Ilegalidades e intransigência da Reitoria tensionam o conflito na USP
1. Introdução
Partindo do ponto essencial de que, juridicamente falando, na ocorrência de um conflito, explicitado pela greve, o diálogo não é um favor do empregador, e sim uma obrigação, sendo certo que no caso de um ente público o seu gestor, estando submetido aos ditames da lei, bem deveria saber que a sua negação ao diálogo constitui uma ilegalidade que é, ademais, extremamente grave, por conduzir a instituição a uma crise muito maior do que aquela que possa decorrer de questão econômica, pretendo pôr em discussão acadêmica, mais uma vez, o direito de greve, demonstrando, inclusive, a legitimidade dos métodos de defesa da greve e dos grevistas frente à intransigência do empregador.
2. A Cultura anti-greve
A greve ainda tem sido alvo de muitas resistências culturais em nossa sociedade, mesmo que tenha sido, considerando apenas a nossa história recente, o instrumento mais relevante para retirar o país da ditadura militar.
Os posicionamentos a respeito da greve têm partido do pressuposto de que os transtornos da greve devem ser evitados, mesmo que isso signifique, em concreto, negar o próprio direito à sua realização.
Mas a greve se insere no contexto mais amplo do direito de lutar por melhores condições de vida e ainda que se concorde que há limites para o exercício desse direito, como de resto há com relação a todos os demais direitos, não se pode fazer com que a visualização de limites implique a inexistência concreta da greve.
Por conta dessa aversão cultural, o resultado tem sido a negação do direito de greve, passando-se, inclusive, por cima das previsões normativas, que se aplicam, então, seletivamente, apenas no sentido restritivo.
Ou seja, o que se tem verificado não é o esforço de respeitar o direito de greve como direito fundamental que é, estendendo-o até o limite da inserção de outros direitos, também insertos na órbita dos direitos fundamentais, e sim o da fixação de limites cada vez mais curtos, sufocando, em concreto, a greve.
A técnica jurídica, no entanto, exige esforço em sentido contrário. Vista a greve como direito fundamental e como fato social e político de extrema relevância para o melhor funcionamento democrático da sociedade, o direcionamento deve ser o de buscar mecanismos para que a greve se exerça efetivamente e possa produzir o efeito de dinamizar as relações sociais a partir do postulado do diálogo. Vale lembrar que nos ordenamentos estrangeiros e nas diretrizes internacionais não se têm normas voltadas a impedir a greve. Bem ao contrário, o que os instrumentos jurídicos procuram fazer é viabilizar a greve, obstando e até recriminando todo ato que vise destruir a greve ou punir os grevistas.
Sem esse sentimento, no Brasil, o que se tem visto é a utilização do direito como instrumento de negação da greve, sendo que o direito devia ser visualizado para garantir tanto o exercício da greve quanto a sua efetividade.
3. A ilegalidade da intransigência
O caso da presente greve na USP, que abrange as três categorias (professores, servidores e estudantes), é um bom exemplo do quanto é relevante inverter essa lógica de raciocínio sobre o direito de greve.
Vista a questão da forma como se tem costumado a ver o direito de greve, tudo estaria dentro da mais perfeita regularidade: as categorias, em assembleias, deflagraram greve e quem, individualmente, não quis aderir está seguindo a sua vida normalmente. E mais normalmente ainda segue a direção da universidade, manifestando-se por vias institucionais e pela grande mídia sobre as reivindicações, afirmando que não pode conceder nem um por cento de reajuste porque o orçamento já ultrapassou o limite.
Para quem não sabe, oportuno explicar que a greve foi deflagrada, sobretudo, porque foi oferecido aos professores e servidores um reajuste salarial de 0,0%, tendo os estudantes aderido à greve por solidariedade, mas também porque foram atingidos com a supressão de bolsas e incentivos à pesquisa.
Cumpre esclarecer que a situação atingiu, também, os professores e servidores da UNICAMP e da UNESP, abrangidos pelas deliberações, necessariamente conjuntas neste aspecto salarial, do CRUESP (Conselho de Reitores das Universidades Estaduais de São Paulo).
