A cor mais visível
Por Ruy Braga.
Aqueles com mais de trinta anos certamente vão se lembrar: o final da década de 1980 e o início dos anos 1990 foram marcados por uma combinação explosiva de descontrole inflacionário, recessão econômica, crise política e progressos da mobilização popular. O colapso do modelo de desenvolvimento apoiado na substituição de importações promoveu um clima de economia de guerra no Brasil onde famílias trabalhadoras eram obrigadas a estocar comida em casa por conta da incerteza dos preços e da indisponibilidade dos meios de subsistência nos mercados.
A convulsão social era tamanha que o resultado do primeiro turno da eleição presidencial de 1989 conduziu dois candidatos periféricos em relação ao sistema político da época ao escrutínio final: Fernando Collor de Melo e Luiz Inácio Lula da Silva. A política econômica recessiva adotada por Collor para combater a inflação e o escândalo de corrupção que atingiu seu governo explicam em parte sua impopularidade durante o processo do impeachment. Neste contexto, as greves transformaram-se em regra: bancários, funcionários públicos, petroleiros e metalúrgicos, entre tantas outras categorias, mobilizaram-se para defender seus salários e seus empregos contra a inflação, a recessão e a carestia.
Pois, em 2012, conforme o Sistema de Acompanhamento de Greves do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (SAG-DIEESE), os trabalhadores brasileiros protagonizaram uma onda grevista inferior apenas àquela dos anos 1989 e 1990. O curioso é que, ao contrário da década de 1980, o país não passa por um período de descontrole inflacionário. Além disso, a estrutura social, apesar da relativa desaceleração no ritmo do crescimento do PIB, continua gerando, em um ritmo inferior, é verdade, empregos formais. O escândalo político da compra da refinaria texana de Pasadena pela Petrobras vai, sem dúvidas, arranhar a popularidade da presidente Dilma Rousseff, mas dificilmente será capaz de, isoladamente, colocar em risco sua reeleição.
Com as Jornadas de Junho do ano passado, é muito provável que a onda grevista que percorre o país nos últimos anos tenha alcançado um novo recorde histórico. Caso esta expectativa seja confirmada pelos números, o país terá deixado para trás o declínio grevista das últimas duas décadas e o movimento sindical readquirido seu protagonismo político popular. De fato, desde 2008 a curva grevista não cessa de subir no país. Em várias capitais, as greves bancárias tornaram-se rotineiras. Professores, funcionários públicos, metalúrgicos, operários da construção civil, motoristas e cobradores reconciliaram-se decididamente com a mobilização sindical. Se não passamos por uma crise econômica e estamos longe de uma crise política, como explicar então a renovação do apetite grevista dos trabalhadores brasileiros?
Uma mirada nas reivindicações grevistas da esfera privada em 2012 talvez ajude a entendermos melhor essa mudança no comportamento político dos subalternos. Segundo dados colhidos pelo DIEESE, 42,3% das reivindicações das 330 greves pesquisadas na indústria de transformação diziam respeito ao Programa de Participação nos Lucros e Resultados (PLR), algo que claramente aponta para uma atitude mais ofensiva dos trabalhadores em suas campanhas salariais. Com o mercado de trabalho ainda aquecido, os operários sentem-se mais confortáveis em exigir uma fatia maior do bolo.
Apesar disto, reivindicações tipicamente defensivas, isto é, demandas que buscam simplesmente conservar direitos conquistados contra os ataques patronais, também aparecem nas pautas dos grevistas: reajuste do tíquete alimentação (37,6%), assistência médica (19,4%), atraso salarial (15,8%) e depósito do FGTS (10,3%) destacam-se. Estes são sinais de alerta que apontam para a deterioração do meio ambiente empresarial, anunciando certa turbulência econômica mais adiante.
No setor da economia que mais cresceu nos últimos vinte anos, isto é, os serviços, as demandas defensivas superaram, de longe, as reivindicações ofensivas, denotando uma nítida degradação das condições de consumo da força de trabalho. Das 123 greves consideradas, nada menos do que 43,1% apresentavam o reajuste do tíquete alimentação como principal reivindicação. Na sequência, temos o atraso de salário (34,1%), a assistência médica (19,5%), o transporte (16,3%), as condições de trabalho (11,4%) e, finalmente, a PLR (10,6%).
Em suma, na indústria de transformação, sindicalmente mais organizada e onde a força de trabalho é mais qualificada, os ganhos salariais são mais salientes e as negociações coletivas têm trazido alguns bons resultados aos operários, prevalecendo uma dinâmica discretamente redistributiva. Entre 2008 e 2012, os reajustes salariais, em comparação com o INPC-IBGE, garantiram aumentos reais aos trabalhadores em 85,6% dos casos na média, alcançando o patamar histórico de 94,6% em 2012. Mesmo levando em consideração a desaceleração desta tendência verificada entre os meses de janeiro e abril de 2013, quando 86,2% das unidades de negociação alcançaram reajustes salariais acima da inflação, ainda assim, é possível afirmar que a tendência progressista segue presente nos setores trabalhistas sindicalmente mais organizados no país.
