Fábio Hideki x Raymond Whelan: o verdadeiro jogo da Copa

14.07.08_Jorge Luiz Souto Maior_BoitempoPor Jorge Luiz Souto Maior.

No dia 23 de junho, Fábio Hideki Harano, um cidadão brasileiro que tem emprego fixo – ele é empregado público na Universidade de São Paulo, onde também segue o curso de ciências sociais – foi preso sob a acusação de porte de explosivos e “associação criminosa”, tendo sido acusado, também, de ser um “black bloc”.

Apesar de todas as evidências negarem as acusações (estava sozinho em escadaria de estação do metrô quando foi preso; no ato da prisão não foi apresentado qualquer artefato explosivo que estivesse em sua mochila), Fábio foi preso “em flagrante delito” e depois, mediante decisão judicial que autorizou a prisão preventiva até o julgamento, que não tem data para ocorrer, foi transferido para o presídio de Tremembé, onde se encontram criminosos considerados de grande periculosidade.

A prisão de Fábio se deu no contexto da repressão às manifestações que propunham aproveitar a visibilidade da Copa para questionar os problemas ligados à preparação para o evento, tendo sido utilizada como forma de impedir que tais manifestações ocorressem, valendo lembrar que a atuação da Polícia em São Paulo, no dia 12 de junho, dia da abertura do mundial, se deu de forma violenta, chegando mesmo a proibir que uma manifestação fosse iniciada.

O fato concreto é que Fábio ainda está preso por uma opção política de sufocar o direito de manifestação, tendo como pretexto a viabilização da realização sem transtornos da Copa do Mundo da Fifa 2014.

A grande mídia não dá destaque ao fato. A sociedade em geral dele não tem conhecimento e se tem é levada a considerar que os manifestantes são inimigos a serem derrotados e que, portanto, a prisão se justifica. Aliás, muito já se tem dito sobre as vitórias sobre os pessimistas e que o Brasil já pode se considerar campeão, pois deu conta de organizar a “Copa das Copas”.

Mas, a que preço? Fábio está arbitrariamente preso. O Estado Democrático de Direito está suspenso em diversos aspectos, tendo se chegado ao cúmulo de que no dia 1º. de julho de 2014, na Praça Roosevelt, em São Paulo, um debate sobre a situação vivenciada por Fábio foi sufocado pela ação da tropa de choque da Polícia Militar, a qual, com contingente que chegava a três vezes o número de manifestantes, literalmente sitiou a praça e manteve ouvintes e debatedores sob a condição de criminosos

As vitórias da seleção brasileira em campo, as belezas das partidas, a boa organização nos estádios, nada disso pode nos impedir de ver a completude dos fatos e de nos posicionarmos contra os absurdos cometidos para realizar e manter sob controle o evento, pois como muito bem pontuado por Pedro Abramovay, “Uma prisão como a de Fábio nos diminui enquanto democracia. O silêncio perante esta prisão nos diminui enquanto sociedade.”

Deixando qualquer perspectiva eleitoral de lado, é de suma importância perceber o preço que a sociedade brasileira está pagando para realizar a Copa. Como venho advertindo há algum tempo, o que está em jogo é a vigência das instituições do Estado Democrático de Direito, sendo que a porta aberta ao Estado de Exceção não encontra limites e tende a possibilitar a utilização seletiva das estruturas de poder para a satisfação de interesses determinados, nem sempre revelados.

Vale reparar que o mesmo rigor jurídico não foi adotado com relação a Raymond Whelan, cidadão britânico, diretor da empresa Match, empresa associada à Fifa, que, segundo a Polícia Civil do Rio de Janeiro, seria o chefe de uma quadrilha orquestrada para a venda ilegal de ingressos.

Whelan foi preso na segunda-feira em um quarto de hotel, tendo sido apreendidos consigo 82 ingressos dos jogos semifinais e final da Copa, além de outros aparelhos que seriam utilizados para a comercialização dos ingressos.

Num suspiro de euforia, como se o Estado de Exceção estivesse sido posto em questão, o jornalista Juca Kfouri, sempre atento às questões sociais ligadas ao esporte, chegou mesmo a dizer que a prisão de Whelan, que serviria para desmascarar a Fifa, exibindo mundialmente o seu esquema de câmbio negro, seria o maior legado da Copa no Brasil.

Mas a alegria durou muito pouco. Na madrugada de terça-feira, mediante decisão judicial que autorizou o pagamento de fiança, Whelan já estava solto.

Segundo o Delegado responsável pela operação, Fábio Barucke, a soltura de Whelan “faz parte do processo democrático”, mas ressaltou: “as provas não foram analisadas pela Justiça”.

O resultado é que Fábio, um jovem que tem como característica principal a solidariedade, que se dispõe a lutar pela efetividade de direitos alheios e que vislumbra o seu papel na construção de uma sociedade melhor para todos, está preso há 16 (dezesseis) dias, enquanto Whelan, contra quem se diz existirem provas contundentes de participação em um esquema de venda ilegal de ingressos, que chegaram a ser comercializados por R$35.000,00 (trinta e cinco mil reais), não ficou preso mais que poucas horas.

Os fatos acima narrados não ocorreram por acaso. Estão interligados e revelam que no verdadeiro jogo da Copa, Whelan, Fifa e Estado de Exceção estão derrotando de goleada Fábio, sociedade brasileira e Estado Democrático de Direito.

Nesse contexto, o jogo do Brasil contra a Alemanha hoje à tarde é apenas um detalhe sem maior relevância…

São Paulo, 08 de julho de 2014.

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Capa site_altaJorge Luiz Souto Maior é um dos autores do livro de intervenção Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?, junto com Andrew Jennings, Carlos Vainer, Ermínia Maricato, Raquel Rolnik, Antonio Lassance, MTST, Jose Sérgio Leite Lopes, Luis Fernandes, Nelma Gusmão de Oliveira, João Sette Whitaker Ferreira, Gilberto Maringoni e Juca Kfouri! Confira, abaixo, o debate de lançamento em São Paulo, do qual Souto Maior participou:

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Confira o dossiê especial sobre a Copa e legado dos megaeventos, no Blog da Boitempo, com artigos de Christian Dunker, Flávio Aguiar, Antonio Lassance, Mouzar Benedito, Mike Davis, Mauro Iasi, Edson Teles, Jorge Luiz Souto Maior, entre outros!

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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.

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