Um espectro ronda a USP: a democracia

14.02.20_Souto Maior_Um espectro ronda a USPPor Jorge Luiz Souto Maior.* 

* Professor Associado 2, da Faculdade de Direito
(subcidadão: nem elegível, nem eleitor, por enquanto…)

Pediram-me para falar “sobre a conjuntura da USP, principalmente no que tange os acontecimentos do ano passado que giraram em torno das deliberações do CO [Conselho Universitário] do dia 01/10, a greve de estudantes e a ocupação, a questão da contaminação no campus da EACH que dura até hoje. Além disso, […] dar perspectivas de luta dentro da universidade para 2014.”

Parece-me importante, no entanto, no contexto atual, em que se inicia nova gestão administrativa na Universidade, evidenciar, sobretudo para os estudantes que estão chegando à Universidade – e são muito bem-vindos – que o processo pela construção de uma efetiva democracia na USP não apenas está em curso há muitos anos como já se consolidou de tal forma que é mesmo impossível detê-lo, por mais que forças reacionárias se unam em uma espécie de Santa Aliança para conjurá-lo.

Essa advertência faz-se necessária porque o momento é perigoso. Afinal, pode-se ter uma sensação de conquista pelo mero fato da mudança do Reitor, entendendo-se o anterior como um obstáculo à democratização e vendo-se o atual como um interlocutor favorável à construção democrática.

Ocorre que uma autêntica democracia se constrói pela mobilização popular e no caso de uma universidade pela mobilização ampla, constante e dialética de servidores, estudantes e professores; e não pelas deliberações tomadas em quatro paredes por uma parcela seletiva dessa mesma comunidade, não sendo dependente, pois, de um líder carismático.

O que quero dizer é que o lema “Fora Rodas” (sucessor do “Fora Suely”), até há pouco tempo ecoado, não se tratava, idiossincrasias à parte, de uma questão pessoal, mas sim uma causa relevante para se opor ao procedimento anti-democrático que conduziu Grandino Rodas à Reitoria, assim como para reagir aos propósitos, levados adiante pelas mãos do ex-Reitor, de combate aberto à diretoria do sindicato de servidores, que, com o tempo se alastrou à direção da associação de professores; de defesa aberta à privatização do ensino e da pesquisa; de implementação de uma política ostensiva da repressão e do medo, chegando ao ponto da formalização de um convênio com a Política Militar para a fiscalização da conduta de estudantes e servidores; de abertura de inquéritos administrativos para punição de estudantes, servidores e professores que manifestassem contrariedade às posições assumidas como prioritárias para a Universidade; e da reiterada “judicialização” dos conflitos, que advinham exatamente da repressão e do caráter anti-democrático da gestão e das estruturas administrativas da instituição.

O “Fora Rodas” se atingiu pela via natural do fim do mandato e a chegada de um novo Reitor, que demonstra possuir qualidades democráticas, pode ser um conforto, mas como a institucionalização da democracia não é uma questão pessoal, apenas essa mudança benéfica de personagens não pode ser entendida como a superação dos problemas da Universidade de São Paulo, sem negar, é claro, seus enormes méritos nas áreas de ensino e pesquisa, provenientes, sobretudo, da qualidade de alunos e professores.

Fato é que se faz necessário continuar mobilizado, pois foi essa atuação que freou os arroubos autoritários do antigo Reitor e apenas ela é que será capaz de denunciar o quanto as estruturas da Universidade ainda são anti-democráticas, impulsionando a superação dessa realidade. Lembre-se que a mobilização, percorrida ao longo desses anos, mantendo, de certo modo, uma tradição da inteligência produzida na Universidade de São Paulo no sentido da luta pela democracia, gerou grande benefício à comunidade uspiana no que tange à formulação de práticas de ação coletiva, de elaboração de estratégias de organização, com base na consolidação de um conhecimento acerca da situação da Universidade e sua relação com a sociedade, além de favorecer ao desenvolvimento de valores humanos fundamentais, como a confiança, a solidariedade e a amizade, proporcionando a consagração de um sentido de cidadania que acabou por promover o envolvimento de parcela considerável de estudantes, servidores e professores com várias causas sociais, o que se viu refletir, inclusive, nas manifestações de junho do ano passado. E os estudantes que organizam o presente ato advertem: “Imagina a USP na Copa!”