Os professores e servidores das três universidades estão tentando, desde o dia 27 de maio, abrir negociações, mas há uma resistência para tanto, que parte, em especial, do reitor da USP, o qual chegou, inclusive, a cancelar uma reunião do Conselho Universitário em que se iria colocar em pauta a necessidade do reitor requerer a abertura das negociações.
Em concreto, o que se tem visto é uma resistência do reitor em dialogar diretamente com os representantes das categorias em greve, fazendo-o, como dito, por vias transversas, e, de outro lado, uma tentativa quase desesperada dos trabalhadores (professores e servidores) em buscar meios para instigar esse diálogo.
Mas, do ponto de vista do direito de greve, como dito, o diálogo não é um favor do empregador é uma obrigação.
Ora, ao se negar a cumprir a obrigação legal de dialogar diretamente com servidores, professores e estudantes em greve, o reitor também está ferindo a dignidade dessas pessoas, tratando-as como “desordeiras” ou criminosas, reproduzindo, aliás, o sentimento cultural que se tem com relação a grevistas. No entanto, essas pessoas são servidores e professores que executam seu trabalho para a Universidade há muitos e muitos anos, com dedicação e competência. Lembre-se que a greve já atinge quase todas as unidades da USP, até algumas que não passavam por essa experiência há 19 (dezenove) anos, como o Hospital Universitário.
Furtar-se ao diálogo, ainda mais utilizando de subterfúgios, equivale a uma declaração de guerra, pois essa atitude parte da visualização dos integrantes da universidade em greve como autênticos inimigos a serem derrotados.
Aliás, as estratégias utilizadas são mesmo estratégias de guerra.
Negar o diálogo representa fazer estender a greve indefinidamente, buscando vencer o inimigo, os trabalhadores, pelo cansaço. Não se pode esquecer que uma greve requer mobilização, reuniões, organizações de atos, participações em atividades de greve, fazer esclarecimentos à população etc.
E quanto mais a greve dura, mais os trabalhadores são submetidos a pressões dos chefes imediatos, acompanhadas de ameaças de corte dos salários, que acabam repercutindo até mesmo no ambiente familiar.
Em suma, a política adotada pela direção da Universidade está sendo a de afligir e desmoralizar professores, servidores e estudantes em greve, aproveitando-se, ainda, da disposição de alguns que, por razões variadas, querem continuar trabalhando, para jogar uns contra os outros.
Ou seja, a direção da Universidade parece estar apostando no caos, na degradação do ambiente de trabalho, com reflexos na produção acadêmica, para se ver livre do cumprimento da obrigação legal de dialogar com os grevistas, levando adiante, a qualquer custo, seu objetivo de sanar as contas da universidade com o sacrifício dos trabalhadores.
Vale perceber que o argumento da direção da universidade, de negar reajuste salarial aos trabalhadores, diante de uma inflação anual de cerca de 7,0%, que gera, portanto, redução salarial, é antes de tudo imoral, na medida em que utiliza a própria irresponsabilidade na administração dos recursos como fundamento para chegar a esse resultado. Claro, diz-se que o problema foi criado na administração anterior, mas isso do ponto de vista jurídico (e real) não tem a menor significação, pois o empregador, o ente público, é um só e não se recria a cada troca de administradores. O empregador não é o reitor e sim a instituição. Ademais, professores e servidores estão advertindo há vários anos que a ampliação da estrutura da universidade sem o devido aumento da base de receita iria conduzir ao estrangulamento financeiro.
Vista a situação com essa amplitude, é mesmo oportuno que aqueles que se mantiveram trabalhando apesar da greve avaliem o quanto a sua opção pessoal serve ao empregador para gerar sofrimento real àqueles que lutam por todos.
Cumpre ao reitor, também, se indagar se vale a pena conduzir a universidade a um autêntico caos institucional, para levar adiante uma ideia fixa, formada sem qualquer pressuposto democrático, de que o sacrifício salarial daqueles que dão vida à universidade e formam seu saber – estendendo-se essa restrição aos estudantes, que cumprem idêntico papel – é a única forma capaz de sanar as contas da universidade, sem se dispor, inclusive, a acatar as várias outras saídas que os representantes das categorias estão tentando lhe apresentar, fazendo-nos com isso supor que haja propósitos não revelados nessa atitude, que tende a favorecer a propagação de propostas alinhadas à privatização.
