A memória de Otacílio
Por Roniwalter Jatobá.
Chegava ao fim mais um dia de trabalho do tapeceiro Otacílio Lopes, numa fábrica no Brás. Era uma terça-feira de maio de 1975. Depois de marcar o ponto na chapeira cheia de cartões enfileirados, despedira-se como todo dia do vigia – seu João –, e caminhara pela rua Cavalheiro de volta para casa. Embora pensasse no bar da esquina, rabo-de-galo bem reforçado, bilhar apostando cerveja, papo camarada com o parceiro da loja ao lado, tinha pressa. O trem das sete, Deus me livre, saía lotado. Corria agora para pegar o das seis e quinze, o de costume, porque podia pelo menos encostar-se ao vidro da janela e, livre do frege de gente, acompanhar o entardecer caindo pelos lados de Guarulhos.
Todos os dias, Otacílio via com orgulho a metrópole que crescia. Para ele, as casas erguidas à beira da estrada de ferro, depois de Ermelino Matarazzo, eram pobres. Sua moradia no Jardim Helena, construída num terreno seis por trinta, já tomava um jeito decente com portão e um quarto feito de encomenda para os dois filhos já grandinhos.
Desceu na estação de São Miguel, tinha mais uma condução até perto do rio Tietê. No costume, atravessou sobre os trilhos, olhando para um lado e para outro, e correu. Nunca, em sua vida, vinha correndo tanto.
Já próximo ao ponto de ônibus, a trombada. Um homem empurrou seu ombro esquerdo e, com esperteza, levou um volume carregado no bolso traseiro, enrolado num plástico, e que trazia ainda um pouco de dinheiro dentro da carteira profissional.
– Safado! – gritou ao se sentir despojado de seus preciosos pertences.
Refeito do susto, passou à perseguição.
– Pega, ladrão!
Em frente ao antigo cine Lapenna, já cruzando a pista para chegar à praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, Otacílio se atrapalha com um automóvel e cai sobre o meio-fio. Por alguns segundos, fica imóvel, mãos apoiadas sobre a calçada quente. Levanta. Bate a poeira grudada na calça e olha ao redor cheio de vergonha.
– Pega, ladrão! – alguém grita ao longe.
O destino rondava a praça, hoje também conhecida como “Praça do Forró”. O malandro havia sumido de vista e Otacílio perdia momentaneamente a sua memória. Onde estava naquele momento? Não lembrava nada de trabalho, nada do tempo em que chegou em São Paulo havia vinte anos, nada. Apenas sentia longe, bem longe, uma pequena luz que brilhava na névoa do passado.
Sentindo ainda uma pequena dor na fronte, caminhou um pouco pela calçada e sentou-se num banco em frente à igreja matriz. Então, entoou mentalmente uma canção, mais ou menos assim:
“Fui no mar buscar mangas,
coisa que no mar não tem.
Fiquei toda molhadinha
das ondas que vão e vêm.”
Era uma voz de mulher que cantava aquela música, não ele. Talvez a voz de sua avó paterna, quando passeava agarrado ao seu braço ao longo de uma praia deserta, sob um céu azul, num tempo que talvez nunca tenha existido – tão irreal ele a via naquelas dunas molhadas pelas ondas.
Otacílio vê tudo muito embaçado, nevoento, agora parado sob o sol, pés molhados pela maré. A avó puxa levemente seu braço e os dois seguem pela praia deixando a marca dos passos na areia. Chegam a um grande rochedo, o mar bate bravio nas pedras. Distante, além da arrebentação, a avó aponta uma gigantesca tartaruga marinha, que nadava com a carapaça à flor-d’água.
Otacílio lembra ainda do gosto da carne de tartagura, que lembra a bovina. Recorda que só provou um pedaço, uma vez. Quando ouviu pela primeira vez os relatos da morte de uma tartaruga, não quis mais saber de querer outro pedaço, por mais que se apresentasse apetitoso. Na sua infância criou uma simpatia especial pelo grande e manso animal antidiluviano.
Ele sabe: se caçadores assassinam o animal, todas as fibras do seu corpo lutam com desespero contra a morte. Um dia, viu um coração de tartaruga ser arrancado, atirado na areia e continuar pulsando por muito tempo. Quando parava, o pescador (ou caçador) o tocava com o pé e ele recomeçava a pulsar. A vida estava profundamente adormecida na tartaruga, muito mais do que em outro animal. A natureza deu à pacífica tartaruga mil vidas para que ela pudesse sobreviver em meio a tantos perigos, entre eles a rede e o bicho homem.
Horas depois dessas lembranças, Otacílio sente o frio do banco de pedra e descobre que deveria estar em casa, na sua cama, porque o outro dia era uma quarta-feira, e se por acaso chegasse atrasado perderia o domingo remunerado.
Apalpa o bolso, tudo em perfeita ordem, inclusive o pouco de dinheiro para a condução. Sonho? Fica em pé lembrando-se, com alegria, de tudo da sua vida. Pensa ainda que precisava correr agora mais ligeiro, pois sua mulher e os filhos não entenderiam o motivo de tanto atraso. Ao cruzar a antiga São Paulo-Rio, acredita que pensar muito encurta o tempo, mas gente sem memória só apanha na vida.
***
Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, Minas Gerais, em 1949. Vive em São Paulo desde 1970. Entre outros livros, publicou Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura 1976); Crônicas da vida operária (finalista do Prêmio Casa das Américas 1978); O pavão misterioso (finalista do Prêmio Jabuti 2000); Paragens (edidado pela Boitempo, finalista do Prêmio Jabuti 2005); O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e Contos Antológicos (2009). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
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