O quadro adquire tonalidades bem mais sombrias se olharmos para o setor de serviços. Acantonando a maior parte da força de trabalho não qualificada e semiqualificada, os serviços privados historicamente apresentam altas taxas de rotatividade, multiplicando empregos em ocupações sub-remuneradas, informais e precarizadas. Trata-se de uma parte da classe trabalhadora que tradicionalmente experimenta inúmeras dificuldades para se organizar sindicalmente. Além disso, quando existem, os sindicatos do setor são pouco atuantes.
Isso tudo serve apenas para destacar a importância da greve iniciada no dia 1º de março pelos garis da cidade do Rio de Janeiro. Diante da intransigência patronal, da insensibilidade da prefeitura e do imobilismo sindical, os trabalhadores da limpeza urbana automobilizaram-se a fim de lutar, além do reajuste do tíquete alimentação (R$ 12,00), pelo aumento de seus parcos ordenados (R$ 800,00). Após oito dias de greve, uma vitória histórica: o governo municipal aceitou reajustar os salários para R$ 1.100,00 e o tíquete alimentação para R$ 20,00.
É difícil imaginar um grupo mais precarizado de trabalhadores. Karl Marx criou uma categoria para analisar esta parte da classe trabalhadora: a população “estagnada”. Ou seja, aquele grupo que, a um passo do pauperismo, encontra-se inserido em condições tão degradantes de trabalho que sua reprodução social decai para níveis subnormais. Pois bem, quais as chances desses trabalhadores atropelarem um sindicato governista, enfrentarem ameaças de demissão, resistirem à repressão policial, conquistarem a simpatia popular e derrotarem um governo municipal tão poderoso quanto o da cidade do Rio de Janeiro?
Além da coragem pessoal e da disposição combativa demonstradas pelos garis, sua engenhosidade foi decisiva para a vitória do movimento. Instintivamente, os trabalhadores da limpeza urbana construíram o que poderíamos chamar de “política simbólica do trabalho”.[1] Como superar obstáculos tão poderosos à automobilização? Apenas tornando público um problema tratado como se fosse de domínio privado os subalternos podem reequilibrar minimamente a balança.
Durante a mais importante festa popular brasileira e justamente na cidade do Carnaval – quando o mundo todo está admirando a folia carioca –, o lixo acumulou-se nas ruas, lembrando a todos a importância desses homens e mulheres “invisíveis”.[2] Isso sem mencionar as assembleias grevistas realizadas em locais públicos. A greve tornou-se um incontornável assunto de domínio público, retirando o manto da invisibilidade social que cobria este grupo.
O povo do Rio de Janeiro assistiu, então, a formação de uma gigantesca onda laranja, a cor usada por um grupo de homens e mulheres que, até então, passava despercebido pela paisagem urbana. Curiosa contradição: por razões de segurança, os garis vestem-se com a cor mais visível. Ainda assim, raramente eram notados. Diz-se que a cor laranja é associada à euforia. Além disso, no espectro luminoso, ela está entre o amarelo, cor associada à apatia, e o vermelho, a cor sanguínea associada à revolução. Depois do Carnaval deste ano, alguém duvida que as lições trazidas por esta greve irão libertar muitos outros trabalhadores precarizados do cárcere da apatia política e da invisibilidade social?
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[1] Para mais detalhes, ver Jennifer Jihie Chun, Organizing at the Margins, Ithaca, Cornell University Press, 2009.
[2] Para mais detalhes, ver Fernando Braga da Costa, Homens invisíveis: Relato de uma humilhação social, São Paulo, Globo, 2004.
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Debate de lançamento de A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, de Ruy Braga, com André Singer, Chico de Oliveira, Ricardo Musse e o autor. Recomendamos também o artigo “Sob a sombra do precariado”, escrito por Ruy Braga para o livro coletivo Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, ambos publicados pela Boitempo em 2013.
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O QUE RESTA DO GOLPE DE 1964
Confira o especial de 50 anos do golpe no Blog da Boitempo, com artigos, eventos e lançamentos refletindo sobre os legados da ditadura para o Brasil contemporâneo, aqui.
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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
Muito bom, por, entre outras razões, colocar no centro do debate a luta política pelo aumento das capacidades de se custear a reprodução da força de trabalho, comprometidas em razão da Estado estar cada vez mais comprometido com a criação de uma “ambiência favorável ao mundo dos negócios” (leia-se, com a acumulação do capital) em detrimento das necessidades das classes populares…
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