Não dá pra esquecer

14.03.25_Mouzar Benedito_golpePor Mouzar Benedito.

Meninos, eu vi! Não foi algo bom de se ver. Aconteceu há 50 anos. Quer dizer, o início foi há 50 anos, o fim (se é que podemos considerar que houve) foi há 29 anos. A coisa durou 31 anos!

Se for fazer uma análise do golpe de 1964, sei que não vou acrescentar nada. Seria uma opinião como muitas outras (e diferente de muitas outras também, mas sem novidades). Então, vou me limitar a relembrar aqueles dias. Eu tinha 17 anos, estudava contabilidade num colégio particular e morava numa pensão.

Vamos ao que interessa (imagino): a visão desse moleque ingênuo e mal informado sobre o que viu no dia do golpe e depois um pouco do que viria a ser a política econômica e social dos que tomaram o poder. Extraí esses textos (mudando um pouquinho) do livro 1968, por aí… Memórias burlescas da ditadura, que publiquei pela Publisher Brasil (editora da revista Fórum, em 2008). Pouca gente leu, então acho que vale.

UM PREÂMBULO

Não que imagine que os leitores precisem de informações tão básicas, mas alguns, quem sabe… No dia 13 de março, Jango fez um comício na Central do Brasil, no Rio, com a presença de cerca de 300 mil pessoas que apoiavam as reformas de base: além da reforma agrária, haveria a reforma urbana (inquilinos poderiam comprar apartamentos em que moravam, e a avaliação do imóvel seria feita pelo governo), educacional (entre outras coisas, as escolas privadas sofreriam limitações), bancária, fiscal e eleitoral (extensão do voto a analfabetos e revisão das bancadas na Câmara Federal, alterando o peso dos estados no Congresso). Outra coisa anunciada no comício foi a proibição da remessa de lucros para o exterior: as multinacionais teriam que aplicar no Brasil os lucros que tinham aqui. E mais: as refinarias de petróleo privadas seriam estatizadas.

Imaginem a reação. A imprensa, a “classe política” dominada pela direita, a igreja conservadora, os fazendeiros, as multinacionais, o governo dos Estados Unidos, os especuladores imobiliários, os comerciantes do ensino… Gente poderosa!

Dia 19 de março veio a primeira resposta a Jango: realizou-se em São Paulo a “Marcha da Família com Deus, pela Liberdade”, organizada pelo deputado direitista Cunha Bueno e pelo padre estadunidense Patrick Peyton, com apoio do governado Adhemar de Barros, da deputada Conceição da Costa Neves (uma mulher muito mal-falada pela imprensa antes disso), de gente como o líder integralista Plínio Salgado (um dos que discursaram), setores da Igreja, a Fiesp e patrões em geral. Eu não tinha nenhuma consciência política, mas estranhei que o diretor do supermercado em que eu trabalhava saiu de seção em seção autorizando os empregados a faltarem para ir à Marcha. Mas tinham que comprovar que foram, ir em bando, com os chefes. Felizmente, mesmo sem saber direito o que era, não fui.

Cerca de 500 mil pessoas participaram da Marcha, no centro da cidade, segundo a imprensa. Um lembrete: depois, as mulheres que participaram desse espetáculo passaram a ser chamadas de marchadeiras. Muitas se arrependeram, quando começaram a perder empregos e ver parentes perseguidos. Zé Ketti chegou a fazer um samba gozando, que tinha o refrão “Marchou com Deus pela democracia / agora chia, agora chia”, mas ele nunca veio a público, pois foi censurado.

O DIA DO GOLPE, NO SUPERMERCADO

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Cultura inútil: sabe qual foi o primeiro supermercado da América Latina? Muita gente se engana, principalmente os mais velhos do tempo do Peg-Pag, pensam que foi esta rede, cujo nome virou sinônimo de supermercado na década de 1960.

A resposta para esta pergunta é: o Sirva-se. Em 1954, me parece, criado pelo empresário Mário Simonsen, que era dono da Panair do Brasil (empresa de aviação de ótima qualidade, com muitos voos para o exterior) e depois da TV Excelsior de São Paulo (na época, a de maior audiência). A primeira loja do Sirva-se existe até hoje, só que com o nome de Pão de Açúcar. Fica na rua da Consolação, pertinho da avenida Paulista, em São Paulo. A segunda loja, aberta uns anos depois, também existe com o nome Pão de Açúcar, fica na alameda Gabriel Monteiro da Silva, no Jardim Paulistano, também em São Paulo. Foi durante muito tempo a maior loja de supermercado em todo o Brasil, e considerada um modelo.

Mário Simonsen ficou contra o golpe militar e sofreu uma baita pressão econômica e fiscal, com isso fechou a Panair, perdeu a concessão da TV Excelsior, que depois virou TV Manchete e hoje é a Rede TV!. As duas lojas do Sirva-se e mais uma em construção foram vendidas ao Pão de Açúcar, em 1965.

