No tempo das emergências | Uma entrevista com Paulo Arantes
Carla Rodrigues entrevista Paulo Arantes.*
Há 40 anos formando gerações de pesquisadores na USP, Paulo Arantes é um filósofo na completa acepção do tenno. Sua filosofia é feita da mesma matéria que dá titulo ao seu livro, O novo tempo do mundo, da coleção Estado de Sítio, coordenada por ele na Boitempo Editorial, e carregada de uma dura ironia que permeia seu discurso, seja nas entrevistas, seja na escrita dos nove ensaios que configuram o estilo das 460 páginas de um autor que se define como pesquisador da “teoria critica do mundo contemporâneo”. Teoria critica voltada contra o capitalismo e todas as suas formas de opressão econõmica, social, cultural ou política.
Arantes contesta os argumentos dos que, de tempos em tempos, reivindicam para o Brasil “um choque cavalar de capitalismo”. A rigor, escreve ele, o Brasil padece desde o início de um excesso de capitalismo. “Nascemos como um negócio.” Na mesma linha de critica ao contemporâneo, Arantes traz entre seus escritos um longo texto sobre as manifestações políticas que tomaram as ruas desde o ano passado. Em “Depois de junho a paz será total”, volta sua verve crítica para pensar as reiviIidicações de que protestos políticos só são legítimos se forem pacíficos e o significado de o Brasil vir a sediar dois megaeventos, Copa e Olimpíada. “São rituais de massa e como tal, um tremendo dispositivo de governo, algo como um não menos tremendo centro emissor de comandos pacificadores, pois é preciso que durante a Copa a paz seja total. Até os ambulantes serão vacinados.” Estado de exceção, argumenta, em que cada arena para os jogos serã uma situação de sítio, e cada sede, um zoneamento de ocupação militar. E se alguém lhe perguntar pelo legado dos jogos, o tiro é certeiro: “Quando o megaevento se for, tudo isso ficará na praia à espera da próxima maré, repetindo-se religiosamente os mesmos rituais de segurança, um ponto zero acima. Se há um real legado da Copa, é justamente o da atualização acelerada dos aparatos coercitivos de vigilância e punição.” Capitalismo e segurança, negócios e opressão, novidade e história, articulações que aninam a combinação entre sarcasmo e agudeza intelectual de Paulo Arantes.
A crítica ao capitalismo se relaciona com o título do seu livro, O novo tempo do mundo. Há, seguindo sua referência a David Harvey (geógrafo marxista britânco), uma ênfase no aqui e agora, um tempo opressor, sem futura. O título também poderia dar ao leitor a chance de ser otimista? O que é o novo tempo do mundo?
Fico até desconfiado. É a primeira vez que alguém vislumbra uma nota positiva no que digo ou escrevo. Quem sabe se a sua boa impressão de que há ainda uma chance oferecida ao leitor de ser otimista não deriva da sensação de que, afinal, estamos mesmo atinando com as coisas novas e ruins que nos levaram às cordas. Pois o limiar em que atolamos e apodrecemos, de colapso em colapso, quanto mais as forças produtivas se desenvolvem, juntamente com os estados de violência própria do governo da emergência, não deixa de ser justamente isto mesmo, um limiar. A mutação que rebateu as grandes expectativas modernas sobre as urgência do presente não é necessariamente uma má notícia. Ela é, pelo contrário, uma espantosa novidade depois de dois séculos de espera, desde que a encaremos como tal, nos seus próprios termos. Para isso é preciso fazer uma faxina em regra do nosso repertório, a começar pelo intragável jargão progressista-participativo, que é o discurso do poder que simula ainda estar conduzindo sociedades orientadas para o futuro. Política numa era de expectativas decrescentes só pode ser gestionária e policial
Quando “o futuro se aproxima do presente explosivamente carregado de negações”, o capitalismo do desastre como oportunidade de acumulação apenas multiplica os regimes de segurança dispostos à beira do abismo, ainda que compulsivamente, pois assim o exige a lógica da valorização: estenda indefinidamente a fronteira autodestrutiva da predação. Emparedados nesse limiar, carecemos é de uma antipolítica que saiba decifrar o renascimento paradoxal de expectativas que se abram para outras dimensões temporais. Se uma esquerda sem futuro ainda tem futuro, devemos procurá-lo noutra parte.
