O sorriso de Tiana
Por Roniwalter Jatobá.
Sebastiana Lira da Silva já passava da casa dos setenta quando seu filho mais velho, Teodoro, voltou de São Paulo. Vinha a passeio, em férias, depois de muito tempo de ausência. Naquela hora da tarde, ela estava solitária na cozinha preparando a janta. Do fundo inatingível do instinto materno, veio a percepção da entrada dele pela casa. Os pesados passos no assoalho de chão lembraram o caminhar do pai falecido. Como os mortos não andam, só podia ser ele. Mesmo assim, Tiana, como os conhecidos chamavam aquela prestativa parteira, só acreditou em sua presença quando ele encostou a mala num canto e pediu a benção.
Nem sabia que ele estava a caminho. As notícias eram poucas naquele fim de mundo, uma carta ou outra. O último bilhete, escrito às pressas, trazia o comunicado de que ia se casar, já era tempo. Na imaginação, Tiana acompanhou a festa e rezou para que fosse feliz com a nora desconhecida.
– Vim buscar a senhora para morar comigo – ele disse após o primeiro abraço.
Tiana riu, a boca desdentada.
– Na primeira semana chegando lá, uma dentadura vai lhe alvejar a boca – ele prometeu.
– Tiana não dormiu à noite. Com o filho no quarto ao lado, viu a madrugada chegar lenta, olhos nas frestas do telhado. A todo instante, vinha a dúvida: o que fazer, lá? Na penumbra, acariciou as próprias mãos que nunca tremeram mesmo em partos difíceis.
– Conto sem humildade – relatou certa vez. – Tinha coisa que doutora de anel no dedo, diploma estampado na parede, balançava a cabeça e se negaria a fazer. Eu não. Ia sem carecer de compensação, varava noite adentro. Agarrava a criança lambuzada de sangue e, com essas mãos calejadas de outras labutas, trazia ela para a vida.
Tudo isso passava pela sua mente, na noite mal-dormida. Mas, também, havia sonhos. Chegavam outros pensamentos e ela parecia ver uma dentadura nova em sua boca. Era uma ideia antiga, desde moça ainda com Teodoro no colo. Imaginava dentes novos espelhando em seu rosto, alvura de nuvem sem chuva, tampando a vergonha de sua pobreza. Tudo isso ia e vinha em sua cabeça. Vou, não vou, o medo de ir, o receio de ficar. Enfim, Teodoro tinha o mesmo sangue de suas veias, ela decidiu-se de vez.
Filho e nora moravam numa casinha de fundos, na Rua 3, hoje chamada de Rua Raquela Sinopoli, em São Miguel Paulista.
– É aqui, mãe, pode entrar. Vai entrando! – avisou Teodoro na chegada.
Abriu o portão, o corredor comprido e estreito.
– Mãe, na terceira porta – ele disse, apontando.
Enfiou a chave na fechadura. Girou o trinco. Os dois entraram, a mulher de Teodoro já amparando o malote pesado. Tiana estava com frio, que castigava seu corpo desacostumado. Tiana estava cansada da longa estirada de ônibus.
Nos dias seguintes, mesmo acordando cedo, Tiana não via o casal. Os dois saiam de madrugada. À noite, lamentava-se do filho, da mulher dele, ambos longe em Pinheiros e no Brás.
– A condução, mãe, e o trabalho de cão – ele se desculpava.
Um dia, Tiana quis cantar. Cantarolar uma música que falava de saudade. A voz veio devagar, a princípio medrosa. Depois, ganhou força. Mas, de repente, batem na porta. Alguém conhecido? Abre a porta, será conhecida de Teodoro? Uma mulher olha raivosa seu rosto, agora ornado com uma dupla carreira de dentes novos e brilhantes. A vizinha nem viu:
– Dava pra senhora não cantar. Meu marido trabalha durante a noite e é só nessas horas do dia que ele pode dormir – ela disse e foi embora.
Manhãs e tardes apagadas dentro de casa: o sofá marrom tomando a metade da sala; a televisão encostada no outro lado da parede; a cortina verde separando a sala do quarto do casal; a cozinha, miúda, acanhando os passos dentro dela. Seus olhos que já presenciaram horizontes tão longes que a vista se perdia no azulado da distância, agora estavam regrados. Num ritmo lento, perambulava pela casa o dia inteiro. Arrumava a cama de casal. Na sala, abanava a poeira que juntava de manhã à tarde. Já noitinha, preparava a comida.
Muitas vezes, chegava até o portão, sempre trancado. Pelas grades, via a rua vazia, silenciosa, quando muito algumas crianças brincando no terreiro ocupado de tijolos e telhas. Agora, nesta manhã, retorna e solta um sorriso para a porta de frente da moradia de seu filho, mas ele bate nas paredes descascadas e volta cansado para o mesmo lugar, até chegar de volta em sua dona, morrendo. Ao entrar em casa, sente o peso amargo da boca, da dentadura nova, novinha, mas com pouca serventia.
– De que adianta um riso novo sem nenhuma assistência? – ela pensa.
Sebastiana Lira da Silva não estava gostando nem um pouco da sua vida. Contava era que já fazia planos para pedir a Teodoro, seu filho, uma passagem de ida, sem volta, para bem longe de São Paulo.
***
Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, Minas Gerais, em 1949. Vive em São Paulo desde 1970. Entre outros livros, publicou Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura 1976); Crônicas da vida operária (finalista do Prêmio Casa das Américas 1978); O pavão misterioso (finalista do Prêmio Jabuti 2000); Paragens (edidado pela Boitempo, finalista do Prêmio Jabuti 2005); O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e Contos Antológicos (2009). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
Entendo muito a Tiana, embora exista amor entre mãe e filho, nada como nosso canto, nossa nossa casa é nosso Igreja nosso assentamento. A saudade dói, o Brasil é enorme, as passagens são caras mas ninguém se
separa quando está unida pelo coração.
Volta Tiana, vai ajudar os brasileirinhos na grande viagem de chegada aquí. Quem sabe Tiana, entre êles não poderá ter um Presidente do Brasil.
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