Agamben: A democracia é um conceito ambíguo
Entrevista especial com Giorgio Agamben.
APRESENTAÇÃO
O que é a política? É isso que, com um olhar otimista, Agamben sugere perguntar na entrevista grega que apresentamos, antecedendo as eleições para o parlamento europeu (22-25 de maio de 2014), nas quais o radical grego Tsipras será o candidato da esquerda. As questões sobre as quais o filósofo nos convida a refletir são muitas. O fio condutor pode ser identificado como abordagem dos dispositivos que, mesmo sujeitando a matéria biológica, investem nossa capacidade de ativar processos de subjetivação que, no caso, apresentam resistências. A crise que estamos vivendo pode tornar-se, então, busca de novas formas. Estas não são nem jurídicas, nem morais, mas, acima de tudo, políticas. Na esteira do melhor ensinamento foucaultiano, mais do que um gesto de libertação, temos de construir uma prática da liberdade, não um outro existencialismo, mas uma ética de si não reduzida à individualidade.
“Que política?” é, por outro lado, uma pergunta não colocada numa dimensão estatal. O problema não é o de libertar o indivíduo do Estado – diria Foucault –, mas o de libertar a nós mesmos dele e de sua propriedade individualizante. Uma dimensão política (sempre não estatal) que Agamben deseja para o plano europeu, através de um questionamento genealógico a respeito da ambígua democracia, de seus limites e de seu legado. Sendo assim, enquanto se trabalha sobre o exercício coletivo de definição programática de práticas de luta que não se traduzem em exigência de reconhecimento, enquanto Balibar apresenta sua ideia radical de cidadania, Agamben penetra na linguagem e remete à ação política – a que somos remetidos – exclusivamente destituinte.
Xenia Chiaromonte
ENTREVISTA
O filósofo Giorgio Agamben estava em Atenas, convidado pelos jovens de SYRIZA e pelo Instituto Nikos Polantzas. Sua conferência, para um auditório lotado de Tecnopolis, sob o título Uma teoria do poder da espoliação e da subversão, foi organizada para celebrar os quarenta anos da revolta do Politécnico. Domingo, dia 17 de novembro, após a passeata, Anastasia Giamali, para o ALBA, e Dimosthenis Papadatos-Anagnostopulos, para a RedNotebook, conversaram com Agamben. O texto que segue é a entrevista completa; uma versão reduzida pode ser encontrada nos Entemata tes Aughes e em seu blog.
O senhor começou sua fala em Atenas dizendo que a sociedade na qual vivemos não é simplesmente não democrática, mas, em última instância, não política, porque o status de cidadão ficou reduzido a uma categoria do direito. Porventura, é possível conseguirmos a mudança política na direção de uma sociedade política?
Agamben: O que procurei evidenciar é o aspecto totalmente novo da situação. Acredito que, para entendermos o que estamos habituados a chamar de “situação política”, devemos levar em conta o fato de que a sociedade em que vivemos talvez já não seja uma sociedade política. Um fato como esse nos obriga a mudar completamente nossa semântica. Assim, tentei mostrar que, na Atenas do século V a.C., a democracia começa com uma politização do status de cidadão. O fato de alguém ser cidadão em Atenas é um modo ativo de vida. Hoje, em muitos países da Europa, assim como nos Estados Unidos, onde as pessoas não vão votar, o fato de ser cidadão é algo indiferente. Talvez na Grécia isso valha em menor medida, pois, pelo que sei, aqui ainda existe algo que se assemelha a uma vida política. Atualmente, o poder tende a uma despolitização do status de cidadão. O que é interessante numa situação tão despolitizada é a possibilidade de uma nova abordagem da política. Não podemos ficar presos às velhas categorias do pensamento político. Urge arriscar, propor categorias novas. Sendo assim, se no final se verificar uma mudança política, talvez ela será mais radical do que antes.
