dedos, mas o que tivemos? Uma governança comprada que o rapaz do texto não conseguiu se quer elencar para estruturar sua ideia, mas tudo bem, a gente não vota em Marina porque estamos à deriva, estamos aprendendo que o formato de vida sugerido por petistas já não convence mais, não queremos mais o estilo de esperança e nem de sucesso que um consumista empoderado pelos assistencialismo, queremos do bem-estar a um planeta respeitado. Pagamos caro por uma governança lotada de funcionários ávidos por dinheiro, e um terminamos em um país que não funciona, que polui mais, que se apoia em mentiras e vende a alma por alguns minutos na propaganda eleitoral e anos nos cabides dos gabinetes, esses sim, órbitas bem próximas da presidente, o máximo possível.

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  10. Sheila Salvino // 12/09/2014 às 12:38 pm // Responder

    Eu acho hilário a existência de um importante percentual de brasileiros que se dizem ‘de direita’….. são pândegos…. bufões….

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  11. Leandro Pereira // 17/09/2014 às 2:24 pm // Responder

    Acho hilário que os esquerdistas se importem tanto com o percentual de brasileiros que se dizem “de direita”. Muitos desses são trabalhadores que nem sequer tem informações razoáveis sobre o grande circo da política burguesa. Ou se tem, é de se imaginar que não se interessem tanto. Grande parte da massa que se diz “da esquerda” se identifica com o populismo, de modo superficial. Não há nenhuma identificação mais grave que as impeça tornarem à direita num cenário eleitoral. Para não falar na confusão que gera: o neoliberalismo dos partidos trabalhistas, a combinação de conservadorismo e populismo na nossa social-democracia, o reacionarismo em nossos partidos verdes, etc. Quando o bicho pega, o que realmente importa é a capacidade dos trabalhadores subverterem a ordem. Pândego, para não dizer outra coisa, é a classe média esquerdista não compreender isso. É fácil para um peixe dentro do aquário se sentir vanguardista quando não importa o oceano.
    Quanto à Marina, trata-se dessa onda personalista da política moderna. É carisma. Identificam-na com o novo e não há um mínimo de consciência histórica que possa desiludir essa “renovação”. A polarização já se tornou de um roxo enjoativo, que não se mistura muito bem. Marina diz que vai dar tom vivaz à essa mistura. Olha, pra ser sincero, se é só o que se tem, vai ela mesma. Que diferença faz? As vítimas e os algozes continuam os mesmos. Pelo menos, dá-se uma cor diferente para esta novela. A não ser que os trabalhadores se organizem e a classe média saia do seu sofá!

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