4. O direito garantindo a eficácia da greve
A questão é que na construção histórica do direito de greve já foi possível compreender que em muitas situações é mesmo impossível contar com a razoabilidade do empregador e por isso a ordem jurídica garantiu aos trabalhadores mecanismos para superar a pressão – e às vezes a posição confortável do empregador – e levar adiante sua luta.
É exatamente no contexto da intransigência, expressa claramente na atuação do reitor da USP, que se extrai o fundamento para adoção de métodos de defesa da eficácia da greve e de proteção dos grevistas, até para que o tensionamento da greve possa inverter a lógica e gerar transtornos concretos ao empregador. No caso da atual greve da USP, por enquanto a sua ocorrência só está causando prejuízo e sofrimento ao conjunto de servidores, professores e estudantes (grevistas, ou não).
A respeito da amplitude do direito de greve, respaldando o preceito constitucional (art. 9º.), lembrem-se várias decisões proferidas nos processos ns. 114.01.2011.011948-2 (1ª. Vara da Fazenda Pública de Campinas); 00515348420125020000 (Seção de Dissídios Coletivos do TRT2); e 1005270-72.2013.8.26.0053 (12ª. Vara da Fazenda Pública do Estado de São Paulo). De tais decisões extraem-se valores como o reconhecimento da legitimidade das greves de estudantes, dos métodos de luta, incluindo a ocupação, e do conteúdo político das reivindicações.
Essas decisões foram proferidas sob o amparo de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, na qual se consagrou a noção constitucional de que a greve é destinada aos trabalhadores em geral, sem distinções, e que a estes “compete decidir sobre a oportunidade de exercê-la e sobre os interesses que devam por meio dela defender”, sendo fixado também o pressuposto de que mesmo a lei não pode restringir a greve, cabendo à lei, isto sim, protegê-la. O Supremo Tribunal Federal consignou de forma cristalina que são “constitucionalmente admissíveis todos os tipos de greve: greves reivindicatórias, greves de solidariedade, greves políticas, greves de protesto” (Mandado de Injunção 712, Min. Relator Eros Roberto Grau).
Trilhando o caminho dessa decisão, recentemente, o Min. Luiz Fux, também do STF, impôs novo avanço à compreensão do direito de greve, reformando decisão do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) no que tange ao corte de ponto dos professores da rede estadual em greve. Em sua decisão, argumentou o Ministro: “A decisão reclamada, autorizativa do governo fluminense a cortar o ponto e efetuar os descontos dos profissionais da educação estadual, desestimula e desencoraja, ainda que de forma oblíqua, a livre manifestação do direito de greve pelos servidores, verdadeira garantia fundamental” (Reclamação 16.535).
Além disso, a Justiça do Trabalho, em decisões reiteradas de primeiro e segundo graus, tem ampliado o sentido do direito de greve como sendo um “direito de causar prejuízo”, extraindo a situação de “normalidade”, com inclusão do direito ao piquete, conforme decisões proferidas na 4ª. Vara do Trabalho de Londrina (processo n. 10086-2013-663-09-00-4), no Tribunal Regional do Trabalho da 17ª. Região (processo n. 0921-2006-009-17-00-0), na Vara do Trabalho de Eunápolis/BA (processo n. 0000306-71-20130-5-05-0511), todas sob o amparo de outra recente decisão do Supremo Tribunal Federal, esta da lavra do Min. Dias Toffoli (Reclamação n. 16.337), que assegurou a competência da Justiça do Trabalho para tratar de questões que envolvem o direito de greve, nos termos da Súmula Vinculante n. 23, do STF, integrando o piquete a tal conceito.
A Organização Internacional do Trabalho, por intermédio da declaração, “Princípios da OIT sobre o direito de greve”, reconhece a legitimidade de diversas modalidades de pressão, incluindo a ocupação e o trabalho realizado de forma lenta (“greve de zelo”), por parte dos grevistas, sobretudo quando as negociações são recusadas pelo empregador.