Seguindo Foucault, o senhor disse que a “lógica” do poder contemporâneo não consiste em enfrentarmos a crise, mas em gerirmos suas consequências. Em seu livro A Comunidade que vem, o senhor sustenta que as coisas não mudam e que, se algo muda, são seus termos. Se isso for válido, é inevitável, então, a formação de uma força política que queira enfrentar as causas dos problemas (os problemas “em sua raiz”) seguindo essa lógica? E, do contrário: uma tentativa de “mudança dos termos” poderá inspirar também uma mobilização, se, ao mesmo tempo, não aspirar a mudar as coisas?
Considero este ponto extremamente significativo: que os novos governos ou pelo menos os governos contemporâneos não querem governar enfrentando as causas, mas unicamente as consequências. Significativo porque isso é totalmente diferente da concepção tradicional que temos do poder – na perspectiva da concepção que Foucault tem de Estado soberano. Se a lógica do poder consiste em controlar apenas as consequências, e não as causas, há uma grande diferença.
O que pretendi dizer com a ideia de “mudança dos termos” é que temos um poder que simplesmente gera consequências. Isso ficou muito claro para mim no caso do policial de Gênova [que matou o ativista Carlo Giuliani em 2001], que disse aquela coisa incrível: que a polícia não gere a ordem, mas as desordens. Tal é a situação em que vivemos. Não só a política interna, mas também a externa; por exemplo, os Estados Unidos, que criam zonas de desordem, para que as possam gerir e dirigir para uma direção favorável. A pergunta é: o que fazemos ao enfrentarmos semelhante situação?
Levando em consideração o que vimos acontecer na Itália, os partidos de esquerda foram enredados nessa lógica de gestão das consequências. É mais simples e mais rentável. Mas não há outra saída? Talvez não. No entanto, isso constitui outro indício de que a semântica política deve mudar. Devemos enfrentar algo que não é nem causa nem consequência. Devemos encontrar uma espécie de terceira via como lugar correto da política. O que procuro fazer não é simplesmente recorrer à tradição da esquerda. Não por se tratar de algo superado, mas por considerar que seja necessária uma grande mudança semântica. Do contrário, perderemos. É impossível derrotar um poder se não compreendermos sua lógica.
Em artigo publicado no mês passado no jornal Libération, o senhor lembrava um ensaio de Alexandre Kojève, de 1947, intitulado “O Império latino”, no qual o filósofo francês propõe a constituição de um “império”, reunindo França, Itália e Espanha, países com base cultural comum que, em colaboração com os países do Mediterrâneo, poderiam contrastar uma Alemanha com a pretensão de voltar a ser grande. O senhor pensa que tal projeto seja um possível contrapeso à hegemonia de Angela Merkel. Mesmo assim, parece que os líderes daqueles países estão mais interessados na realização do “dogma Merkel” na própria política interna do que nas repercussões daquele dogma numa Europa cada vez mais fragmentada.
Escrevi aquele artigo porque queria lembrar que a Europa que temos hoje é, pelo menos do ponto de vista institucional, não legitimada. Como sabem, a Constituição Europeia não é uma Constituição, mas um acordo entre Estados – ou seja, o contrário de uma Constituição, pois as Constituições são feitas por povos. Por isso recorri a esta ideia de Kojève: é possível outro modelo para a Europa? Aquele modelo é interessante porque não se baseia numa unidade abstrata, mas numa unidade muito concreta, baseada na tradição, no estilo de vida, na religião. De alguma maneira, constitui, talvez, uma possibilidade concreta. Naturalmente, a Grécia deveria fazer parte desse grupo.
Fiquei surpreso com as reações que o artigo suscitou. Quando o escrevi, era sobretudo uma provocação para começar uma crítica à Europa. Mas na Alemanha iniciou-se um enorme debate. Ficaram muito incomodados. E ainda me escrevem, pedindo-me que explique o que eu queria dizer. Isso significa que também um alemão percebe que hoje existe um erro na Europa, mesmo em sua óptica de alemão. Demonstra também que o modelo de Europa que temos hoje não é correto. Haja vista o fato de que os povos francês e holandês disseram não à Constituição Europeia – e imagino que também na Grécia ela será rejeitada.