O último ensaio do livro é uma grande leitura das manifestações de junho do ano passado, que tem como fio condutor uma crítica ao uso do termo insurgência. O que o senhor acha que se perde e que se ganha com “inssurgência”?
Essa pergunta também deveria ser feita ao diplomata americano [Dennis Heame, ex-cônsul Geral dos EUA no Rio] cujo olho clínico enxergou no Programa de Pacificação das Favelas o que os manuais da contrainsurgência contemporânea recomendam e seu país aplica um pouco por toda parte no mundo: trabalho social com armas. Ele não hesitaria muito na resposta: no sul global, desenvolvimento social é antes de tudo uma tecnologia de segurança e, assim sendo, contrainsurgência e desenvolvimento são uma só e mesma coisa. Acho que o Eduardo Tomazine [pesquisador da UFRJ que escreveu artigo sobre as UPPs], que rastreou o tópico, batizando-o de doutrina da pacificação, acrescentaria que a novidade na parte que nos cabe nessa guerra sem fim é que o inimigo foi internalizado. E isto não é pouca coisa, como se pode verificar quando o Manual de Garantia da Lei e da Ordem, baixado pelo Ministério da Defesa, tipificou como “forças oponentes” os manifestantes de junho. Poucos meses antes, os pacificadores cariocas de carteirinha jã haviam feito o mesmo amálgama na construção do novo inimigo. De minha parte, pude apenas observar que a ideia fixa da pacificação tem a mesma idade política da transição. Ajuda a compreender por que vivemos hoje uma “guerra ao contrário”, como eles mesmos diziam quando descobriram que o Rio descivilizava-se. Sei que a palavra insurgência é esdrúxula, a ponto de incluir os coxinhas entre os sublevados. Outra novidade do período. O golpe de 64 deslanchou una contrarrevolução onde não havia revolução. O Brasil-potência-emergente que voltou a associar desenvolvimento e segurança pode muito estar se instalando, sempre preventivamente, é claro, uma situação de perene contrainsurgência sem insurgência. Só por isso a palavra já interessava.
O senhor refuta a hipótese de fim da história, tão presente nos discursos triunfalistas da sociedade liberal de livre mercado. Mas também é um duro crítico de tudo que poderia ser englobado numa categoria “solidariedade”. O senhor acredita que os direitos humanos só podem ser pensados numa perspectiva liberal?
Dou um exemplo. Penso na repolitização do novo tempo jurídico que está fazendo ressurgir o passado no presente. Diante de um passado abominável de violações, o tempo já não cura mais, como se pensava e legislava quando o progresso visto de longe sorria, embora de perto sempre arreganhasse os dentes. Entramos não faz muito no domínio do imprescritível e do efeito retroativo autorizado. Mudou a relação do dano com o tempo. Sendo um imperativo do dever de memória, é possível dizer que a necessidade cada vez mais incontornável de um acerto de contas com o passado acabou fazendo com que a esquerda buscasse alcançar seus objetivos clássicos de justiça e emancipação por meio do foco na reparação dos horrores do passado. O presente prolongado de hoje é, assim, uma sociedade da responsabilização expandida até os confins do passado mais remoto. Essa nova temporalidade política se bifurca. Capturada no andar superior pelo progressismo governamentalizado, tornou-se o receptáculo de políticas públicas de administração de danos, sendo que a reparação é sempre uma intervenção que apenas restaura, para melhor corrigir uma disfunção, por mais que a elaboração final do trauma signifique uma libertação sem a qual ninguém vive. Chegamos, assim, à situação surreal de um Estado a um só tempo violador e reparador, que melhora seus indicadores de IDH enquanto segue chacinando, A menos que seja assim mesmo, numa sociedade que a ditadura mudou. Não estou censurando nada nem ninguém, apenas constatando mais uma reviravolta em nosso regime de esperas.
