Jennings: Será o fim de Blatter?
[Escoltado pela polícia: Raymond Whelan, CEO da Match, associada da Fifa que tem exclusividade de venda de ingressos, “vai ter que abrir o bico”]
Por Andrew Jennings.*
A queda, quase impossível de assimilar, está na expressão perplexa de Ray Whelan. Em apenas alguns minutos, ele despencou do luxuoso Hotel Copacabana, onde desfrutava da companhia agradável dos que mandam no futebol, a um carro de polícia – “Venha por aqui, senhor” – e dali para uma noite em uma cela na 18ª Delegacia de Polícia. Os próximos passos serão um interrogatório, em breve, e quem sabe um julgamento seguido de anos em uma das terríveis prisões brasileiras.
“Ray” Whelan vai ter que abrir o bico. Ele sabe tudo o que se pode saber sobre a gangue dos ingressos da Copa do Mundo. Ele sabe qual dos dirigentes do futebol recebe as pilhas de ingressos para revender no mercado negro. Ele está no coração desse negócio há quase duas décadas.
E Ray terá que falar sobre a relação íntima entre o presidente da Fifa, Sepp Blatter, e a empresa familiar, controlada pelos irmãos mexicanos Jaime e Enrique Byrom em seu escritório em Manchester, na Inglaterra, que mais uma vez ganharam os contratos para controlar a venda absoluta e exclusiva de todos os 3 milhões de ingressos para os 64 jogos da Copa.
A decisão crucial de quem fica com esse contrato é de Blatter, que gerencia a Fifa desde 1981 – primeiro como secretário geral e a partir de 1998 como presidente. Ele domina o Comitê Executivo e é fartamente recompensado pelo seu trabalho. Tudo que ele decide, eles assinam embaixo. Nos últimos três anos, sete deles tiveram que sair sob denúncias de corrupção. A reputação da Fifa nunca esteve tão suja.
Os irmãos, ambos nos seus 60 anos, recebem as ordens, decidem quem são os sortudos da vez, e dividem grandes lotes de ingressos entre os aliados de Blatter e seus clientes no mercado negro. Daí a Fifa anuncia que ela é “a polícia” dos ingressos, e que vai investigar as vendas “não autorizadas”.
Ray, que completou 64 no ano passado, vive com a irmã dos Byrom, Ivy, na cidade de Stockport, em Manchester. Ray sabe como eles compraram a Match, que vende os ingressos para aquelas caríssimas salas envidraçadas VIPs em todos os estádios “Padrão Fifa”. E o Ray sabe muito bem por que – e como – uma parcela da parte mais lucrativa do negócio foi desviada para o bolso do sobrinho de Blatter, Philippe, que tem 5% das ações da Match.
Por ironia Ray foi preso no mesmo hotel que já encantou Rita Hayworth e Marilyn Monroe, a princesa Diana e Mick Jagger!
Para ajudar os Byrom Brothers e Ray a garantir os serviços de acomodação da Copa, a Fifa lhes deu um empréstimo de cerca de US$ 10 milhões, sem juros, para ser pago em janeiro do próximo ano.
Os investigadores da polícia vão querer saber tudo sobre isso. Não são os mesmo policiais brutais que estão nas ruas do Rio prontos para jogar bombas de gás lacrimogêneo e bater naqueles que protestam contra os gastos da Copa e a corrupção. São trabalhadores sofisticados, investigadores de fraudes, que passaram três meses monitorando a venda de ingressos, interceptando legalmente ligações telefônicas e agora estão expondo a corrupção intrínseca que mancha a Fifa. A prisão de Ray pode ter acontecido porque ele fez alguns telefonemas a mais…
Fabio Barucke, o delegado da Polícia Civil do Rio que está liderando a investigação da ligação entre os dirigentes da Fifa, os distribuidores oficiais de ingressos e as vendas no mercado negro, disse que a Fifa distribui enormes quantidades de ingressos para seus patrocinadores e parceiros, garantindo a escassez de ingressos para o público e incentivando os cambistas. “Só uma pequena parte foi destinada ao povo“, o delegador afirmou em uma coletiva de imprensa na última semana.
Ray Whelan se une agora aos outros 11 detidos na semana passada. O líder Mohamadou Lamine Fofana, de 57 anos, suspeito de liderar a quadrilha desde a Copa de 2002, exibe orgulhosamente uma foto sua com Sepp Blatter no seu site.
Ray não estava ainda no esquema quando os irmãos Byrom entraram no negócio dos ingressos na Copa de 1986 no México. Eles foram favorecidos pelo ex-presidente da FIFA, João Havelange, e o negócio decolou. Estabeleceram uma empresa na Ilha de Mann, e contas bancárias internacionais. Anos depois, Ray se envolveu com a irmã Ivy Byrom, e então se tornou o “terceiro irmão” nessa pequena empresa.
Em 2003, apesar dos problemas em Copas anteriores, Sepp Blatter deu aos mexicanos Jaime e Enrique o contrato para vender ingressos para a Copa do Mundo no Brasil. Eles separaram 450.000 dos melhores ingressos para vender em pacotes de hospitalidade através da famigerada Match para os torcedores endinheirados, incluindo 24 mil para as partidas das Semifinais e 12 mil para a Final.
As regras da própria Fifa proíbem a revenda de ingressos com ágio – o cambismo. Mas nesta semana, ingressos dos pacotes de hospitalidade para a Final podem ser comprados pela internet por US$27.500, e ingressos normais, por US$11.000. Seja quem for que os está vendendo, eles só podem ter sua origem no escritório dos Byrom em Manchester.