Falamos de uma falta de legitimação da estrutura da Europa, ou seja, de uma enorme falta de democracia na Europa. Ao mesmo tempo, parece que as próximas eleições europeias irão ver reforçada a extrema direita. Por que a “resposta” mais popular a uma Europa antidemocrática coincide com uma sustentação por parte dos mais “autênticos” inimigos da democracia?
Penso que o verdadeiro inimigo não é a extrema direita. Ela acaba sendo revigorada por uma situação contingente, revigorada pelos governos europeus. Não sei se vocês se lembram de alguns anos atrás: o partido de Marine Le Pen se havia reforçado muito. Todos os socialistas votaram no candidato gaullista, temendo, então, o Le Pen pai. Foi um grande erro – porque dessa maneira (a Frente Nacional) obteve legitimação plena. Claro que existe a extrema direita, ela é uma realidade. Mas não é o inimigo principal. O inimigo principal é o sistema bancário. Na Itália, jogou-se a carta dos extremismos opostos. Assim, destruiu-se a esquerda: utilizando e, provavelmente, instigando a extrema direita para que se construísse o joguinho dos extremismos opostos. Portanto, não acredito que a esquerda se deveria ocupar com a extrema direita.
Contudo, parece que a extrema direita convenceu um setor importante da sociedade de que ela era a resistência real à falta de democracia.
De fato, também Le Pen faz o mesmo jogo. Nossa estratégia deverá ser a de demonstrar que o sucesso da extrema direita favorece o governo.
Sua obra é particularmente popular, embora irradie certo pessimismo. Žižek, por exemplo, a respeito de Homo sacer, escreve que o senhor, ao sustentar que a esfera da “vida nua” – de uma vida desnudada de prerrogativas e direitos – tende a ser a esfera da política, quer menosprezar a democracia, o estado de direito etc., como se os considerasse “artifícios” do poder contemporâneo, como se percebesse como autêntica essência desse poder os campos de concentração do século XX. Tem fundamento essa crítica?
Não sou pessimista, muito pelo contrário. Aliás, o otimismo e o pessimismo não são categorias filosóficas. Não se pode julgar um pensamento ou uma teoria com base em seu otimismo ou pessimismo. Às vezes, meu amigo Guy Debord citava uma passagem de Marx que diz: “A situação catastrófica das sociedades em que vivo me enche de otimismo”. O que procuro fazer em meu livro sobre Auschwitz, sobre o campo de concentração e a contemporaneidade, não é um juízo histórico. Procuro, sim, delinear um paradigma, com o objetivo de compreender a política em nossos dias. Não quero dizer, portanto, que vivemos num campo de extermínio – muitos dizem: “Agamben diz que vivemos num campo de concentração”. Não. Mas se tomarmos o campo de concentração como paradigma para compreender o poder hoje, isso pode ser útil.
Nos anos da crise parece quase natural lembrar o primeiro pós-guerra, a república de Weimar. Por toda a sua vida, o senhor dialogou, como escritor ou como tradutor, com uma importante personalidade desse período, Walter Benjamin. O que nos tem a dizer Benjamin hoje em dia?
A edição da obra de Benjamin na Itália significou uma renovação do pensamento de esquerda. O que acho interessante em Benjamin é a maneira como toma a semântica teológica – como o conceito de tempo messiânico e a escatologia da concepção – e a extrai do contexto teológico, fazendo que funcione na esfera política. De um ponto de vista metodológico, isso é muito importante. Para produzirmos uma nova semântica política, devemos aprender com Benjamin. Em meu livro O Reino e a glória, mostrei que a teologia cristã reelaborou esse paradigma. Foi incrível para mim descobrir – trabalhando e voltando à pesquisa – que, para compreender o que é o governo, é mais importante estudar tratados medievais sobre os anjos do que ensaios de doutrina política. Foi de fato esclarecedor. O mesmo acontece para Benjamin. Ele tem uma boa ideia sobre o tempo messiânico – todo átimo da história é o átimo decisivo, a Hora do Juízo: enfrentamos a história como se todo átimo fosse o decisivo.