5. O tensionamento na USP
Voltando ao caso da USP, lembre-se que o reitor já disse que a partir de setembro poderia reconsiderar sua posição e o que talvez pretenda seja levar a coisa em “banho maria”, sem estabelecer o diálogo, conduzindo a greve até lá, quando, então, espertamente, poderia dizer que a lei o proíbe de conceder qualquer reajuste, dado que se trata de um ano eleitoral, e que há o empecilho temporal fixado pela Lei n. 9.507/97.
Se for isso, equivoca-se, duplamente: primeiro, porque a condução da greve não lhe pertence e sua radicalização na manutenção da postura ilegal de não dialogar pode conduzir a greve a outros patamares de maior tensão e, segundo, porque o que a lei proíbe é a concessão de reajuste para além da recomposição da perda do poder aquisitivo, e a Constituição Federal não deixa dúvida de que os servidores púbicos possuem o direito à “revisão geral anual”, destinada à recomposição do poder aquisitivo da remuneração (art. 37, inciso X).
E mesmo que se elenque a lei de responsabilidade que proíbe o aumento de despesa com pessoal em ano eleitoral, razão não teria, pois a previsão normativa destina-se a evitar que o administrador vislumbre com tal atitude um benefício eleitoral, e o respeito à Constituição não pode ser visto como tal.
Em suma, o que se tem é o contexto de uma série de ilegalidades muito graves cometidas pelo reitor da USP frente ao direito de greve e mesmo com relação ao conteúdo das reivindicações que lhe têm sido apresentadas. Sua postura intransigente e ilegal está, ademais, expondo a USP a uma crise institucional sem tamanho, gerando, por estratégia de poder, sofrimentos às pessoas que são a essência da instituição.
Mantida a situação de intransigência e ausência de diálogo, medidas de tensionamento da greve, como, por exemplo, a ocupação pacífica de espaços físicos de locais de trabalho, que obviamente se debitariam da conta do reitor, podem ser visualizadas como as únicas eficazes neste instante para evitar o aprofundamento do caos e para minimizar os sofrimentos de todos. Provocariam, inclusive, uma perplexidade interessante, a de ver a direção da USP se socorrer do argumento da legalidade para se opor aos métodos utilizados, tendo ela rasgado a lei em diversos aspectos. E, se chamado a se manifestar a respeito, seria, também, interessante ver como o Judiciário se pronunciaria contra, por exemplo, uma ocupação, tendo que, inversamente, corroborar todas as ilegalidades cometidas pela direção da universidade até aqui.
De todo modo, não se está aqui dizendo que tal ou qual atitude deva ser tomada pelos grevistas (mesmo que me inclua entre eles na qualidade de trabalhador), pois a deliberação é coletiva.
A intenção do presente texto é apenas a de demonstrar que, primeiro, a intransigência e as graves ilegalidades que vêm sendo cometidas pela atual reitoria da USP frente ao direito de greve configuram-se como violência exercida sobre a comunidade universitária, expondo a USP a uma crise institucional e segundo, que o reitor ao se negar a abrir a via do dialogo e tentar se valer de estratégias de guerra para vencer os “adversários” pelo cansaço, está, de fato, legitimando a adoção de métodos de defesa que juridicamente se apresentam aos grevistas, até porque uma greve, pelas suas características específicas, que gere prejuízo, sofrimento e transtornos apenas para os grevistas não é greve.
São Paulo, 21 de junho de 2014.
Entrega e leitura ao vice-reitor da carta ao reitor aprovada pela assembleia da ADUSP, no início de junho:
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Leia também “Democratização vs. privatização da USP: a cartada final“, “Um espectro ronda a USP: a democracia” e “Greve no HU: uma aula…“, de Jorge Luiz Souto Maior, “A crise na USP“, de Chico de Oliveira, e “A universidade como espaço de luta“, de David Harvey, no Blog da Boitempo.
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Jorge Luiz Souto Maior é um dos autores do livro de intervenção Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?, junto com Andrew Jennings, Carlos Vainer, Ermínia Maricato, Raquel Rolnik, Antonio Lassance, MTST, Jose Sérgio Leite Lopes, Luis Fernandes, Nelma Gusmão de Oliveira, João Sette Whitaker Ferreira, Gilberto Maringoni e Juca Kfouri! Confira, abaixo, o debate de lançamento em São Paulo, do qual Souto Maior participou:
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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.
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