Carro fantasma

14.04.17_Roniwalter Jatobá_Carro fantasmaPor Roniwalter Jatobá.

O funileiro aposentado Amarildo Figueiredo, morador no Jardim Maia, na Zona Leste de São Paulo, só foi descobrir o problema mais grave do seu Fusca 1200, ano 1967, três meses depois de comprado de um primo distante. A princípio julgou uma “galinha morta”, pois o automóvel foi oferecido pela metade do preço de mercado. Mesmo com um pára-lama amassado, valia. Para ele, conceituado profissional do ramo, o serviço de funilaria era como uma brincadeira num final de semana. Com o equipamento que guardava em casa, usado para consertar carros alheios, era fácil, fácil.

Pagou à vista. Pegou o carro num domingo e seguiu para casa. Numa travessa da antiga São Paulo-Rio, resolveu comemorar num bar a recente aquisição. Estacionou com cuidado. Quando voltou, o carro tinha andado cerca de 50 metros e notava-se um amassado bem grande no pára-choque traseiro.

Verificou o freio de mão. Funcionava direitinho. Tentou empurrar o carro para ver se rodava mais alguns metros, mas ele nem se mexeu do lugar. Amarildo ficou encafifado.

– Quem arruma um pára-lama arruma também um pára-choque – pensou.

Já em casa, fez questão de mostrar à mulher todos os detalhes do carro.

– Fiz um grande negócio – disse. – No próximo domingo, com ele todo arrumado, vamos descer a Serra e beber uma cerveja e comer um peixe assado numa barraca da Praia Grande.

Era o que ele pensava. Na segunda-feira, misteriosamente todo o óleo do cárter havia vazado. Na terça, ao tirar o carro da garagem, viu pelo retrovisor a figura de seu velho sogro, falecido logo depois de seu casamento.

Outro dia, Amarildo me contou esses e outros problemas fantasmagóricos. Agora, não tinha coragem de sair nem mesmo na sua rua com o automóvel tanto desejado.

– Será que tem jeito? – indagou.

Conto para ele que um motorista britânico foi obrigado a fazer uma coisa que só tinha visto em ser humano. Morador em Londres, pediu ao padre de Sussex para exorcizar seu carro.

Era o empresário Keith Tagliaferro, de 42 anos. Segundo ele, o veículo era responsável por todas as desgraças que sofreu desde que foi comprado. Tagliaferro culpava seu velho Ford Capri vermelho pela descarga de um raio, da morte de sua cadela de estimação, do surgimento de ferrugem no teto da capota do veículo e do aparecimento de fantasmas no porta-malas. Num jornal, o empresário afirmou que a placa do carro, ARK 666Y, pode ter relação com ARK – sigla da Arca da Aliança bíblica –, enquanto 666 é o número do diabo.

– Comprei o carro porque negocio placas e esta é bem procurada – relatou o empresário. – Mas o homem que me vendeu parecia ansioso para se livrar do veículo. Não sei se o proprietário anterior passou pelos mesmos apuros, mas desde que o comprei começaram a acontecer coisas estranhas.

A cerimônia de exorcismo foi feita realmente pelo sacerdote Kevin Carylon, de Sussex. Para dizer a verdade, não sei se deu certo. Mas, ando pesquisando para saber o resultado. Qualquer hora dessas, levo a fórmula para o desesperado e assustado Amarildo, que até hoje não usufruiu nadinha do primeiro – e último – carro próprio.

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Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, Minas Gerais, em 1949. Vive em São Paulo desde 1970. Entre outros livros, publicou Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura 1976); Crônicas da vida operária (finalista do Prêmio Casa das Américas 1978); O pavão misterioso (finalista do Prêmio Jabuti 2000); Paragens (edidado pela Boitempo, finalista do Prêmio Jabuti 2005); O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e Contos Antológicos (2009). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

1 comentário em Carro fantasma

  1. Fernando Marques // 29/12/2017 às 12:13 am // Responder

    Comecei a ler “Sabor de química: crônicas nordestinas”, de Roniwalter Jatobá, escritor que ainda não havia lido, mas de quem um amigo já me havia falado. É seu primeiro livro. Domínio de linguagem, inventividade no retrato do real. Gostando muito.

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