O senhor se refere à revisão dos processos de anistia?
Um jovem pesquisador lembrou recentemente que quem emplacou a ideia de anistia como esquecimento foi sobretudo a esquerda, que se preparava para retomar a luta progressista de antes contra uma ditadura ela mesma também modernizadora. Estávamos então no mesmo barco do antigo tempo do mundo. Sobreveio um tranco sistêmico e global que nos roubou o chão. E com ele o dever de memória foi aos poucos se convertendo num imperativo, hoje oficial. Mas onde corre um risco menor de se tornar oficial, no chão da fábrica social, a percepção característica do limiar no qual ingressamos, de que meio século depois as atrocidades que inauguraram o novo tempo brasileiro parecem ter acontecido horas atrás pode muito bem estar abrindo caminho para a antipolítica de que há pouco falávamos. A catástrofe que hoje reúne todos os dias vivos e mortos canalizou para o rio da memória ativa um horizonte de expectativas insatisfeitas que justamente não brotam mais de um arquivo morto, como se só pudéssemos avançar olhando para trás, sem ódio nem remorso.
O senhor considera mais produtivo pensar a critica ao capitalismo a partir da perspectiva de Max Weber do que da perspectiva de Karl Marx?
Luci Boltanski aparece apenas o suficiente para lançar uma luz retrospectiva sobre a visão luminosa de Walter Benjamin acerca da assombrosa religião que no fim das contas o capitalismo vem a ser: um sistema de comandos tão absurdos – tanto para os acumuladores de capital, seus supostos beneficiários, como seus provedores de força de trabalho, impossibilitados de viver fora da subordinação, ambos os extremos acorrentados a um processo sem fim e insaciável – que necessita de um “espírito” que o justifique, o que Weber foi buscar na ascese calvinista.
Não por acaso, numa não menos absurda religião do sofrimento. Observando no seu tempo a metamorfose fascista da ordem liberal, Benjamin notou que o tal espírito enxertado por Weber naquela máquina de moer gente simplesmente evaporara fazia tempo, deixando neste mundo duplamente desencantado uma engrenagem monstruosa puramente ritualística, e como tal, “religiosamente”, isto é, escrupulosamente observada. Se assim foi e voltou a ser, seria preciso corrigir Boltanski e constatar que o “novo espírito” do capitalismo, de espírito justificador não tem absolutamente nada, é pura letra. Como também o cumprimento preciso de uma ordem voltou a ser mais importante que o conteúdo das ordens – foi o que a socióloga Silvia Viana redescobriu, observando o comportamento dos voluntários sob contrato que povoam os “reality shows”, reinterpretados como empresas flexíveis funcionando ao vivo. Daí o estado de alerta permanente em que se vive nesse universo de vozes de comando que se cruzam e se confundem com o ato de obedecer.
Giorgio Agamben chegou à mesma conclusão analisando os dispositivos eletrônicos, aos quais na verdade obedecemos toda vez que lhes damos um comando. O importante é que a obediência assuma a forma de uma ordem que cada um dá livremente a si mesmo. O ritual da religião capitalista contemporânea se dá precisamente nestas Ordens que nos damos a nós mesmos. E se assim é, o novo tempo do mundo só pode ser um tempo ritual – por exemplo, o ritual securitário das emergências, no qual se reconfigura o poder por excelência de dar ordens e decidir sobre a exceção.
* Publicado originalmente no caderno “Eu & fim de semana” do jornal Valor Econômico, em 9 de abril de 2014.
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Paulo Eduardo Arantes é filósofo, professor aposentado do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), onde lecionou entre 1968 e 1998. Publicou, entre outros, Hegel: a ordem do tempo (1981), Ressentimento da dialética (1996) e Extinção (2007). Coordenador da coleção Estado de Sítio da Boitempo, colaborou com O que resta da ditadura: a exceção brasileira, organizado por Vladimir Safatle e Edson Teles, com o ensaio “1964, o ano que não terminou”.
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