1964, 50 anos depois
Por Flávio Aguiar.
A tentação de fazer ficção científica é muito grande: o que teria acontecido nas nossas vidas se houvesse de fato resistência ao golpe?
Já nem digo se o golpe fosse derrotado. Mas simplesmente se houvesse resistência.
Certamente teria havido uma guerra civil.
Seria sustentável? Seria. Ainda no dia 2 de abril houve uma reunião (são estas coisas de Brasil: sei disto através do parente de um vizinho…) reunindo um pessoal da Petrobrás, o general Ladário Pereira Telles (nomeado às pressas comandante do 3º. Exército), Brizola, Jango, Sereno Chaise (que era o prefeito de Porto Alegre) e outros possíveis líderes da resistência.
Nesta reunião, os sindicalistas da Petrobrás apresentaram um plano de tomar todas as refinarias do sul do Brasil. Um eventual avanço de tropas de São Paulo para o Rio Grande do Sul encontraria pela frente um provável deserto de combustível. O que era necessário para isto? Armas.
Jango preferiu se exilar imediatamente no Uruguai. Um dos motivos alegados era o rápido deslocamento de uma força naval dos Estados Unidos do Caribe em direção ao Rio de Janeiro e o porto de Santos. Haveria uma invasão? Talvez.
Com a fuga de Jango, não houve a entrega das armas. Ficou tudo por isto mesmo. O plano teria funcionado? Hoje é impossível dizer que sim. Mas também é impossível dizer que não. São destas caixas pretas da história, mas sem leitura possível.
Outra caixa preta: haveria muitas mortes? Certamente. Mas não como a grande maioria que houve nos anos depois do golpe, com pessoas caçadas como ratos ou na tortura, em calabouços infames. Isto teria sido melhor? Impossível saber. A única coisa possível de se saber é que a falta de resistência naquele momento decisivo da história tornou mais amargo o fruto amargo que tivemos de comer sem vomitar. O resto fica no mistério da caixa preta.
Este é o principal efeito do golpe, ainda hoje, esta semeadura de caixas pretas ao longo das vidas posteriores. É claro que há um sem número de caixas pretas nas nossas vidas. O que teria acontecido comigo se eu não tivesse feito aquela escolha, naquele momento, ou fizessem outra escolha, tivesse outra namorada, aceitasse outro emprego, e por aí afora.
Somos os destino das nossas escolhas e também o seu desatino, ou ainda o destino de nossa falta de escolha por vezes. Mas a caixa preta do golpe é diferente. Porque as outras vão variando, diminuindo ou variando de importância conforme o tempo vai passando. A do golpe não. Ela não passa, ela fica, ela pesa sempre na memória. É a cicatriz do futuro que não houve. E por baixo da cicatriz a ferida ainda está aberta, ainda lateja.
Em alguns casos ela se transformou em câncer, e levou pessoas ao suicídio. Outras vezes ela levou pessoas ao suicídio moral, à adesão deslavada e descarada à direita. Até hoje isto acontece.
Esta caixa preta está irremediavelmente plantada na memória. A memória é um labirinto, onde frquentemente nos encontramos, mas também onde frequentemente nos perdemos. Se falarmos de memória, caixa preta, labirinto, perda, um caso que nos vem à mente – evocado em várias ocasiões – é o de Frei Tito de Alencar. Barbaramente torturado pelo delegado Sergio Paranhos Fleury durante a caçada a Carlos Marighella, Frei Tito ficou com algo de si preso a esta memória horrenda, como um anzol. A única maneira de se libertar desta verdadeira possessão demoníaca foi através da morte. Tão grave foi seu caso que apesar do suicídio ele recebeu as exéquias cristãs no convento onde residia, em Paris, quando de seu suicídio.
A memória tem destes redemoinhos. Há coisas que queremos lembrar e não podemos; há coisas que queremos esquecer e não conseguimos. A caixa preta de 64 está nesta encruzilhada: queremos por vezes lembrar-nos deste futuro que nos era prometido, que poderíamos construir, e que nos foi arrebatado pelo golpe, e isto se torna uma operação cada vez mais difícil e nebulosa; queremos esquecer do amargor de ter todo este futuro negado, e não conseguimos, pois a dor da perda é sempre presente, cada vez mais espessa e onipresente.
Virar a página? Sim, é necessário virar a página. Até porque os que não querem virar a página, os Bolsonaros da vida, os militares de pijama nostálgicos da ditadura, os amantes de privilégios em todas as classes sociais não querem virar a página. Querem ficar presos e deter-nos todos na prisão da reverência ao canalhismo de 64. Mas virar a página não significa esquecer. Porque se a metáfora é a do livro, o livro pode e deve ser folheado numa e noutra direção.
Haverá um ajuste de contas com este passado? É muito difícil prever. Duas coisas seriam necessárias: a revisão da Lei da Anistia e a abertura dos arquivos das Forças Armadas. Isto depende do STF e do Congresso Nacional, além da pressão dentro e fora do Brasil. Isto nos leva ao encontro de outra caixa-preta, mas esta cheia de possíveis surpresas, a da política.
A ver.
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Leia também “Libertemos os ricos e a extrema riqueza!” e “A classe média fora de lugar“, na coluna de Flávio Aguiar, no Blog da Boitempo.
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A Bíblia segundo Beliel: da criação ao fim do mundo, como tudo de fato aconteceu e vai acontecer, de Flávio Aguiar, já está disponível em versão eletrônica (ebook) por metade do preço do livro impresso aqui. Confira abaixo um capítulo do livro recitado pelo próprio autor:
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Um bom texto tem sempre um aspecto interessante: é sedutor, mesmo quando intuímos divergências profundas com o autor. É o caso aqui. Antes de ser mal interpretado, esclareço: considero TODA DITADURA NEFASTA, seja de direita, seja de esquerda, seja laica, seja religiosa. Apesar das memórias insepultas, das cicatrizes do golpe de 64, a questão inicial proposta pelo artigo é o futuro possível se tivesse havido resistência ao golpe. Neste ponto, noto uma ausência importante: a hipótese provável de que a falta de resistência tenha sido, majoritariamente, não por medo, mas por adesão.
Outro ponto de conflito, para mim, é a preferência do autor pela esquerda. Como se trata de uma visão pelo retrovisor da história, em que o cenário é o ano de 1964, podemos dizer que todas as experiências de socialistas que serviam de modelo para a esquerda brasileira eram ditaduras. Neste sentido, a crítica à brutalidade da ditadura brasileira, embora justa, embora necessária, deixa no ar uma questão: faltou estabelecer uma régua para medir esta brutalidade. Para que o artigo seja justo com os próprios sonhos de um futuro alternativo, se faz necessário comparar a ditadura brasileira com ditaduras contemporâneas de esquerda, como Cuba, China, Camboja, URSS etc. Se a comparação for estabelecida, os ditadores brasileiros vão ficar marcados na História pela baixa produtividade nos quesitos tortura, execuções e prisões arbitrárias. Me perdoem a ironia macabra, mas é a mais pura verdade.
Vou além: defendo a tese de que não existe “Democracia Socialista”. Se alguém realmente acredita na importância dos direitos individuais, da liberdade de expressão, da alternância de poder sem ruptura institucional, se defende o respeito aos direitos de maiorias e minorias, se valoriza a administração pacífica de conflitos, esta pessoa não é de esquerda. Pode ser até um social-democrata, mas, se as palavras fazem sentido, de esquerda não é.
Deixo aqui um convite para a leitura de um artigo que trata especificamente desta questão:
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