Várias foram, portanto, as conquistas provenientes da produção do conhecimento e da consciência, mas há de se prosseguir atuando, precisamente por conta do momento extremante crítico pelo qual passa a sociedade brasileira, que parece estar à beira da barbárie, na medida em que lhe falta um parâmetro de racionalidade para enfrentar uma espécie de crise de consciência. Vide os fatos relatados na mídia de pessoas amarradas em poste; de pessoas se posicionando abertamente contra os Direitos Humanos; e de pessoas tentando ridicularizar outras pessoas em razão da forma de se vestir… Vide, igualmente, a postura ostensivamente agressiva aos Direitos Humanos e à cidadania promovida pelos próprios governos, destacando-se, por exemplo, os favorecimentos a setores econômicos determinados para a realização da Copa com injeção de enorme quantidade de verba pública, “cessão” do espaço público para o comércio restrito a entidades autorizadas pela FIFA, e o oferecimento de mão-de-obra semi-escrava, para a realização dos jogos, por intermédio da legalização do pretenso “trabalho voluntário”, com obrigações, mas sem direitos, que deve atingir cerca de 33.000 pessoas…

Neste instante cumpre à Universidade, ao menos, demonstrar a relevância dos preceitos democráticos e da efetividade da ordem constitucional e dos Direitos Humanos, embasados no princípio da justiça social como forma de incentivo ao agir solidário, sendo, pois, profundamente inoportuna a difusão de uma ideia de que a Universidade não deve ser democrática por ser acadêmica. Ora, a USP é uma Universidade pública e está gerida, coercitivamente, pelas normas do Estado Democrático de Direito e, ademais, não é possível que em um momento como este a sociedade volte os olhos para a Universidade e a perceba professando e promovendo lógicas autoritárias, além de um conhecimento direcionado ao individualismo (e consequentemente arredio à mobilização coletiva), pautado pelo cumprimento das exigências de mercado, vez que tudo isso apenas incentiva o egoísmo, alimentando a irracionalidade da qual decorre a barbárie.

Para que a Universidade de São Paulo sirva de parâmetro de racionalidade democrática para a sociedade ainda há um grande caminho a percorrer. A começar pela constatação necessária, que não carrega nenhuma conotação pessoal, de que o atual Reitor foi eleito em um processo anti-democrático. É preciso, urgentemente, alterar essa forma de eleição do Reitor da Universidade, como se deve alterar, igualmente, a forma de eleição dos diretores das Unidades, conferindo efetiva voz aos estudantes, aos servidores e ao conjunto de professores, independentemente da qualificação acadêmica.

É preciso que se instaure, com urgência, uma estatuinte, para que a Universidade de São Paulo – cujos regimentos ainda trazem regras da época da ditadura militar – se alinhe à Constituição democrática de 1988, instaurando-se um processo de ampla discussão do próprio papel da universidade no cenário nacional de modo, inclusive, a estabelecer mecanismos que tanto permitam a produção do conhecimento quanto favoreçam ao convívio com as diversidades.

Não é possível fechar os olhos para as tristes realidades que ainda permeiam a USP, como os casos de assédio moral e de assédio sexual; a discriminação com relação às diversidades; os atos de racismo; as práticas machistas; a repressão à difusão de ideologias políticas; a insuficiência de moradias estudantis e o desrespeito ao direito de greve de servidores e estudantes.

É preciso que se resolvam, concreta e urgentemente, os problemas estruturais e jurídicos da USP, como a terceirização; as fundações privadas, que se valem da estrutura material e imaterial da Universidade; o convênio com a PM; e a contaminação na EACH.

