A Copa e a desnacionalização do futebol brasileiro
A Copa do Mundo de 2014 no Brasil chegou ao final e, como grande evento de massas, traz várias questões para a reflexão do pensamento social e a ação comprometida com a democracia, soberania e a cultura popular.
1. O “Não vai ter Copa” foi um erro de parte das esquerdas
O futebol, como expressão do lazer, é item importante da cultura popular brasileira e tentar desprezá-lo como uma atividade menor diante das mazelas históricas que permanecem no Brasil (saúde, educação, saneamento, dependência e subdesenvolvimento em setores chaves da economia brasileira) é um erro estratégico de orientação política, que levou ao isolamento da direção dos movimentos sociais das grandes massas populares. Não foi o “Não vai ter Copa” a razão dos movimentos de junho de 2013 e sim um conjunto de desigualdades econômicas, políticas, sociais e culturais que dela independem e permanecem no Brasil gerando profundas assimetrias e frustrações. Tentar extrapolar uma palavra de ordem que surgiu durante a radicalização dos protestos, fora deste contexto, gerou uma desconexão entre a sensibilidade popular e a direção dos movimentos sociais.
O correto seria defender uma Copa sustentável, soberana e democrática questionando a exclusão das massas dos estádios, as remoções de populações pobres, as violações de direitos humanos, a ingerência imperialista da Fifa sobre o Estado brasileiro (retirando-nos parte da soberania sobre a organização do evento), e o comprometimento de recursos públicos em favor de lucros privados.
2. O futebol deve ser tratado como patrimônio imaterial da cultura brasileira
O futebol brasileiro é um evento cultural de massas nacional e mundial destacando o país em competições internacionais, auferindo 5 copas do mundo, sendo delas 11 vezes semifinalista, e 4 Copas das Confederações. Todavia está sendo fortemente ameaçado pela ofensiva neoliberal sobre este esporte no Brasil por meio: da destruição dos clubes como centros de formação e criação de um mercado mundial oligopólico de circulação de jogadores, articulado pelo capital financeiro internacional; do aprofundamento do caráter autocrático das instituições desportivas brasileiras e sua vinculação aos principais atores deste mercado; e da adoção neocolonial de paradigmas eurocêntricos.
O fim do passe, as precárias compensações estabelecidas pela Fifa e as pressões competitivas do mercado internacional elevaram os custos e colocaram os clubes em situação de brutal endividamento. A desregulamentação abriu o espaço para ampla atuação de empresários e de fundos de investimento no setor levando à criação de clubes fictícios voltados para a valorização de jogadores com o objetivo de destiná-los a transferências internacionais. Estes clubes fictícios controlados por grandes fundos de investimento capturam os direitos de formação das novas gerações transferindo-as ao exterior ou contratam jogadores emprestando-os aos grandes clubes nacionais para valorização e venda ao exterior, apropriando-se de somas fantásticas através de multas rescisórias. A indenização pela formação do atleta incide sobre cada transferência que se realize em sua carreira, podendo acompanha-la até o final.
Estabelecem-se engrenagens subterrâneas envolvendo os grandes dirigentes esportivos e o capital financeiro internacional. A seleção brasileira torna-se vitrine e instrumento para valorização de ativos empresariais, leia-se por isto, jogadores controlados por fundos que pagam comissões a altos dirigentes esportivos ou dos quais estes são sócios. Usam-se bens públicos, o nome do Brasil e o futebol que o representa, para impulsionar lucros privados extraordinários em detrimento das condições de produção que permitem a preservação e desenvolvimento da qualidade do futebol brasileiro. Todo este espetáculo não se faz sem o manejo de vultuosas somas do Estado brasileiro através de isenções fiscais, patrocínios, renegociação de dívidas, créditos bancários, destinação de verbas de loterias, sem o que não se viabilizaria a infraestrutura mínima para o funcionamento do espaço desportivo nacional.
Entrevistado sobre o êxito do futebol alemão, Franz Beckenbauer afirmou que copiou-se o exemplo francês da Copa de 1998, criando-se escolas de futebol nos clubes dedicadas à formação de jogadores. A geração alemã campeã mundial em 2014 foi formada nestas condições. Nosso futebol está tomando o caminho contrário. Desnacionalizando-se, destruindo seus centros históricos e comunitários de formação para impor os interesses do grande capital financeiro internacional e seus sócios locais. Trata-se de um amplo processo de mercantilização que gera desvios de função e corrupção na estrutura administrativa dos clubes nacionais em diversos níveis.