A pergunta sobre a verdadeira democracia mobilizou milhões de homens, desde a Primavera árabe, aos Indignados da Europa, até a Occupy nos Estados Unidos. No entanto, em seu livro A Comunidade que vem, o senhor escreve que a democracia é um conceito genérico demais para que constitua um verdadeiro terreno de confronto.
Diria que a democracia é menos um conceito genérico do que ambíguo. Usamos esse conceito como se fosse a mesma coisa na Atenas do século V e nas democracias contemporâneas. Como se estivesse em todos os lugares e sempre bem claro de que se trata. A democracia é uma ideia incerta, porque significa, em primeiro lugar, a constituição de um corpo político, mas significa também e simplesmente a tecnologia da administração – o que temos hoje em dia. Atualmente, a democracia é uma técnica do poder – uma entre outras.
Não quero dizer que a democracia é ruim. Mas façamos esta distinção entre democracia real como constituição do corpo político e democracia como mera técnica de administração que se baseia em pesquisas de opinião, nas eleições, na manipulação da opinião pública, na gestão dos meios de comunicação de massa etc. A segunda versão, aquela que os governantes chamam democracia, não se assemelha em nada com aquela que existia no século V a.C. Se a democracia for isso, simplesmente não me interessa.
Creio, pois, que cada um deva tomar aquilo que acha interessante em cada ponto, e não se meter a apresentar receitas. Não podemos usar a democracia como novo paradigma, se não dissermos o que é hoje a democracia. Se quisermos propugnar a democracia, devemos pensar algo que não tenha relação alguma com aquilo que hoje se chama democracia.
Nessa concepção, de fato, a democracia é algo muito genérico. Por que, porém, a comunidade que vem não é um novo comunismo, mesmo que seja radicalmente diferente das tentativas do século XX?
Procuro evitar continuar aderindo simplesmente à tradição da esquerda, que me é muito familiar e com a qual estive e estou em estreito contato. O comunismo também foi uma excelente ideia, mas se nos referirmos ao que aconteceu nos tempos de Stalin nada tem de excelente. Portanto, não podemos usar hoje conceitos como a democracia ou o comunismo como se fossem claríssimos. Não são claríssimos. Vimos o que aconteceu com a democracia – o mesmo aconteceu com o comunismo. Digo isso quando me confronto com filósofos como Žižek ou Badiou, que usam o comunismo dessa maneira, como se fosse um conceito perfeitamente claro. Se for assim, o que será o comum nesse comunismo?
A Antiguidade clássica, grega e romana, está constantemente presente em sua obra. Essa escolha é fortemente simbólica, num momento em que a universidade pública está sendo desmontada, as ciências humanas são desvalorizadas e a cultura clássica tende a ser vista como uma peça de museu, um anacronismo…
Gosto que me faça essa pergunta. Não se trata simplesmente de uma prioridade cultural. É uma prioridade política. A relação com o passado não é hoje um problema cultural, mas político. Não se pode compreender o que acontece em nossos dias se não se entende que outra coisa que mudou completamente hoje em dia é a relação vivida com o passado. O que o poder faz hoje – vejo-o acontecendo tanto na Itália quanto na Grécia – é desarticular o sistema de “transmissão” do passado. A universidade é o modo como o passado vive e é “transmitido” para hoje.
No que me diz respeito, estou convencido de que a arqueologia, no sentido foucaultiano, é o único modo de termos um vínculo com o presente. Só podemos ter um vínculo com o presente se voltarmos para trás. Essa é uma imagem que Foucault usa muito, dizendo que sua investigação histórica é uma sombra que lança sobre o passado a interrogação sobre o presente. Não podemos questionar radicalmente o presente se não formos para trás. É a única estrada. E é isso que hoje se quer evitar. Apresenta-se o presente como um problema meramente econômico, frente ao qual devemos dizer sim ou não. Isso cria sérios obstáculos à possibilidade de fazer política.
