Žižek: O que a Europa deveria aprender com a Ucrânia

14.03.31_Zizek_Maidan_2Por Slavoj Žižek.

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Devemos olhar para as próximas eleições na Europa sob o pano de fundo dos recentes acontecimentos na Ucrânia. Os protestos que derrubaram Yanukovich e sua gangue foram desencadeados pela opção do governo por priorizar sua relação com a Rússia sobre a integração com a União Européia. Como era de se esperar, muitos esquerdistas reagiram à noticia dos protestos massivos com seu habitual tratamento paternalista e racista dos pobres ucranianos: o quão iludidos estão, ainda idealizando a Europa, incapazes de ver que ela está em declínio, e que se juntar à União Européia só fará da Ucrânia uma colônia econômica da Europa Ocidental, eventualmente levada a posição equivalente à da Grécia… O que esses esquerdistas ignoram é que os ucranianos estão longe de estarem cegos sobre a realidade da UE: plenamente conscientes de seus problemas e disparidades, sua mensagem era simplesmente a de que sua própria situação é muito pior. Os problemas da Europa são ainda problemas de rico – lembre que, apesar do terrível predicamento da Grécia, refugiados africanos ainda estão desembarcando lá en masse, fazendo a ira de patriotas direitistas.

Mas muito mais importante é a pergunta: o que representa a “Europa” a que se referem os manifestantes? Ela não pode ser reduzida a uma única visão: abarca o escopo completo, desde elementos nacionalistas e inclusive fascistas até a ideia daquilo que Étienne Balibar chama de égaliberté – “liberdade-na-igualdade”, a contribuição singular da Europa ao imaginário político global, mesmo que seja hoje mais e mais traída pelas instituições europeias –, e ainda, entre esses dois pólos, a ingênua confiança no capitalismo liberal-democrático. O que a Europa deveria ver nos protestos ucranianos é sua própria imagem, no que tem de melhor e de pior.

O nacionalismo ucraniano de direita é parte de uma renovada voga populista anti-imigrante que se apresenta como a defesa da Europa. O perigo nessa nova direita foi claramente percebida um século atrás por G.K Chesterton que, em seu Ortodoxia, expôs o impasse fundamental dos críticos da religião: “Homens que começam a combater a Igreja em virtude da liberdade e da humanidade acabam jogando fora a liberdade e a humanidade só para poderem com isso combater a Igreja.”

O mesmo não vale para os próprios porta-vozes da religião? Quantos defensores fanáticos da religião que começaram atacando ferozmente a cultura contemporânea secular não acabaram traindo toda e qualquer experiência religiosa significativa? E o mesmo não vale também para a recente onda de defensores da Europa contra a ameaça imigrante? Em seu zelo em proteger o legado cristão, os novos fanáticos estão dispostos a traírem o verdadeiro coração desse legado.

Então o que fazer em uma situação como essa? Os liberais do mainstreem estão nos dizendo que, quando os valores democráticos básicos estão sob ameaça por fundamentalistas étnicos ou religiosos, devemos todos nos unir sob a agenda liberal-democrática de tolerância cultural, salvar o que pode ser salvo, e renunciar sonhos maiores de uma transformação social mais radical. Então, como fica o sonho europeu do capitalismo liberal-democrático? Não se pode saber, a certo, o que espera a Ucrânia no interior da UE, a começar pelas medidas de austeridade. Todos sabemos da conhecida piada da última década da União Soviética sobre Rabinovitch, um judeu que quer emigrar… O burocrata do escritório de emigração o pergunta por que, e Rabinovitch responde: “Por dois motivos. O primeiro é que temo que na União Soviética os comunistas perderão poder, e que o novo governo jogará toda a culpa pelos seus crimes em nós, judeus – haverá, mais uma vez, pogroms anti-semitas…” “Mas”, interrompe o burocrata, “isso é besteira, nada pode mudar na União Soviética: o poder dos comunistas durará para sempre!” “Bem,” responde Rabinovitch calmamente, “esse é meu segundo motivo”.

