Fazer justiça a Jocasta | Coluna de estréia de Christian Dunker no Blog da Boitempo!

14.03.18_Dunker_Fazer justiça a Jocasta[Œdipe fait ses adieux à Jocaste (Édipo se despede de Jocasta), de Alexandre Cabanel, 1843, óleo sobre tela]

Por Christian Ingo Lenz Dunker.*

Na trilogia trágica de Sófocles (427 a.c.), Jocasta é a esposa e mãe de Édipo. Ela casou-se com Laio em um acordo político, não obstante o rei de Tebas permanecer apaixonado por Crisipo, seu amor de juventude. Esposa exilada do desejo de seu marido, ela recorre a Afrodite e aos venenos mágicos para incitar o encontro sexual que dará luz a Édipo. Diante do presságio que afirma que o fruto mórbido de tal injunção virá a matar seus pais (e não apenas seu pai), Jocasta entrega seu filho unigênito à exposição no monte Citerão. 

Segundo Pausânias, Laio, o coxo, possui outros filhos bastardos, mas é sob este, que lhe dá Jocasta, que recai a maldição. Na maior parte das versões conhecidas sobre a história de Édipo não há menção direta ao fato de que seu nome se traduz por “pés inchados”, mas em As Fenícias, de Eurípedes (411 a.c.), Jocasta rememora o fato de que, na encruzilhada de três caminhos, o cavalo de Laio pisa no pé de Édipo fazendo-o sangrar. Quando a trama avança rumo ao insustentável desfecho as palavras de Jocasta são prudentes:

“Da mãe não temas as núpcias, pois muitos dos mortais em sonhos já com a mãe deitaram.
Mas o homem que a isso importância não dá, leva melhor a vida.”

​Lembrando que o nome “Jocasta” remete àquela que conhece os venenos – e que, entre os gregos, venenos e palavras possuem uma afinidade semântica, pois são ambos pharmakon – esta surge como um paradigma político esquecido pelos séculos de interpretação da tragédia. Jocasta é esta que tenta aplacar a briga entre seus filhos Etéocles e Polinice, na tragédia fraterna pelo poder sobre Tebas. Ela é também a mãe de Antígona de quem pela primeira vez se tem notícia da aparição escrita da palavra “autonomia” em grego.

Em As Rãs de Aristófanes, vemos Jocasta aparecer como uma anciã [“e mais tarde sendo jovem casou-se com uma velha, que ainda por cima era sua mãe – e depois cegou-se”]. No Édipo escrito por Eurípedes Jocasta vive a divisão entre seu irmão Creonte e seu segundo marido Édipo. Firme e solidária, leal e solitária, mesmo quando aparece silenciosa, como no Édipo legado por Ésquilo em Os Sete contra Tebas, Jocasta aparece recorrentemente entre dois personagens em luta, mas também com um desejo decidido e disposta a lutar por seu direito de desafiar o destino.

​Jocasta é a heroína para o horizonte da subjetividade de nossa época. Isso fica claro no monólogo estrelado por Débora Duboc e dirigido por Elias Andreato, em cartaz no Teatro Eva Hertz até 27 de março, quartas e quintas às 21h. Recorrendo a um recurso aparentemente muito simples, Elias monta uma peça transversal com as inserções e aparições que tornam Jocasta, de uma personagem secundária, a protagonista. A história contada do ponto de vista de Jocasta reinventa a tragédia em uma versão surpreendentemente atual. Mãe e amante, resignada e insistente, leal sem deixar de ser desafiadora, Jocasta representa uma perspectiva feminina em um domínio quase exclusivo dos homens: as narrativas de sofrimento.

Não deixa de ser um problema que mesmo a renovação da tragédia na aurora da modernidade, com Shakespeare e Racine, e mesmo as reedições trágicas do século XX como Joyce, Proust, Camus ou Kafka, sempre nos colocaram diante de um mal-estar masculino que decorre do confronto heterogêneo com a lei e com a intrusão de um objeto que se mostra estrangeiro em relação a ela. Pois Jocasta, assim recriada, nos ensina que é possível sofrer sem que esta experiência nos remeta, primariamente, à transgressão, à afronta ou à iniquidade da lei.  