No último período, desde o momento em que a Grécia entrou na fase de vigilância da Troika, os cidadãos recorrem aos tribunais, apelando para a lei, e os tribunais tomam “decisões políticas”, com a ideia de que se baseiam no interesse nacional. Como o senhor situa esse estado de exceção?
Eu não sabia disso. Um tribunal nunca deveria julgar com esses critérios. Isso lembra o que acontecia na Alemanha sob o regime nazista: o poder judiciário estava em seu lugar, intacto, mas não havia liberdade de julgamento para casos que violavam de maneira evidente a lei. Estamos frente a um imane declínio da cultura judiciária, que noutras épocas florescia na Europa. Sem a possibilidade de voltarmos para trás, para os princípios do sistema judiciário, vemos a lei tornando-se um instrumento nas mãos dos governos.
Diz-se que a Grécia serviu de cobaia para experimentar os termos de uma violenta constrição das sociedades europeias através de medidas antissociais por um determinado período de tempo. O senhor compartilha dessa ideia?
Nos anos 1970 dizíamos que a Itália era um terreno de experimentação onde o terrorismo devia tornar-se politicamente significativo, não só como inimigo, mas também como estratégia de governo. Certamente era verdade. Nunca soubemos se Aldo Moro foi assassinado pelas Brigadas Vermelhas ou por algum bando corrupto dos serviços secretos.
Creio que seja verdade que a Grécia representa a cobaia. Na Itália era claríssimo. O país foi o primeiro laboratório para esse tipo de questão. E, para voltar à ideia do Império latino, podemos afirmar que as grandes potências do Norte se servem de países de tradição política diferente.
Já que falamos de estratégias, quanto mais concreta se torna a eventualidade de uma esquerda de governo, mais surge a pergunta: como a esquerda deve gerir a herança do regime precedente? O senhor acredita que será preciso destruir os velhos esquemas ou que, ao contrário, possamos utilizá-los a favor do novo governo?
O que aconteceu até hoje é que as entidades políticas fortes, como o Estado, deviam ser interrogadas, pois, do contrário, a lógica do Estado acabaria sendo imposta aos movimentos revolucionários. A questão é sutil. Devemos distinguir entre estratégia e tática. A estratégia só pode ser sempre radicalmente “anti-”. Por outro lado, taticamente, numa batalha isolada, se pode voltar atrás com respeito a determinada tradição política – sem esquecer, porém, a estratégia. O que até agora muitas vezes acontecia era que a tática tinha o primado sobre a estratégia… Acredito que o governo de esquerda de Syriza possa ser a centelha de uma reviravolta progressista na Europa.
Carl Schmitt, importante teórico que, como se sabe, abraçou o nazismo, representa para o senhor uma referência constante, especialmente no livro Estado de exceção, no qual o senhor procura demonstrar que a regra do poder não é a lei, mas a exceção – a anomia. Ao mesmo tempo, seu trabalho é profundamente influenciado por Foucault, cujo argumento basilar é que o poder tem um conteúdo positivo – ele forma, constrói. Esse funcionamento “constituinte” do poder muitas vezes é desconhecido em sua obra. Em outras palavras, parece que o senhor percebe o exercício do poder como exercício de violência, como anomia, que, consequentemente, só é possível de ser enfrentado com seus próprios meios. Quais são, afinal, os termos do uso de Schmitt no âmbito de um pensamento progressista?
Vocês me dão a oportunidade de esclarecer esse ponto, pois muitas vezes recebo críticas por esse uso de Schmitt. Schmitt sustenta que soberano é quem decide sobre o estado de exceção, e que, portanto, o poder se fundamenta numa exceção; minha ideia é que, enquanto Schmitt para por aqui, e diz que o campo da lei é o estado de exceção, ao mesmo tempo diz que a lei está em vigor. A concepção da lei em Schmitt é que a lei compreende a exceção à própria lei, mas, ao mesmo tempo, a lei ainda está aí – e por isso não podemos falar de anomia. Eu, pelo contrário, tento demonstrar que isso é um erro: que aquilo que ocorre nesse caso é simplesmente uma zona de anomia.