Podemos facilmente imaginar uma conversa semelhante entre um ucraniano critico e um administrador financeiro da UE. O ucraniano reclama: “existem dois motivos pelos quais estamos em pânico aqui na Ucrânia. Primeiro, tememos que a UE irá simplesmente nos abandonar à pressão russa e deixar que nossa economia caia por água abaixo.” O administrador da UE o interrompe: “Mas pode confiar na UE, não vamos abandonar vocês: nós os controlaremos com firmeza e diremos o que devem fazer”. “Bem,” responde o ucraniano calmamente, “esse é meu segundo motivo”.

Então sim, os manifestantes da praça Maidan foram heróis, mas a verdadeira luta começa agora: a luta pelo que será a nova Ucrânia. E essa luta será muito mais dura do que a luta contra a intervenção de Putin. A questão não é se a Ucrânia é digna ou não da Europa, sé é boa o suficiente para entrar para a UE, mas se a Europa de hoje é digna das aspirações mais profundas dos ucranianos. Se a Ucrânia for acabar como uma mistura de fundamentalismo étnico e capitalismo liberal, com oligarcas controlando a cena, será um quadro tão europeu quanto o é o da Rússia (ou da Hungria) hoje. Comentadores políticos alegaram que a UE não apoiou a Ucrânia suficientemente em seu conflito com a Rússia, que sua resposta à ocupação russa e a anexação da Crimeia foi pouco enfático. Mas há outro tipo de apoio que estava faltando mais ainda: oferecer à Ucrânia uma estratégia factível de como se desvencilhar de seu impasse sócio-econômico. Para fazer isso, a Europa deverá primeiro se transformar e renovar seu compromisso com o núcleo emancipatório de seu legado.

Em suas Notas para a definição de cultura, o grande conservador T.S. Eliot comentou que há momentos em que a única escolha é aquela entre o sectarismo e a descrença, em que a única forma de manter uma religião viva é efetuando um racha sectário de seu corpo principal. Essa é nossa única chance hoje: é somente através de um “racha sectário” do cadáver decadente da velha Europa que poderemos manter vivo o legado europeu de égaliberté. Tal racha deverá tornar problemáticas as próprias premissas do que tendemos a aceitar como destino, como dados não-negociáveis de nosso predicamento – o fenômeno comumente designado como Nova Ordem Mundial e a necessidade, através da “modernização”, de nos acomodar a ele.

Dito de forma direta: se a Nova Ordem Mundial que está surgindo for o destino não-negociável de todos nós, então a Europa está perdida e portanto sua única saída é assumir o risco e quebrar esse feitiço de nosso destino. Somente em uma tal nova Europa poderá a Ucrânia encontrar seu lugar. Não são os ucranianos que devem aprender com a Europa, é a própria Europa que deve aprender a incorporar o sonho que motivou os manifestantes da praça Maidan.

Que mensagem então os ucranianos receberão das eleições europeias?

A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.

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Está previsto para o mês que vem o aguardado Violência, o novo livro de Slavoj Žižek sobre o fenômeno moderno da violência, entre as explosões contraditórias das ruas e a opressão silenciosa de nosso sistema político e econômico.

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Todos os títulos de Slavoj Žižek publicados no Brasil pela Boitempo já estão disponíveis em ebooks, com preços até metade do preço do livro impresso. Confira:

Alguém disse totalitarismo? Cincon intervenções no (mau) uso de uma noção * ePub (Amazon | Gato Sabido) 

Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917 * ePub (Amazon |Gato Sabido)

A visão em paralaxe * ePub (Amazon | Gato Sabido)

Bem-vindo ao deserto do Real! (edição ilustrada) * ePub (Amazon | Gato Sabido)

Em defesa das causas perdidas * ePub  (Amazon | Gato Sabido)

Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético * ePub (Amazon | Gato Sabido)

O ano em que sonhamos perigosamente * ePub (Amazon | Gato Sabido)

Primeiro como tragédia, depois como farsa * PDF (Livraria Cultura | Gato Sabido)

Vivendo no fim dos tempos * ePub (Amazon | Gato Sabido)

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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidasPrimeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011) e o mais recente, Vivendo no fim dos tempos (2012). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

16 comentários em Žižek: O que a Europa deveria aprender com a Ucrânia

  1. Carlos J. R. Araújo // 31/03/2014 às 6:28 pm // Responder

    A inteligência de qualquer escritor/intelectual tem isso de bom: distrair o leitor e afastá-lo da realidade. Depois de ler uma pilha de artigos sobre a situação atual da Ucrânia/Criméia, vem o Zizek com a distração, verdadeiras metáforas incompatíveis com a realidade – “é a própria Europa que deve aprender a incorporar o sonho que motivou os manifestantes da praça Maidan”, diz ele.

    “Sonho”! Pois é. E aí eu me lembrei do seu livro “Em defesa das causas perdidas”. Depois de um inteligente manancial de variantes intelectuais, as conclusões são vazias, desconexas e desvinculadas do texto. Enfim, uma distração intelectual. E este artigo é mais uma delas. “Sonhemos”, pois.

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    • Eu também não sei porque o Slavoj Zizek enrola tanto. O que pude entender é que Zizek propõe que a Europa se espelhe,se referencie, se balize, na Europa sonhada pelos ucranianos.
      Nas eleições da Alemanha a Merkel foi elevada pela mídia dos Estados Unidos à categoria de salvadora da Europa. Devo lembrar que a Siemens está envolvida com os roubos trilionários do metrô do governador do Estado de São Paulo, o Geraldo Alckmin.

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  2. Carlos J. R. Araújo // 01/04/2014 às 3:54 pm // Responder

    A inteligência de qualquer escritor/intelectual tem isso de bom: distrair o leitor e afastá-lo da realidade. Depois de ter lido uma pilha de artigos sobre a situação atual da Ucrânia/Criméia, vem o Zizek com a distração, verdadeiras metáforas incompatíveis com a realidade – “é a própria Europa que deve aprender a incorporar o sonho que motivou os manifestantes da praça Maidan”, diz ele.

    “Sonho”! Pois é. E aí eu me lembrei do seu livro “Em defesa das causas perdidas”. Depois de um inteligente manancial de variantes intelectuais, as conclusões são vazias, desconexas e desvinculadas do texto. Enfim, uma distração intelectual. E este artigo é mais uma delas. “Sonhemos”, pois.

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    • Blog Anti-NOM, estou meio cansada pra ler a sua sugestão. Você não quer escrever sinteticamente o que você leu nesse site? Você tem medo de alguma coisa?

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  3. Qual foi o sonho que levou os manifestantes ucranianos à Praça Maidan?
    Os manifestantes ucranianos não estavam induzidos a manifestarem? Estaria a Europa induzindo os ucranianos a se manifestarem contra a Rússia?
    Desde quando sonhos são reais? Penso que os sonhos também podem ser produzidos pelo sistema econômico, falo dos sonhos que sonhamos enquanto dormimos e não dos sonhos em que desejamos alguma coisa conscientemente.
    Estou incondicionalmente do lado da Rússia dos russos e de Putin.
    Gosto muito do Slavoj Zizek.

