Polêmica e escracho

14.03.14_Emir Sader_Polêmica e escrachoPor Emir Sader.

Até um certo momento um pensador de direita era um cara recatado, conservador também no estilo, que escrevia há séculos no Estadão, que ninguém lia, só seus pares, que se referiam a ele como um pináculo do pensamento liberal.

Depois começou a entrar de moda outro tipo de pensador de direita. Talvez tenha começado ainda no processo de transição daquela ditadura a esta democracia. Talvez tenha tido origem quando um intelectual carioca, talvez já num estado etílico avançado, tenha pronunciado o que se tornaria um chavão do desbunde:

– A mim, ninguém me patrulha.

Pronto, estava inventado o álibi para qualquer artista, escritor, ou qualquer um que se achasse isso, dizer que dizia o que ele pensava, que não tinha que se nortear por nenhuma “linha partidária” – o que quer que isso significasse.

Afinal, ficaram tanto tempo reivindicando na ditadura o direito de cada um dizer o que pensava, não ia ser agora que a ditadura já tinha pouco poder para fazer isso que viria um partido qualquer dizer o que era correto dizer e o que não era.

Pronto, estava inventado, com o patrulhamento, o escracho. Se podia dizer qualquer coisa, criticar qualquer um sobre qualquer coisa. Começava a surgir o “politicamente correto”, o chato do militante que passava recolhendo assinaturas já nem se sabia mais contra o que ou se era a favor de alguma coisa – algum lugar distante invadido por um tal de imperialismo americano, algum militante torturado na Bessarábia, alguma exposição de arte proibida em algum lugar remoto.

Democracia, pro Stanislaw, era torcer pro Vasco – com camiseta e tudo – no meio da torcida do Mengo, no Maraca lotado. Ou era passar a mão na bunda do guarda.

Agora, não. Agora era não apenas cantar o Virudum com uma letra escrota. Não apenas escrever no Pasquim ofensas ao general de plantão. Era atacar os próprios ícones da esquerda. Ser iconoclasta, dizer que o Marx era o responsável pelo Lenin, que por sua vez era responsável pelo Stalin, que por sua vez era responsável por todos os descaminhos da esquerda e da humanidade.

Quem primeiro personificou o escracho foi o Paulo Francis, com a autoridade de quem tinha sido um bom comentarista internacional e havia estado no Pasquim, bem ou mal. Foi justamente pros “States” e se embeveceu com tudo aquilo, com a contrapartida imediata de que tudo isto aqui era uma merda. E praticou o deboche, o estagio mais alto – o desbunde.

Já não havia mais nada sagrado. Os vietnamitas queriam derrotar os EUA para impor um regime totalitário, haviam cometidos massacres, tanto quanto os norteamericanos.

Cuba, claro se tinha tornado uma ditadura, Fidel um ditador, o Che um falso humanista, cruel como todos os comunistas.

Da apologia do capitalismo, do mercado, Francis passou rapidamente ao racismo, atacando de maneira odiosa ao Vicentinho e à Benedita. Finalmente, terminou com um processo da Petrobras, por uma das tantas calúnias proferidas por ele, que o teria levado à cadeia e à quebra econômica, quando faleceu.

Vieram outros, que tentaram trilhar o mesmo caminho e fracassaram ainda mais. Porque Francis queria se tornar comentarista da mídia norteamericana e nunca conseguiu. Os que o seguiram tiveram menos projeção ainda. Jabor, Mainardi e cia bela, forma caricatura do Paulo Francis, tiveram curta projeção e foram relegados à amargura dos perdedores.

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SITE 50 Anos Ditadura C

Começa hoje o seminário “Legados da ditadura que moldaram o Brasil contemporâneo”, do Centro Acadêmico de Filosofia da USP, com apoio da Boitempo. Até o dia 3 de abril, serão realizadas projeções de filmes e debates com nomes como Paulo Arantes, Edson Teles, Osvaldo Coggiola, Lincoln Secco, Fábio Venturini, Ivan Seixas, Tatiana Merlino, Larissa Bombardi, Maria Rago, Rubens Machado, Rossana Foglia, Thiago Mendonça, entre outros.

Seis anos após o ciclo de debates que deu origem ao livro O que resta da ditadura: a exceção brasileira, organizado por Vladimir Safatle e Edson Teles, o evento marca o lançamento do livro Ditadura: o que resta da transição?, organizado por Milton Pinheiro, também pela coleção Estado de Sítio da Boitempo, e com ensaios de João Quartim de Moraes, Anita Prestes, Lincoln Secco, Décio Saes, Marco Aurélio Santana, entre outros.

Confira a programação completa e saiba mais sobre o evento aqui.

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As armas da crítica: antologia do pensamento de esquerda (os clássicos: Marx, Engels, Lenin, Trotski, Rosa Luxemburgo e Gramsci), organizado por Emir Sader e Ivana Jinkings, já está disponível por apenas R$18 na Gato Sabido, Livraria da Travessa, iba e muitas outras!

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Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quartas.

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