A revolução burguesa no Brasil
Por Ricardo Musse.
Em 1974, em meio à ditadura e dez anos após o golpe militar, Florestan Fernandes publicou A revolução burguesa no Brasil. Recebido à época como uma tentativa de explicação das origens e fundamentos do Estado autoritário, o livro tornou-se, com o decorrer do tempo, um dos clássicos da sociologia histórica brasileira, uma linhagem que possui seus momentos altos em Casa-grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda e Os donos do poder (1958), de Raymundo Faoro.
Florestan emprega o conceito de “revolução burguesa” como “tipo ideal”, isto é, como princípio heurístico e fio investigativo da origem, natureza e desdobramentos do capitalismo no Brasil. Não se trata de um estudo empírico ou mesmo de comparar as vicissitudes do processo brasileiro com os modelos de revolução francês, inglês ou norte-americano.
A ausência de uma sucessão de acontecimentos de impacto, de uma revolução propriamente dita, não impediu o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, mas ditou-lhe um ritmo próprio e uma condição particular. A idéia de revolução burguesa presta-se assim como uma luva para determinar as etapas do processo e, sobretudo, para compreender a modalidade de capitalismo predominante no país.
O livro foi redigido em momentos distintos: as duas partes iniciais (“As Origens da Revolução Burguesa” e “A Formação da Ordem Social Competitiva”) em 1966, e, a terceira parte (“Revolução Burguesa e Capitalismo Dependente”), em 1974. Esse último ensaio complementa os demais blocos, avançando o acompanhamento histórico anterior – que se detinha na época da abolição da escravatura – até o presente. Mas traz também alterações relevantes no que tange à atribuição de sentido ao processo histórico.
Os ensaios de 1966 seguem a periodização tradicional. A Independência abre caminho para a emergência da sociabilidade burguesa – seja como tipo de personalidade ou como formação social –, bloqueada até então pela conjugação de estatuto colonial, escravismo e grande lavoura exportadora. O simples rompimento com a condição colonial, a autonomia política engendra uma “situação nacional” que desenvolve o comércio e a vida urbana, alicerça o Estado e prepara a modernização.
A manutenção do sistema escravista, no entanto, polariza o país entre uma estrutura heteronômica (cujo protótipo é a grande lavoura de exportação) e uma dinâmica autonomizante (centrada no mercado interno). Socialmente, os agentes burgueses, em simbiose com o quadro vigente, organizam-se antes como estamento do que como classe, uma situação que só será rompida com o surgimento do imigrante e do fazendeiro do café na fronteira agrícola.
A introdução do trabalho assalariado e a consolidação da “ordem econômica competitiva”, no final do século XIX, não liberaram completamente as potencialidades da racionalidade burguesa. Antes promoveram a acomodação de formas econômicas opostas, gerando uma sociedade híbrida e uma formação social, o “capitalismo dependente”, marcada pela coexistência e interconexão do arcaico e do moderno.
No último ensaio, redigido em 1974, o conceito de “capitalismo dependente” passa a ser determinado pela associação da burguesia com o capital internacional. Com isso, altera-se o peso da dinâmica do sistema capitalista mundial e a própria periodização, marcada pela emergência e expansão de três tipos de capitalismo: o moderno (1808-1860), o competitivo (1860-1950) e o monopolista (1950-…).
A revolução burguesa teria conduzido o Brasil, portanto, à transformação capitalista, mas não à esperada revolução nacional e democrática. Na ausência de uma ruptura enfática com o passado, este cobra seu preço a cada momento do processo, em geral na chave de uma conciliação que se apresenta como negação ou neutralização da reforma. A monopolização do Estado pela burguesia – tanto econômica, como social e política – estaria na raiz do modelo autocrático, da “democracia restrita” que marca o século XX brasileiro.
Seria um erro grave, no entanto, atribuir a esse diagnóstico alguma forma de determinismo. O duplo caráter dos conceitos, as contradições que Florestan detecta a cada passo, em suma, a dialética como método deixa o campo livre para a ação histórica dos agentes e das classes sociais.
O livro A revolução burguesa no Brasil encerra o ciclo de interpretações gerais do país. Mas, forneceu, ao mesmo tempo, as balizas para uma série de estudos pontuais posteriores que abordaram tópicos decisivos como a resistência dos “de baixo” antes e durante a emergência das classes, as alterações do estatuto das nações no sistema-mundo ou as rupturas no padrão de acumulação no capitalismo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005.
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Leia também, sobre Sérgio Buarque de Holanda na coluna de Ricardo Musse, no Blog da Boitempo, “Depois de Raízes do Brasil” e “Entre a história e a crítica literária“. A Boitempo acaba de lançar Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, com ensaios inéditos sobre Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Gilberto Freyre, entre outros.
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O QUE RESTA DO GOLPE DE 1964
Confira o especial de 50 anos do golpe no Blog da Boitempo, com artigos, eventos e lançamentos refletindo sobre os legados da ditadura para o Brasil contemporâneo, aqui.
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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.
Ricardo,
mais uma vez você nos traz excelente síntese de um relevante trabalho. Parabéns!
Liliana
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Obrigado pelo seu excelente texto. Sou muito crítico com relação à “Revolução burguesa no Brasil” pela sua densidade e pouca “amizade” com o leitor (não passei das 1as 50 pags), mas o 2º parag. do seu texto lembrou-me outra coisa de que não terei (inconscientemente) gostado: a ausência de referências históricas concretas. Isso parece-me um problema. Tanto quanto sei de Weber, o tipo-ideal poderá ser um «princípio heurístico e fio investigativo» apenas na medida em que serve de comparativo a situações históricas concretas (por exemplo – «até que ponto na Europa do Sul houve “espírito do capitalismo?»). Para mim, esse é o grande problema do livro de Fernandes – a ausência da concretização da capacidade geradora dos tipos ideais para olhar a “realidade” e a inexistência de uma realidade empírica a que Fernandes se refira (onde estão eventos, pessoas, estatísticas, citações de outros autores para corroborar afirmações?) e que sirva de base para a construção dos tipos-ideiais (que como defende Weber, são exageros da realidade – baseando-se portanto em alguma realidade).
Isto permite que o livro de Fernandes se intitule “A revolução…” mesmo (agora nas suas palavras, Ricardo) na “ausência de uma sucessão de acontecimentos de impacto, de uma revolução propriamente dita”. Revolução que não é revolução?
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Interessante.
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muito ruim sa poha
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A sinopse é clara, inteligente e profunda. Chega a fazer desconfiar que é melhor (verdadeiramente) do que o próprio livro, cujos méritos são inegáveis. Mas faço um destaque no texto: a “burguesia” brasileira, em dado momento, se associa ao “capital internacional”. Sintomaticamente, não é a burguesia brasileira se associando à burguesia internacional, NEM o capital brasileiro se associando ao capital internacional. A burguesia brasileira é uma burguesia sem capital próprio, sempre oscilando entre ser financiada pelo Estado ou pelo imperialismo. Por isso, não promoveu nem promove a revolução nacional, democrática.
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