No dia 31 de março de 1964 eu trabalhava na loja do Jardim Paulistano, e me diverti. Eu era menor de idade, ganhava menos que o salário mínimo e mal conseguia pagar a pensão e o colégio (isso mesmo: colégio pago), mesmo fazendo um montão de horas extras, então não lia jornais, só via as manchetes nas bancas. Não tinha dinheiro. Por isso, estava mal informado e não tinha uma noção certa do que acontecia. Ouvi no rádio o governador de Minas, Magalhães Pinto, esbravejando contra João Goulart, e me parecia mais uma briga entre os governadores de Minas, inicialmente, e depois os do Rio e de São Paulo, contra o governo federal. Só fiquei sabendo que era algo diferente disso depois de conversar com alguns trabalhadores já com alguma consciência política.

Mas a minha diversão, no dia do golpe, era ver o desespero dos ricos frequentadores do supermercado. Com medo de uma revolução de verdade, com batalhas nas ruas e o comércio fechado, todos queriam estocar o máximo possível de comida e outros produtos. Correram em massa para o supermercado. Não cabia todo mundo, deixaram entrar um monte de gente e fecharam as portas, e formou-se uma fila enorme do lado de fora, controlada por seguranças. Quando saía um freguês, deixavam entrar outro. E assim foi o dia inteiro, até acabar tudo que havia nos estoques.

O pessoal passava pegando tudo que havia nas prateleiras, de grãos a latarias, papel higiênico, velas, fósforos… tudo mesmo. Os repositores vinham do depósito com carrinhos cheios de mercadorias que não chegavam nem a pôr nas prateleiras, os fregueses se apossavam dos produtos logo que eles entravam na loja.

Outro lado da minha diversão: o diretor, homem autoritário, sério, mudou de papel nesse dia: virou empacotador. Os meninos empacotadores estavam sobrecarregados e o jeito foi reforçar o serviço com gente do escritório, inclusive o diretor. Detalhe: as pessoas davam gorjeta ao empacotador, inclusive a ele, que aceitava tudo. Era pão-duro.

No dia seguinte, 1o de abril, não havia nada para vender no supermercado, e nada no estoque para repor. Aí veio a notícia de que o golpe estava consumado: João Goulart preferiu fugir para o Uruguai a encarar os golpistas. E fez-se de novo uma fila na porta do supermercado, mas desta vez querendo devolver mercadorias compradas em excesso, o que não foi aceito.

BOB FIELDS

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Agora, vou lembrar de um personagem que não remete a nada que possa ter algo a ver com o humor que encarei as coisas antes: o ministro do Planejamento no governo Castello Branco era Roberto Campos, mais conhecido como Bob Fields, porque era um gringófilo total. Era ele quem mandava na economia.

Logo iniciou um processo de concentração de capitais, de perseguição às pequenas empresas, forçando a se “associarem” a outras maiores, de preferência estrangeiras. Na prática o que se propunha era que elas fossem vendidas às empresas de grande capital. Empresas que tentavam resistir sofriam um assédio fiscal terrível. E assim foram sumindo as pequenas empresas que davam empregos. Até as cachaças boas se acabaram porque, segundo Bob Fields, pequeno alambique não pagava impostos. Então, fechou um monte, deixando só grandes empresas que produziam cachaça em larga escala, com um processo industrial em que era impossível produzir coisa que preste.

Mas o pior mesmo foi o desemprego que ele causou, já que as empresas que compravam as menores demitiam quase todo mundo e não substituíam os demitidos, apenas incorporavam seus serviços aos de outros trabalhadores não demitidos. Toda fusão de empresas gera demissão.

Até começar isso, ninguém que quisesse trabalhar ficava desempregado em São Paulo. Os jornais tinham cadernos enormes de oferta de empregos. Eu mesmo cheguei em São Paulo numa noite de segunda-feira, passei na terça para conhecer um pouco do bairro em que moraria (Pinheiros) e do centro, procurei emprego na quarta e comecei a trabalhar na quinta. E isso não significava que eu tinha sorte ou era qualificado. Tinha patrão que pedia aos empregados que trouxessem conterrâneos para trabalhar em suas empresas, porque não conseguia arrumar os empregados que precisava.

Era um tempo em que, nas blitze em algum lugar de São Paulo, a polícia cercava o local e ia pedindo a carteira profissional de quem estava ali. Quem fosse maior de idade e não tivesse emprego registrado, ia em cana por vadiagem. Eu não era registrado, mas era “de menor” e tinha carteira de estudante, o que me livrava disso. Mas imagine uma coisa dessas hoje! Mais da metade da população em cana!

Pois é, e chega Bob Fields e sua política pró-grandes capitalistas gringos. Logo foi se tornando difícil arrumar emprego e pouco depois já havia bandos de desempregados na cidade.

Naqueles tempos as pessoas tinham uma formação moral muito rígida e não passava pela cabeça de quase nenhum dos desempregados sair assaltando ou traficando drogas. Quando acabava o dinheiro, iam vendendo seus bens. Em 1966, eu estava trabalhando no centro da cidade e via muita gente tentando vender alianças de casamento, a última coisa de que se desfaziam. Pouco depois, deixei de passar pelo Viaduto do Chá, porque quase todos os dias tinha desempregado pulando dele, se suicidando por desespero e desesperança.

E tem muita gente que louva Roberto Campos…

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O QUE RESTA DO GOLPE DE 1964

Confira o especial de 50 anos do golpe no Blog da Boitempo, com artigos, eventos e lançamentos refletindo sobre os legados da ditadura para o Brasil contemporâneo, aqui.

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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças. 

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