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  4. Eu melhorei muito meu Ucraniano de casa, professores para conversação online, tudo pela internet. Pra quem estiver interessado: https://preply.com/pt/skype/professores-conversacao-em-ucraniano

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    • Melissa Gaiva, Slavoj Zizek e nós que comentamos no Blog da Boitempo estamos preocupados e envolvidos com as guerras que acontecem no mundo. Quando nós comentamos queremos colaborar pra solucionar esses conflitos. Seu comportamento está muito semelhante ao comportamento dos ucranianos envolvidos contra o Putin. Os ucranianos que lutam contra o Putin não estão preocupados com a morte e também não estão preocupados com a Ucrânia. O que a gente observa na Ucrânia é irresponsabilidade, descaso, e indiferença pros esforços do Putin em solucionar essa guerra na Ucrânia. Os ucranianos devem ser despertados da letargia na qual se encontram.

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    • Oi, TimothyFep! Eu não consegui entender o que você quis dizer com seu comentário. Você concorda ou não com o que Slavoj Zizek escreveu? O que você pensa do conflito ucraniano? Você também considera a Europa e os Estados Unidos responsáveis pela eclosão do conflito na Ucrânia?

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  6. Reli o texto do Zizek e agora senti dó e pena do Zizek. Eu não sei aonde o filósofo vê algum valor na Europa. A tão divulgada Revolução Francesa não passou de uma revolução burguesa. Os burgueses usaram os pobres para eliminar a monarquia e para tanto a igualdade, a liberdade e a fraternidade forma lemas que motivaram a classe miserável francesa. Portanto a grande revolução francesa não existe. A Inglaterra e a Alemanha seguiram o modelo francês. A Europa escravizou, explorou, colonizou, as Américas, África e Ásia, portanto todos sabem os crimes e barbaridades cometidos pelos europeus. Até hoje a presença da França, Alemanha, Inglaterra em guerras no Oriente Médio comprovam que a Europa nunca teve valores humanos, a Europa nunca teve ética, a Europa é imoral. Não existe unanimidade e a Europa possui intelectuais que mesmo estando imersos na sujeira européia conseguem produzir muita coisa boa.

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  7. A Europa não quer pagar o gás e petróleo produzido pela Rússia. A Europa não tem energia e depende do gás e petróleo russos. Putin estava fornecendo meios pra Ucrânia trabalhar o gás e o petróleo e essa ajuda do Putin possibilitaria a Ucrânia ficar bem. Mas a Ucrânia DEU gás e petróleo para a Europa. Melhor dizendo, a Europa estava roubando gás e petróleo do Putin através da Ucrânia. A Ucrânia deve muito dinheiro pro Putin. Foi isso o que consegui até agora sobre o conflito na Ucrânia.

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  8. Almanakut Brasil // 25/03/2018 às 6:35 pm // Responder

    Quem tem que aprender com a Ucrânia é a desgraça da América LatRina!

    LYAPIS TRUBETSKY – “WAR OF THE LIGHT!”

    Alex Karpenko

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    • Almanakut Idiota, vá pra Ucrânia, meu bem. Você não sabe nem o que está acontecendo no Brasil. Nem esquerda, nem direita, nem centro, querem você aqui. Vá semear sua guerra e ódio nos quintos dos infernos!

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  9. Hoje, 25/03/2018, vejo que consegui mais informações do que está acontecendo na Ucrânia. Hoje, vejo o texto do Zizek, escrito nos momentos do acontecimentos na Ucrânia, de um jeito diferente. Está acontecendo na Ucrânia quase a mesma coisa que está acontecendo na Síria. A classe rica da Europa e Estados Unidos está mantendo mercenários (militares pagos) que estão despojando a Ucrânia, estão espoliando a Ucrânia. Além de jogar a população contra o Putin (Praça Maidan) os mercenários (militares pagos, inclusive brasileiros) maltratam, violentam o povo ucraniano. Se você não pode ajudar a Ucrânia, por favor, não colabore com a desgraça do povo ucraniano.
    Eu não concordo em nada com que Zizek escreveu. A única coisa que a Europa tem de bom são os seus teóricos que a Europa nunca seguiu. Penso que falta a opinião do povo que trabalha na Europa, falta ouvir o trabalhador europeu. Falta trabalhador no que a gente vê na Europa.

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