Tal esquema articula-se na cúpula com o poder autocrático e corrupto representado pela CBF. A gestão de Ricardo Teixeira, ex-genro de João Havelange, foi interrompida abruptamente em meio a denúncias pela justiça suíça, que investigava a quebra da empresa de marketing ISL, de que ambos teriam recebido R$ 40 milhões em subornos. Todavia as mudanças foram aparentes e o seu vice, Jose Maria Marin, que vinculou-se no passado à ala radical da ditadura civil-militar iniciada em 1964, assumiu seu lugar em 2012, elegendo antes da copa do Mundo de 2014, o novo Presidente da CBF a tomar posse apenas em abril de 2015, em estratégia articulada ainda por Teixeira. O escolhido em chapa única é Marco Polo del Nero, alvo da Policia Federal, na Operação Durkheim, por suspeita de envolvimento em quadrilhas dedicadas à quebra ilegal de sigilos bancários, fiscais e telefônicos para chantagear políticos, desembargadores e juízes, e também à evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
Torna-se urgente estabelecer uma regulação pública sobre o futebol brasileiro e suas principais instâncias administrativas integrantes do sistema nacional de desportos. A reforma da Lei Pelé que qualificou as verbas das loterias como de origem pública, a MP 620 – já aprovada no Senado e em vias de ser sancionada pela Presidenta Dilma – que cria exigências de democratização, transparência e eficiência da gestão para o recebimento de recursos estatais são passos importantes que devem articular-se com a CPI da CBF para restabelecer os níveis mínimos de controle nacional e público sobre o futebol brasileiro.
3. Torna-se necessário romper com o paradigma eurocêntrico e neoliberal
A autocracia gerencial e a configuração da seleção brasileira numa expressão de ativos do capital financeiro e interesses particulares se manifestam na adoção de um paradigma eurocêntrico de futebol, na ruptura da relação com o critério de desempenho para participação na comissão técnica ou no elenco de convocados, e na ampla desqualificação do campeonato brasileiro de futebol.
Desde a chegada de Ricardo Teixeira a CBF inaugura-se a era Dunga e substitui-se o futebol ofensivo e técnico por outro que prioriza a marcação e o estilo europeu. Neste sentido, são contratados treinadores que representam este novo enfoque: Lazaroni, Parreira, Zagallo, Dunga e Felipão representam uma monótona repetição de personagens que dominaram a comissão técnicas nos últimos 24 anos, alguns cuja ascensão remonta ao período ditatorial, nos anos 1970 (Zagallo e Parreira).
A indicação de Felipão e Parreira para a campanha de 2014 não teve qualquer relação com o desempenho esportivo recente de ambos. Felipão foi o responsável pelo rebaixamento do Palmeiras em 2012 e, desde 2002, seu único título havia sido o campeonato Uzbeque de 2009 até assumir a seleção brasileira. Parreira havia fracassado na Copa de 2010 com a desclassificação da seleção anfitriã já na primeira fase, situação inédita nas Copas do Mundo.
A relação de convocados para a Copa de 2014 foi fechada na Copa das Confederações de 2013, impulsionando o marketing e a valorização de determinados jogadores, quase na sua totalidade transacionados no mercado mundial. Desconsiderou as mudanças físicas e técnicas individuais dos últimos 12 meses e o campeonato brasileiro de 2013 e 14, ignorando-se o desempenho das principais equipes e seus jogadores. O Cruzeiro, campeão brasileiro com ampla vantagem, não teve nenhum jogador convocado ou testado. Dos 3 convocados que atuam no Brasil, Fred e Jô, centroavantes chamados por Felipão, tiveram desempenho pífio no campeonato brasileiro 2013, fazendo 3 e 6 gols, respectivamente. Jogadores que se destacaram como Ricardo Goulart, Everton Ribeiro, Dedé, Ganso, Hernani e Vitinho jamais foram testados e veteranos como Ronaldinho Gaúcho, sem perspectivas, pela idade, de valorização no mercado mundial, excluídos. Optou-se por uma seleção de jogadores bastante jovens e inexperientes, transacionados no mercado mundial, muitos dos quais reservas em seus clubes de atuação, apostando-se, como numa bolsa de valores, no forte potencial de valorização de alguns de seus ativos. Mas há fortes riscos em toda aposta que busca lucros extraordinários num mercado altamente competitivo, onde o Estado não pode intervir para neutralizar seus resultados.
Que o resultado chocante da Copa de 2014 contribua para impulsionar as reformas institucionais urgentes que o futebol brasileiro necessita para retomar seu vigor. Isto implica na democratização, fortalecimento e desenvolvimento da eficiência gerencial dos clubes para retomar as condições de produção da escola brasileira de futebol. Isso não será possível sem o controle público e democrático sobre a CBF. Avançar nestas tarefas são desafios que o Estado brasileiro tem no campo desportivo nos próximos anos.
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Confira o dossiê especial sobre a Copa e legado dos megaeventos, no Blog da Boitempo, com artigos de Bernardo Buarque de Hollanda, Pier Paolo Pasolini, Christian Dunker, Flávio Aguiar, Antonio Lassance, Mouzar Benedito, Mike Davis, Mauro Iasi, Eduardo Tomazine, Edson Teles, Jorge Luiz Souto Maior, entre outros!
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Carlos Eduardo Martins é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto e chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ), coordenador do Grupo de Integração e União Sul-Americana do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e pesquisador da Cátedra e Rede Unesco/UNU de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (Reggen). É autor de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção em 2007) e co-organizador de A América Latina e os desafios da globalização (2009), ambos publicados pela Boitempo. É colaborador do Blog da Boitempo quinzenalmente, às segundas.
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