Jocasta padece de outra forma. Para ela nem tudo é crime e castigo ou perda e restituição. Ela vive a tensão silenciosa da dissolução de autenticidade sobre seus próprios gestos, do exílio da unidade de seu corpo, da incongruência dos desejos aos quais seu próprio desejo está referido. E é este aspecto que se encontra muito bem representado tanto no trabalho com a corporeidade, quanto na movimentação de cenário da montagem proposta por Elias Andreato. Uma maneira de sofrer que não está para além ou para aquém da lei, mas apenas que não faz de sua obediência ou desobediência o seu motor narrativo. A mudança de foco, a história contada desde um ponto de vista feminino, por um personagem subordinado ao qual se destina finalmente voz e ação não poderia ser mais feliz para pensarmos no tipo de pathos que esta tragédia procura fazer a catarse.

Se na versão Édipo-cêntrica a purificação dos afetos passa pela exclusão do elemento impuro, parricida e incestuoso, para além dos muros da cidade, junto com a peste que ele mesmo trouxe sem saber, quando colocamos nosso olhar no ponto de vista de Jocasta, trata-se de acolher o impuro e a partir dele repensar a unidade da família, da polis e no limite da própria lei. Se a leitura tradicional da tragédia de Édipo conduz a uma interpretação baseada na reintegração da unidade, o ponto de vista de Jocasta nos faz pensar em uma catarse desintegrativa, na qual o fragmento disperso é capaz de desfazer a identidade do todo.

O ato de ultrapassar (hubris) tanto as leis dos homens quanto as leis dos deuses aparece então como um desafio até então despercebido através dos séculos. Se a maldição contra Jocasta e Laio era de que “seria sua sorte morrer às mãos de um filho, que lhe dera de nascer de mim e dele”, ao enforcar-se sob o próprio leito, Jocasta contraria o destino imposto pelos deuses. Afinal seu suicídio implica estabelecer como fato que não foi seu filho quem a matou. Isso confirma seu destino trágico, alcançado na medida em que ela dele se afasta.

Fazer justiça a Jocasta é reconhecer que sua tragédia não é apenas um capítulo colateral do conflito de seu marido, de seu amante, de seu tio ou de seus filhos. Fazer justiça a Jocasta é reconhecer nela a valorização do laço com o outro, como desdobramento e metonímia de uma experiência comum. Para além da lei particular pela qual ela faz inscrever seus interesses, é todo o sistema de relações que ela pretende pôr em primeiro plano, nas diferentes expressões de seu desejo. Jocasta quer gozar para além de sua maternidade, de sua feminilidade. Daí sua radical contemporaneidade.

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Jocasta, monólogo dirigido por Elias Andreato e estrelado por Débora Duboc está em cartaz só até a semana que vem, dia 27 de março. O espetáculo acontece às quartas e quintas, às 21h no Teatro Eva Herz na Av. Paulista, 2073, no 1º piso do Conjunto Nacional. Ingresso: R$ 40,00

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Confira a aula Žižek e a psicanálise de Christian Dunker ministrada no “Curso de introdução à obra de Slavoj Žižek” do Seminário Internacional Marx: a criação destruidora, que trouxe, entre outros, David Harvey e o filósofo esloveno ao Brasil:

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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano, fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP, autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

2 comentários em Fazer justiça a Jocasta | Coluna de estréia de Christian Dunker no Blog da Boitempo!

  1. marcia ferreira // 19/03/2014 às 4:41 pm // Responder

    Muito bom, Christian, Jocasta me remeteu inevitavelmente à Joe, a ninfomaníaca do Lars Von Trier. Tuas linhas finais têm a mesma essência que Lars quando fala da trajetória corajosa e trágica da sua protagonista. Adorei.

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  2. Eu gostei muito da leitura feita da peça, mas fico me perguntando sobre a necessidade dessa linguagem tão pedante. Esse academicismo pode ser tolerável num texto acadêmico, mas, ao ser reproduzido em um blog, só dá sustentação às críticas de que a academia não sabe dialogar com os demais. Reproduz relações de poder e impede que haja efeito da palavra sobre aqueles que mais precisam.

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