Não ignorando o “babaca”!

14.03.11_Souto Maior FelipãoPor Jorge Luiz Souto Maior.

Podia simplesmente ignorar o Sr. Luiz Felipe Scolari, vulgo, Felipão, mas não é possível fazê-lo, nem tanto por ser ele o atual técnico da seleção brasileira ou por levar na bagagem reconhecidos méritos profissionais, mas em razão de sua recente declaração no sentido de que a melhor solução para o racismo é ignorar os “babacas” que cometem atos racistas, não adiantando nada puni-los.

Ora, se tratamos de racismo estamos falando de um crime, considerado pela ordem jurídica como inafiançável e imprescritível, dada a sua gravidade em termos de agressão ao ser humano, individualmente considerado, e à humanidade, por lhe impor sério retrocesso histórico.

Assim, com muita boa vontade se poderia dizer que “babaca” é o Felipão, pois os racistas são, em concreto, criminosos. E, querendo o atual técnico da seleção brasileira, ou não, os que cometem tal crime devem ser punidos. Aliás, com maior rigor, ao minimizar o sofrimento alheio, ao ser complacente com o criminoso, pregando a ausência de sua punição, o Sr. Luiz Felipe pode ser visto como cúmplice de todos os novos crimes de racismo que venham a ser cometidos no futebol brasileiro, ou fora dele, vez que teria, de certo modo, incentivado a conduta.

Do ponto de vista específico do tipo penal, quando alguém se dirige a outra pessoa de forma determinada, como se dá nas partidas de futebol, entende-se que o crime cometido é não é de racismo e sim de “injúria racial”, sendo que para a punição deste crime, que é prescritível e afiançável, há a necessidade do ofendido formular queixa. As práticas racistas no futebol, com esse autêntico eufemismo jurídico, possuem grande chance de não ser punidas, pois há uma pressão histórica, socialmente institucionalizada, para que o ofendido não aja. Nestes termos, torna-se ainda mais grave a declaração do técnico da seleção, sobretudo em época de convocação, vez que reforça a lógica que procura impedir que os jogadores, cidadãos vitimados por esse crime, exerçam o seu direito de exigir a punição do agressor.

É oportuno consignar também que já passou da hora da organização do futebol brasileiro e dos poderes instituídos se posicionarem de forma mais responsável e concreta a respeito, para superar, de vez, esse absurdo. De fato e de direito, as partidas em que a “injúria racial” for verificada devem ser imediatamente cessadas, independente de qualquer tipo de transtorno, pessoal ou econômico, que tal decisão possa causar, chegando-se a isso com, ou sem, manifestação do ofendido. Além disso, é necessário que as autoridades auxiliem, com o uso de todos os recursos que possuam, na apuração da autoria do crime, para a necessária e inevitável punição individualizada do criminoso, estendendo-se os efeitos da punição, no campo esportivo e financeiro (perda de pontos, exclusão do campeonato e multas) ao clube a quem se identifique o torcedor criminoso, sendo essencial, por fim, superar essa postura cínica do direito que enquadra o fato como “injúria racial”, já que isso, na prática, culmina com a impunidade, passando a tratá-lo como realmente é: racismo. Deve-se pensar, ademais, na produção de resultados análogos com relação a manifestações homofóbicas, como a que se verificou no último Corinthians x São Paulo.

Para que se inverta essa situação, na circunstância atual o primeiro passo é não ignorar o “babaca” do Felipão, refutando, com veemência, sua manifestação, que foi, no mínimo, irresponsável.

Sei que ao fazer esse registro, estarei eliminando todas as últimas esperanças que pudesse nutrir em torno de uma convocação para a Copa, mesmo após dois golaços na pelada do final de semana. De todo modo, é infinitamente melhor expressar isso e não ir à Copa, do que ir para a Copa e, buscando impedir que qualquer “inconveniente” desvie o foco da competição e de seus negócios, pregar o silêncio, o conformismo e a tolerância diante de atos racistas.

São Paulo, 10 de março de 2014.

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Jorge Luiz Souto Maior é um dos autores do livro Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, para o qual colaborou com o texto “A vez do direito social e da descriminalização dos movimentos sociais”. Trata-se do primeiro livro impresso inspirado nos megaprotestos conhecidos como as “Jornadas de Junho”, com textos de autores nacionais e internacionais como Slavoj Žižek, David Harvey, Mike Davis, Raquel Rolnik, Ermínia Maricato, Ruy Braga, Carlos Vainer, entre outros.

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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e de um dos artigos da coletânea Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.

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