A classe média fora do lugar
Por Flávio Aguiar.
Visitar o Brasil – desde que moro na Alemanha, e já lá se vão sete anos – é sempre muito instrutivo e original.
Atualmente o Brasil é o único país no mundo que, indo bem melhor do que antes, incomoda muita gente – assim como aquele elefante da conçoneta infantil.
Muita gente – um certo Brasil – está exasperada com a melhora. Com o que se chama seja lá como for: ‘nova classe média’, ‘inchaço da classe média’, além dos correlatos mais sofisticados, como ‘economia superaquecida’, ‘bolha de consumo’, indo até ‘o mal que o pleno emprego faz ao país’, aumentando salários e portanto o famigerado ‘custo Brasil’. Que bem faria ao país os pobres voltarem a ser simplesmente pobres sem outro futuro que não o de serem eternamente pobres!
É sabido que o Estado – em qualquer lugar do mundo (até nos finados regimes comunistas) – tem uma dupla função acoplada: assegurar direitos e administrar privilégios. Acontece que historicamente no Brasil o primeiro pólo desta bipolaridade de humor foi muito dismilinguido, enquanto o segundo foi a chave de ouro do soneto social brasileiro. Algumas exceções pontificaram, é verdade: as leis trabalhistas de Vargas, o desenvolvimentismo dos anos 50/começo de 60, entre uns poucos outros. E, é claro, os últimos dez anos, os tais que agora exasperam muita gente.
Em resumo, o Brasil não foi feito para muita gente. Pelo menos um certo Brasil. Vejam só: quanto mais empregos há, mais gente precisa se deslocar de casa para o trabalho, e vice-versa. Quanto mais estudantes há, mais gente ainda precisa se deslocar entre a casa e a escola ou universidade. O resultado é que os ônibus lotam; como o transporte público (ao contrário, por exemplo, de grande parte das cidades europeias) é densamente privatizado, os preços das pessagens tendem a subir, enquanto as frotas de delapidam a olhos vistos, o metrô de S. Paulo ameaça parar e a dar ‘pitis’, etc.
Mais: como há mais dinheiro disponível, mais gente compra carros. Mas as cidades brasileiras não foram feitas para a circulação de tantos carros! Não defendo o carro, defendo o transporte coletivo. Mas durante décadas ter um carro era um privilégio de consumo. Não me esqueço do bate-boca que presenciei, vinte ou trinta anos atrás, entre uma jovem bem jovem e um porteiro de galeria, na rua Augusta, que fechara prematuramente (para ela) um dos portões de entrada/saída. A dita jovem enchia a boca: ‘Eu’ – assim com maiúscula – ‘sou uma consumidora!’. Ser consumidor(a) era um privilégio: agora não é mais (e vem mais gente por aí). Isto exaspera os antigos consumidores, que vêem seus ‘direitos’ – “privilégios” – ameaçados, desde a vaga na faculdade para os pimpolhos até as filas de aeroportos – outro capítulo da exasperação geral.
O exemplo mais estapafúrdio desta exasperação encontrei num artigo do Zero Hora de minha cidade natal. O articulista reclamava que as ‘novas classes médias’ (uso o termo livremente, deixo o debate sobre ele pro Marcio Pochmann, a Marilena Chauí, o Guido Mantega e outros mais entendidos do que eu nestes assuntos) não sabiam aplaudir nos espetáculos a que iam. Aplaudiam de pé qualquer coisa, quando na verdade a boa formação manda que se aplauda de pé apenas o excepcional (quem sabe o que é excepcional é apenas, claro, o autor do artigo). Era o aplauso fora do lugar. Pior: este aplauso destrambelhado contagiava os artistas, que apluadiam juntos com o público quando, segundo ainda o autor do artigo, deveriam fazer uma comedida reverência. A futilidade besta do tema lembrou-me de outro artigo, lido há cinquenta anos ou mais, no Correio do Povo da mesma minha cidade, em que o autor (outro), visitando a então União Soviética, lamentava ver pessoas em mangas de camisa – operários, talvez, aaargh! – nos teatros de Moscou, na platéia, nas frisas, nos camarotes. O autor lembrava com lágrimas nostálgicas nas entrelinhas dos tempos faustosos em que aqueles assentos eram ocupados apenas pelas figuras excelsas da aristocracia moscovita e de alhures.
Mutatis mutandis, o tema do recente aplauso é da mesma jaça. Ou laia.
Mas há mais. Em pri meiro lugar, não esqueçamos que este clima de exasperação é centuplicado pela velha mídia, exasperada ela mesma por contar, para contrabalanço do atual panorama político, com um candidato bola murcha que tem de encher continuamente, um outro que faz alianças com desde o verde musgo da pré-candidata sem candidatura até o roxo cardinalício (vermelho jamais) dos ex-PFL e o vago ‘homem da toga preta’, mistura de Cacareco (para quem lembrar) com Jânio Quadros (tembém para quem lembrar) e Collor de Mello (para quem não esquece).
Em segundo lugar porque a exasperação contamina também a esquerda, pelo menos uma certa esquerda, já que a melhora que se verifica não é exatamente a de seus sonhos – ou devaneios. Para uma parte desta, o Brasil e o mundo estào à beira de um cataclisma revolucionário, e quem atrapalha a erupção pronta para eclodir é a dupla formada pelo nordestino e a mineira-gaúcha de plantão. E chovem artigos – no Brasil e no exterior – falando, por exemplo, dos ‘limites’ da política de transferência de renda, e tanto quanto a direita, da ‘prisão’, da ‘dependência do Estado’, da ‘falta de uma porta de saída’ dos programas de assistência social, etc. São até incapazes de ver – tanto quanto a direita – que a porta de saída será, muito provavelmente, cruzada pela próxima geração porque, como apontam estudos já conspícuos da ONU, a miséria é algo que tende a se reproduzir.
Lamentavelmente, a indigência mental também. Pelo menos quem entre nela tende a não ver porta de saída. Porque se há coisa difícil neste mundo é reconhecer o próprio equívoco.
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Leia também “Libertemos os ricos e a extrema riqueza!“, na coluna de Flávio Aguiar, no Blog da Boitempo.
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A Bíblia segundo Beliel: da criação ao fim do mundo, como tudo de fato aconteceu e vai acontecer, de Flávio Aguiar, já está disponível em versão eletrônica (ebook) por metade do preço do livro impresso aqui. Confira abaixo um capítulo do livro recitado pelo próprio autor:
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
O que me exaspera não é a “nova classe média”. O que me entristece é ver que as falcatruas e os maus feitos da velha e da nova politicagem continuam a emperrar o país e impedir o nosso progresso. Libertem o país dos políticos desonestos, do caixa 2 das campanhas eleitorais, das licitações fraudadas, dos desperdícios do dinheiro público, das mordomias exageradas… Com certeza vai sobrar recursos para melhorar a tal mobilidade urbana, a saúde, a educação e tudo o mais. E fazer com que mais pessoal ascendam socialmente.
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queria mesmo era a poesia para ficar bem mais interessante
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