Qual é, pois, a diferença entre minha posição e a de Schmitt? Eu tento demonstrar que a lei não existe mais. E aqui aparece aquilo que defendi em meu discurso em Atenas no sábado [16 de novembro de 2013 – N. T.], ou seja, que o que importa é demonstrar que a anomia foi subjugada pelo poder. O sistema de Schmitt só funciona se aceitarmos que a suspensão da lei ainda é lei, que aquela zona de anomia é lícita. Em meu discurso, tentei demonstrar que um poder destituinte (destituent power) deve tornar claro que o sistema legal no interior do qual vivemos não se fundamenta numa suspensão legal da lei, mas simplesmente na anomia. E, em tal caso, o sistema de Schmitt cai por terra.
Acredita que Benjamin seja uma espécie de schmittiano de esquerda?
Não, isso é um erro. Benjamin sustenta que diante do estado de exceção é necessário produzir um verdadeiro estado de exceção. O estado de exceção de Schmitt é fictício, enquanto insinua que a lei ainda existe. Um “verdadeiro” estado de exceção, com Benjamin, é o seguinte: vocês dizem que aqui não há lei? Ah! Então vamos levar isso a sério: de fato, não há. Portanto, a anarquia, que se encontrava no interior do poder, agora se encontra com o poder no estado de exceção como é entendido por Schmitt.
Tal perspectiva, se o entendemos bem, não seria a do uso da lei como limite contra o poder, mas a perspectiva de um enfrentamento frontal do poder.
Não tenho em mente um confronto violento com o poder. Pelo contrário, o que me interessa é podermos demonstrar quão estratégica é essa anomia. Por conseguinte, talvez não se trate de uma ação revolucionária – mas do caminho que demonstraria para os homens que no centro da lei se encontra a anomia. Quando digo que é preciso conceber um poder destituinte, penso que a violência constitui um poder constituinte, ou seja, sustento o contrário. O que seria uma violência como poder destituinte? Não me é fácil dizê-lo. Porém, acredito que um de nossos deveres, hoje em dia, seja o de pensar uma ação política exclusivamente destituinte – não constitutiva de uma nova ordem política e jurídica.
É uma lógica próxima daquela da desconstrução em Derrida?
O que procuro definir é uma estratégia política. A desconstrução em Derrida é, antes de mais nada, uma estratégia teorética.
* A entrevista realizada em Atenas em 17 de novembro de 2013 e publicada em italiano no Doppiozero em março de 2014. A tradução é de Selvino J. Assmann para o Blog da Boitempo.
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No dia 22 de julho chega às livrarias brasileiras o novo título da série Homo Sacer, de Giorgio Agamben: Altíssima pobreza: regras monásticas e forma de vida.
Todos os títulos de Giorgio Agamben publicados no Brasil pela Boitempo já estão disponíveis em ebooks, com preços até metade do preço do livro impresso. Confira:
Estado de exceção [Homo Sacer, II, 1] * PDF (Travessa | Google)
O reino e a glória [Homo Sacer, II, 2] * ePub (Amazon | Travessa)
Opus Dei [Homo Sacer, II, 5] * epub (Amazon | Travessa | Google)
O que resta de Auschwitz [Homo Sacer, III] * PDF (Travessa | Google)
Profanações * PDF (Travessa | Google)
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Giorgio Agamben nasceu em Roma em 1942. Considerado um dos principais intelectuais de sua geração, deu cursos em várias universidades europeias e norte-americanas, recusando-se a prosseguir lecionando na New York University em protesto à política de segurança dos Estados Unidos. Responsável pela edição italiana das obras de Walter Benjamin, é autor, entre outros, de Estado de exceção (2005), Profanações (2007), O que resta de Auschwitz (2008), O reino e a glória (2011), Opus dei (2013) e Altíssima pobreza (2014). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Republicou isso em Estética e Arquitetura.
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