Memórias de um futuro recente

14.07.21_Izaías Almada_Memórias de um futuro recente[O dramatúrgo rússo Anton P. Tchekhov e o escritor argentino Julio Florencio Cortázar]

Por Izaías Almada.

Racionalizar um espetáculo teatral sustentado pela emoção não é tarefa das mais fáceis, não é verdade? Mas não custa tentar…

Comecemos pelo jogo do faz de conta.

O que pensaria um camponês medieval europeu diante de um computador? Ou um pintor renascentista diante de uma ilha de pós-produção digital na realização de efeitos especiais para os filmes de Hollywood? Perguntas sem propósito?

Vamos, então, inverter o raciocínio: que memórias guardamos nós, já no limiar do século XXI dos mistérios medievais ou das barricadas populares na tomada da Bastilha em Paris, por exemplo?

Em ambas as simulações acima descritas, creio que não seria exagero dizer que nos comportaríamos ou nos situaríamos exatamente dentro daquele período das nossas primeiras semanas de vida, onde a realidade e a fantasia se misturam e os nossos sentimentos ainda não têm presente, nem passado e nem futuro. Em outras palavras, ao nascermos, a memória ainda é um grande vazio diante do novo e desconhecido mundo.

Mesmo considerando as várias teorias no campo das biociências ou ainda os estudos das teorias psicanalíticas, antropológicas ou mesmo filosóficas, não temos memória da nossa entrada nesse mundo. Do nosso nascimento e dos primeiros dias de vida. E nem uma previsão de quando o deixaremos.

Ao enfrentarmos a realidade do nosso cotidiano com o passar dos anos, ficamos entre os sonhos e as memórias. Entre os desejos e as lembranças. Entre o que somos agora, o que fomos antes e aquilo que ainda poderemos vir a ser.

O homem contemporâneo debate-se com o caos de um mundo que ganha em conquistas científicas e tecnológicas e perde em capacidade de amar e de ser solidário. Quanto mais avançamos em tecnologias e inventos para ampliar e aumentar a comunicação, parece que mais nos distanciamos uns dos outros, isolando-nos em nossas casas, ruas e escritórios diante de sofisticados aparelhos de comunicação.

Acrescentemos agora a esse jogo do faz de conta uma pitada de nostalgia e poesia.

O que pode haver de semelhante entre um casarão argentino dos anos 30 do século XX e um casarão russo do final do século XIX, além do fato de abrigarem famílias, pais, avós, irmãos e irmãs, amigos, todos cheios de desejos e esperanças de uma vida saudável e feliz e as memórias, por vezes amargas e cruéis, de não terem conseguido realizá-las?

Muitas das questões aqui mencionadas são, no meu entender, o fio condutor de uma viagem de introspecção e – mais do que isso – de um mergulho nostálgico e sedutor no mundo de Não vejo Moscou da janela do meu quarto, performance teatral produzida pelo Núcleo Corpo Rastreado em uma das salas da SP Escola de Teatro.

O espetáculo junta um conto de Julio Cortázar (Casa tomada) e uma peça clássica de Anton Tchekhov (As três irmãs). Escritas em épocas e cenários distintos, parte do realismo fantástico do escritor argentino se integra ao, chamemos assim, realismo impressionista do escritor russo levando o espectador a uma viagem para dentro de si mesmo. Uma viagem cruel e ao mesmo tempo poética que fala do isolamento do ser humano e que constrói uma metáfora atualíssima para os dias que vivemos no Brasil e no mundo.

Em suas memórias, Irina, Macha e Andrei vão de Buenos Aires a Moscou, como poderiam estar indo da Califórnia do século XXI ao Tibete do século XIX ou de São Paulo hoje a uma Lisboa quinhentista. Não importa o percurso e sim o fato de carregarem em sua memória e em seus antigos pertences a esperança de uma nova vida. Fazem em sua caminhada aquilo que fez o primeiro homem a habitar a terra: buscam a felicidade.

E, curiosamente, à medida que se deslocam pelo espaço cênico o fazem carregando alguns símbolos ultrapassados da comunicação contemporânea: o toca discos, o rádio galena, um velho projetor de cinema, cartas e bilhetes, tudo isso a que hoje chamamos pomposamente, num outro patamar tecnológico, de multimídia.

O programa da peça nos alerta que “essas três personagens transitam entre dois níveis, entre o medo de dentro e o medo de fora, a esperança e a nostalgia”. Eu diria, com alguma ousadia, que vão além disso. Divididos entre o mundo interior e exterior que enfrentam, entre as marcas do passado e a angústia do desconhecido, os três refugiam-se naquela que talvez seja a mais cruel característica do mundo capitalista atual: o egoísmo. Egoísmo que se confronta, de maneira perversa por vezes, com a busca da felicidade.

Desse confronto brota a nossa empatia com o texto e com todo o espetáculo levando-nos ao sorriso e ao marejar dos olhos, não propriamente para a obtenção de uma catarse aristotélica, mas para perceber que passam os séculos e continuamos a procurar uma felicidade que parece cada vez mais distante.

Nesse ponto devo render tributo à interpretação das atrizes Maria Tuca Fanchin e Sol Fanganello, e do ator Leonardo Devitto, pois seguimos a caminhada dos personagens exatamente enquanto personagens e, acredito, esse é o melhor elogio que se pode fazer ao trabalho de um ator. A ambiguidade de gestos e intenções no espetáculo pertence inteiramente ao mundo dos personagens e não necessariamente ao histrionismo de quem os interpreta.

Como Andrei, dancei o tango sem saber dançá-lo, senti os ciúmes e incertezas de Irina e Macha, com os três evoquei o medo e o terror da ficção científica projetada sobre o alvo lençol da sala dos casarões.

Segundo a diretora Silvana Garcia “a proximidade entre Casa tomada de Julio Cortázar e As três irmãs de Anton Tchekhov” sempre lhe pareceu evidente. Partindo dessa premissa, Silvana construiu um espetáculo sensível, poético, sem concessões a qualquer tipo de modismo ou a dramaturgias mofadas de telenovelas, onde o aparente caos do cenário, o figurino de trajes elegantes e cores sóbrias, a iluminação que valoriza cada pormenor do que se vê e se ouve e uma emocionante trilha musical nos carregam por um mundo de fragmentado humanismo suficiente o bastante para nos colocar diante do mais antigo e talvez eterno desafio do homem: qual o sentido da vida?

14.07.21_Izaías Almada_Memórias de um futuro recente_APTJC[Da esquerda para a direita, Leonardo Devitto, Maria Tuca Fanchin e Sol Faganello em cena na peça Não vejo Moscou da janela do meu quarto, dirigida por Silvana Garcia]

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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

1 comentário em Memórias de um futuro recente

  1. Jailson de Almeida // 24/07/2014 às 2:53 pm // Responder

    Boa dica, Iza. Vou tentar assistir e depois comentamos. Abs, Jajá.

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