As lições da derrota

Ainda não tiramos as lições da derrota sofrida na última Copa. Vivemos até agora no Brasil uma imensa quarta-feira de cinzas. Uma quarta-feira sem fim. No silêncio das ruas, na quarta-feira 9 de julho, não se ouvia nem um carro acelerado. Só os celerados de sempre, a reação mais à direita, acompanhada pela esquerda que todo fascista deseja ter, que comemorava a derrota da seleção brasileira como se fosse uma derrota da presidenta Dilma. A estupidez é infinita, amigos.

Levantemos voo do chão mais básico: quantas Copas nós perdemos? Teria sido melhor uma derrota final no Maracanã, como em 1950? Sim, digo perder porque a nossa sorte estava selada, antes do jogo contra a Alemanha. Mas não víamos, crentes que estávamos na fé, em palavras de fé, de sentimento da fé no hexa. Mas a fé ganha só no cacófato: fe-ganha.

A parte boa da derrota é aprender com ela. Aliás, deve ser a única parte boa. As pessoas inteligentes, quando sábias, passam os olhos de volta pelo caminho que andaram. Elas crescem com a derrota. O pensamento vulgar, mesquinho, o pensamento de anúncio de televisão (supondo que ali exista pensamento) divulga a máxima de que o sucesso é a vitória. Ou a vitória é o sucesso. Mas esquecem, ou não veem, que na vida real o sucesso, a vitória, só se alcança com a derrota. E não é a derrota do adversário. É a própria derrota de quem um dia poderá ter o sucesso. Mas como? Será isso verdade? Sim, somente o exame maduro sobre o amargo poderá um dia ter a doçura. Somente o trabalho sem trégua, sem descanso, alcançará o fruto, a maçã do paraíso.

Se isso é verdade para a pessoa, é mais clara ainda no progresso e no desenvolvimento da ciência, do conhecimento humano. Reflitam: quantos fracassos tivemos antes de um acerto? Quantos alquimistas foram necessários para que um dia houvesse a Química? Quantos homens de pensamento foram torturados, queimados na fogueira da Inquisição, antes que se tornasse universal que a terra é apenas um insignificante planeta entre as galáxias e estrelas? Quantas vezes Thomas Edison fracassou antes da invenção da lâmpada? Quantos cadáveres, ruínas houve antes da Teoria da Evolução das Espécies e da Teoria da Relatividade? Quanta inumanidade, quanta exploração, inconsciência houve antes que se escrevesse O capital?

Então eu digo que não há crescimento individual, nem coletivo, nem humano, enfim, que se faça sem a derrota. Mas para que haja crescimento, é preciso que se reflita sobre os erros cometidos. Que se retire deles o sumo de toda amargura, que se revejam passos, que se tornem pontos de discussão para o mais impiedoso exame, e só então poderá ter começo uma vitória firme, segura, mas jamais arrogante. Porque na própria vitória há um germe de derrota, no próprio sucesso há um momento de fracasso, no passado ou no futuro.

Mas nada disso nos virá daquela entrevista do técnico Felipão, depois do desastre dos 7 a 1 contra a Alemanha. Estas foram as declarações dele nos jornais:

“Um dia após ver sua equipe passar o maior vexame da história da seleção, Luiz Felipe Scolari deu entrevista coletiva e afirmou que não tem como explicar a goleada por 7 a 1 para a Alemanha. Disse, porém, que o time nacional está no caminho certo.”

Felipão usou a entrevista para defender seu trabalho. Apontou estatísticas da sua segunda passagem pelo time (19 vitórias, 6 empates e 3 derrotas) e lembrou que foi a primeira vez que o Brasil chegou à semifinal da Copa desde 2002, quando comandou a equipe do pentacampeonato.

Felipão classificou que houve uma “pane geral” na seleção durante os seis minutos em que a Alemanha fez quatro gols seguidos.

À primeira vista, ele falou suas razões como quem monta um currículo para um emprego. Omitiu informações, ressaltou outras. Pior: justificou os erros. Se devemos supor que Felipão se encontra no pleno exercício das faculdades mentais, ele mentiu, porque não mostrou, além da retórica “a culpa foi minha”, onde foi que ele errou.

A entrevista de Felipão, depois da humilhante derrota, poderia assim ser resumida: foi uma derrota sem erros. Mas Felipão faria melhor se dissesse: perdemos porque o adversário ganhou. Não explicava, é claro, mas em lugar da burrice e arrogância, teríamos pelo menos uma frase irônica, que é sempre é um brinde à inteligência.

Felipão, que gosta tanto de livro de autoajuda, que faz um sarapatel, uma mistura de escritores diversos e momentos deslocados e prega frases nas portas dos apartamentos dos jogadores – ele não é um intelectual, está visto, ele pesca no Google o que lhe pode servir como um pescador no mar sem rumo e sem bússola – em resumo: Felipão, que gosta tanto de autoajuda, depois da derrota frente à Alemanha bem que poderia refletir nas palavras de Goethe, o clássico alemão acima da arrogância e da barbárie.

Então vejamos o que Goethe escreveu em uma obra madura, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

“— Não é obrigação do educador de homens preservá-los do erro, mas sim orientar o errado; e mais, a sabedoria dos mestres está em deixar que o errado sorva de taças repletas seu erro. Quem só saboreia pouco o seu erro, nele se mantém por muito tempo, e dele se alegra como se fosse uma felicidade rara. Mas quem o esgota por completo, deve reconhecê-lo como erro, se não for demente”.

Aí está, Felipão, esta luz de Goethe, que parece ter sido escrita pra você, depois dos 7 a 1 sofridos:

“A sabedoria dos mestres está em deixar que o errado beba a taças completa do seu erro. Quem só saboreia pouco o seu erro, nele se mantém por muito tempo”.

Se assim o técnico brasileiro pudesse refletir, só então poderá dizer, como Goethe, quando concluiu o Livro VII do seu romance com estas linhas luminosas:

“Chegaram ao fim teus anos de aprendizado: a Natureza te absolveu”. 

E nós, quem sabe se na próxima Copa, ou em outra, voltaremos a vencer, depois desse amargo aprendizado. Mas não agora. Por enquanto, é só uma imensa quarta-feira de cinzas.

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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, e do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

1 comentário em As lições da derrota

  1. Ótima essa reflexão de Urariano Mota. O Brasil vem sofrendo sucessivas derrotas e muitíssimos não querem nem saber, por exemplo, esta, que é crucial: mais de 70% do PIB pertencem às multinacionais! É o nosso sangue alimentando o “primeiro mundo”, o mundo dos vampiros, dos assassinos econômicos. Mas índios, negros, mulatos, mestiços pensam – apesar do Marquês de Pombal, de Joaquim Silvério dos Reis, apesar da Inquisição.

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