Quem investiga o quê?
Em 2006 os Byroms foram pegos entregando mais de 5 mil ingressos para o vice-presidente da Fifa, Jack Warner, vender no mercado negro. Apesar da quebra escandalosa das próprias regras da Fifa, nenhuma atitude foi tomada contra os Byroms ou Warner.
Por incrível que pareça, eles fizerem tudo de novo na África do Sul em 2010, fornecendo mais ingressos para Warner vender para grandes cambistas do mercado negro internacional. A correspondência confidencial por e-mail foi copiada, descaradamente, para a Fifa e a empresa Infront, de Philippe Blatter. De novo, nenhuma providência foi tomada. Warner teve que sair da FIfa um ano depois por outras acusações de corrupção.
Mas para os irmãos Byrom, a Fifa é um pote de ouro infindável. Em novembro de 2011 os contratos de hospitalidade com a Match foram estendidos até 2023 “após uma avaliação do mercado” pela Fifa.
Disse Blatter: “O acordo fortalece a luta da Fifa contra o cambismo. Graças à sua expertise e sistema de monitoramento, a Match Hospitality está em posição de ajudar a Fifa a adotar procedimentos na venda de pacotes de hospitalidade, impedindo vendedores não autorizados a enganar corporações e indivíduos lhes vendendo esses pacotes”.
Os Byroms anunciaram essa semana que a Fifa pediu que eles mesmos investiguem a revenda de pacotes de hospitalidade.
Um ingresso em nome de Humberto Grondona, filho do vice-presidente da Fifa , o argentino Julio Grondona, foi encontrado à venda em São Paulo. Os dirigentes da Fifa disseram que ele não será investigado porque afirmou ter dado o ingresso, e não vendido.
Uma nota da Match afirmou que a empresa “tem fé” que os fatos irão demonstrar que Ray Whelen “não violou nenhuma lei”.
O secretário-geral da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Eraldo Alves da Cruz, revelou, nesta terça-feira, que, em 2008, um ano depois de o Brasil ser escolhido para sediar o Mundial, recebeu uma ligação de Whelan. Na época, Cruz era o presidente nacional da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis (ABIH). Ele confirmou que o executivo ligou dizendo falar em nome de Ricardo Teixeira e agendou um encontro com ele em Brasília.
— Na reunião, que acabou acontecendo no meu gabinete, na sede nacional da ABIH, Whelan, embora falasse pela Fifa, apresentou um cartão da empresa Byrom (inglesa), subsidiaria da Match. Explicou que estava no Brasil para cuidar da hospedagem durante a Copa — contou Cruz.
O secretário-geral da CNC disse que conheceu Ricardo Teixeira em 2007, durante um evento no Cristo Redentor.
— Ricardo Teixeira estava caminhando sozinho, chegando ao Cristo, eu me aproximei, me apresentei e entreguei meu cartão. Não o conhecia — afirmou Cruz.
A partir de 2008, depois do encontro com o então presidente da ABIH, Whelan correu o país mantendo encontros com os representantes da rede hoteleira, fechando negócios.
— Como eram muitas exigências, como o bloqueio dos quartos e das reservas, muitos estados resistiram em aderir. São Paulo foi um deles. Mas, no fim, todo mundo aceitou. Agora, Whelan nunca se apresentou como responsável também pelos ingressos. Só falava conosco de hospedagem. Ninguém imaginou tudo isso. Estou muito surpreso — disse Cruz.
A Match é suspeita de ter superfaturado o preço de diárias de hotéis nas 12 cidades-sede do Mundial, prejudicando o país, que ficou marcado como destino caro. O caso é investigado pelo Ministério Público Federal e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que instaurou um inquérito administrativo. Whelan foi preso na segunda-feira pela Polícia Civil suspeito de envolvimento na venda ilegal de ingressos para os jogos da Copa.
Ricardo Teixeira também teria atuado nos bastidores junto à Fifa e aos executivos da Match Services para beneficiar o Grupo Águia, do seu amigo paulista Wagner Abrahão, que ficou com os direitos de ser o vendedor exclusivo no Brasil dos ingressos corporativos, ou VIPs, para os jogos da Copa.
Em 1998, na Copa da França, a Águia foi acusada de lesar torcedores, que compraram ingressos mas ficaram fora do estádio na final. Ele foi processado e pagou uma multa para deixar a França. O processo foi arquivado. Segundo o site da empresa, a escolha para ser representante da Match durante a Copa aconteceu em 2011 e foi comemorada.
* Publicado originalmente no dossiê CopaPública da Agência Pública de Jornalismo Investigativo.
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Andrew Jennings assina um brilhante ensaio sobre “A máfia dos esportes e o capitalismo global” no livro de intervenção Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?. Novo título da coleção Tinta Vermelha da Boitempo, o livro está à venda por apenas R$ 10,00, em versão impressa, e R$ 5,00, em versão eletrônica (ebook). Baixe uma amostra grátis do livro clicando aqui.
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Andrew Jennings, é um premiado jornalista investigativo escocês, mundialmente conhecido pelo seu trabalho sobre o Comitê Olímpico Internacional e a Fifa, que ele chama da “máfia dos esportes” globais. Até hoje é o único repórter do mundo banido das coletivas de imprensa da Fifa. Autor de Jogo sujo, o mundo secreto da Fifa (Panda Books, 2011), Jennings assina um brilhante ensaio sobre “A máfia dos esportes e o capitalismo global” no livro de intervenção Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas? (Boitempo, 2014).
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