Copa 2014: Charles
Por Roniwalter Jatobá.
Se a Fifa tivesse um pouco de interesse pelo Brasil (fora o econômico, claro), pela história do Brasil, e o governo uma mínima noção de memória, adivinha qual seria o mote para a abertura da Copa do Mundo 2014? Certamente, os precisos 120 anos da chegada do futebol ao Brasil, em São Paulo, pelas mãos (ou pés) de Charles Miller, um brasileiro de origem inglesa.
Eis aí uma bela e longa trajetória histórica: o esporte praticado inicialmente no Brasil pelos ingleses que aqui trabalhavam, no final do século 19, à alegria do povo. Segundo um falecido amigo, a história do futebol brasileiro é um dos capítulos mais luminosos da luta de resistência dos descendentes dos escravos no Brasil. Uma história de tragédias e glórias.
Miller, paulistano do bairro do Brás, foi o pioneiro. Durante as comemorações do centenário da presença do futebol no Brasil, em 1994, publiquei na revista Memória o depoimento de Helena Miller, filha de Charles e de Antonieta Rudge, uma famosa concertista de piano. Nele, Helena nos faz visualizar o nascimento do esporte no país, hoje tão presente na vida de todos os brasileiros. À época, disse Helena:
Charles William Miller, meu pai, foi quem trouxe o futebol para o Brasil. Ao contrário do que muita gente pensa, papai era brasileiro, paulistano do Brás. Nasceu na chácara dos meus bisavôs, à Rua Monsenhor Andrade, a 24 de novembro de 1874. O que confunde as pessoas é o fato de papai ter vivido alguns anos na Inglaterra, onde foi terminar os estudos, logo depois de ter completado nove anos. Aliás, foi nas diversas escolas inglesas que freqüentou, principalmente na Banister Court School, de Southampton, onde se iniciou em vários esportes que praticou. Além do futebol, que amava com predileção, papai foi famoso jogador de cricket, consagrado tenista e temível no rúbgi. Em 1902, como capitão do time, representou o Brasil no campeonato sul-americano de cricket, realizado na Argentina. Destacou-se em vários outros esportes e conquistou incontáveis medalhas e troféus. A sua última paixão foi o golfe. Quando alguém lhe perguntava pela saúde, respondia brincando que ia muito bem, graças ao doutor golfe.
A mais antiga lembrança que guardo dele está ligada ao Natal: eu devia ter uns quatro anos e esperava Papai Noel com ansiedade. Uns dias antes, porém, meu irmão, um pouco mais velho que eu, me mostrou alguns presentes escondidos e me disse que Papai Noel era o pai da gente. Resolvi verificar e, escondida, surpreendi papai colocando os presentes m meu sapato. Perguntei chorando pelo Papai Noel e ele me disse que o bom velhinho estava muito ocupado e havia pedido a ele que colocasse os embrulhos ali.
Charles, meu pai, era generoso com todas as pessoas e com os filhos, mais ainda. Um dia, eu e meu irmão o fechamos num quartinho que havia nos fundos de nossa casa, na Rua das Palmeiras. Quando mamãe descobriu, fazia tempo que ele estava lá trancado. Ficamos de castigo, presos na despensa. Antes, disfarçadamente, para não desautorizar mamãe, papai nos mostrou a lata de açúcar com que nos regalamos durante o castigo.
Em casa as tradições religiosas eram diferentes; papai, protestante, todas as noites lia a Bíblia. Mamãe era católica e nas manhãs de domingo íamos todos à missa. Ele se referia ao Brasil como um país com vocação para a agricultura, dada a extensão territorial. Dizia, porém, que era preciso democratizar a distribuição das terras. Mal sabia que estava defendendo a reforma agrária.
O interesse de papai pelo futebol foi precoce. Tinha 19 anos quando estreou no selecionado de Bourremouth, condado de Hampshire, como centro-avante, jogando contra o famoso Corinthians. Nessa época, 1893, já era conhecido como Nipple, que quer dizer garoto, referência à sua pequena estatura. No livro Hampshire Football Association – Golden Julilee 1887-1937, há elogios à sua atuação. Nipple foi considerado um dos mais completos jogadores da Inglaterra, jogava em diversas posições.
Concluído os estudos, em 1894, papai fixou-se definitivamente em São Paulo, onde, com um grupo de ingleses da Companhia do Gás, do London Bank e da Estrada de Ferro SPR, começou a organizar jogos de futebol.
O primeiro aconteceu em 1895 na Várzea do Carmo. A bola era a mesma de um jogo realizado em Southampton, que lhe fora presenteada por um colega de equipe. Além de bolas, papai trouxe na bagagem um manual com as regras do futebol, utilizado nos primeiros jogos em São Paulo, quase sempre na chácara Dulley ou no Carmo, ali nas proximidades das ruas do Gasômetro e Santa Rosa.
Foi papai quem formou os times da São Paulo Railway, da Light e do São Paulo Athletic, que presidiu nos três primeiros anos e logo se tornou campeão. Criou a jogada chaleira, na época chamada charleira, a jogada do Charles. Naquele tempo, os jogadores eram descendentes das tradicionais famílias paulistanas, e os jogos se transformavam num acontecimento social.
Em 1899, foi trabalhar na Mala Real Inglesa, onde fez carreira. Em 1904, foi nomeado vice-cônsul britânico em São Paulo. Nesse período, tinha direito a uma passagem por ano. Viajamos duas vezes juntos para a Inglaterra. A primeira, em 1935, e a última em 1939, véspera da Segunda Guerra Mundial.
Charles Miller, meu grande companheiro, meu grande pai, o introdutor do futebol no Brasil, faleceu em 30 de junho de 1953.
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Confira o dossiê especial sobre a Copa e legado dos megaeventos, no Blog da Boitempo, com artigos de Christian Dunker, Mike Davis, Bernardo Buarque de Hollanda, Mouzar Benedito, Mauro Iasi, Flávio Aguiar, Edson Teles, Emir Sader, Jorge Luiz Souto Maior, entre outros!
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Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, Minas Gerais, em 1949. Vive em São Paulo desde 1970. Entre outros livros, publicou Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura 1976); Crônicas da vida operária (finalista do Prêmio Casa das Américas 1978); O pavão misterioso (finalista do Prêmio Jabuti 2000); Paragens (edidado pela Boitempo, finalista do Prêmio Jabuti 2005); O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e Contos Antológicos (2009). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
ótimo texto amei. 😉
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