É essencial, ainda, tratar das questões relevantes da adoção de cotas raciais; a eliminação dos muros da Universidade; a ampliação do acesso à Universidade, com implementação de vias alternativas ao vestibular, e, sobretudo, a efetiva participação democrática de estudantes, servidores e até representantes de movimentos sociais em todos os órgãos deliberativos da Universidade.

O déficit democrático na Universidade de São Paulo é tão grande que sobressai a desconfiança entre os interlocutores que eventualmente se dispõem a uma negociação em conflitos. No ano passado, por exemplo, na greve dos estudantes, não se chegou a uma solução negociada para o fim da greve porque os estudantes, com toda razão, cumpre dizer, não confiaram que as promessas feitas no instrumento de acordo viessem a ser, posteriormente, de fato cumpridas.

Esse atrofiamento democrático chegou mesmo a impedir uma investigação profunda acerca de possíveis vínculos de forças instaladas na Universidade com o regime ditatorial civil-militar de 1964 a 1985. No ano passado, o então Reitor, por um golpe, rejeitou a instauração de uma Comissão da Verdade no âmbito da universidade cujos membros, conforme abaixo-assinado firmado por cerca de 5.000 pessoas, seriam eleitos por servidores, professores e alunos. Na Faculdade de Direito, a Comissão da Verdade, que havia sido criada naquela unidade, foi extinta, também no ano passado, por uma razão não muito bem explicada e por razão alguma até hoje não foi reativada.

Vem da Faculdade de Direito, aliás, um bom exemplo da falência institucional democrática da qual se vê refém a Universidade de São Paulo. Na última segunda-feira foi realizada a eleição do diretor da unidade e o que se passou deve envergonhar a todos que a integram, pois na Faculdade de Direito, seguindo o que consta do Estatuto da USP, não há um processo eleitoral. A Portaria GDI n. 4/2010 diz apenas quem são os elegíveis, quem são os eleitores e o como se realizam a votação e a apuração. Não há formalização de candidatura. Não há apresentação de programa. Não há debate. Enfim, não há nada. E a eleição ainda se realizou antes do início oficial das aulas, ou seja, sem que sequer a comunidade acadêmica estivesse de volta à escola, produzindo um efeito, assumido como natural, do completo afastamento dos alunos e servidores daquele momento político.

Além disso, os elegíveis são restritos: apenas professores titulares, tendo havido, recentemente, ampliação à nova categoria de professores associados 3, por alteração no Estatuto da USP. Os eleitores são apenas os membros da Congregação e dos Conselhos Departamentais. Em concreto, são eleitores, todos os professores titulares, alguns professores associados e em menor número professores-doutores (total: 101 eleitores num total de 161 professores, sendo 34 titulares, 60 associados e 67 doutores). Os estudantes, por possuírem representação na Congregação e nos Conselhos Departamentais, e por estarem divididos em duas categorias, graduação e pós-graduação, têm 33 votos (22 graduação e 11 pós), em um universo de cerca de 3.500 alunos. Já os servidores, por não integrarem os Conselhos, têm apenas os votos dos representantes na Congregação, quais sejam, 3 votos, de um total de cerca de 180 servidores.

Mas, o mais grave mesmo é o fato de que não se faz necessário debate, candidatura, campanha, ou discussão. Tudo se passa na perspectiva de conversas pessoais, com caráter sigiloso. Não se trata de questionar os méritos do eleito, inegáveis no caso, mas de destacar o desrespeito institucional aos preceitos democráticos, que são essenciais para a explicitação dos problemas específicos da unidade e para a integração de todos os professores, estudantes e servidores ao debate em torno dos melhores encaminhamentos para a unidade, fazendo com que o eleito tenha maiores compromissos com a consciência coletiva produzida. Os alunos e servidores da Faculdade de Direito, aliás, deram bem o seu recado quanto à sua discordância com relação ao procedimento, fazendo com que, em ato de protesto, o atual Diretor tenha sido eleito sem um voto sequer advindo de estudantes e servidores…

O resultado é que agora estão aí um Reitor e, no caso da Faculdade de Direito, um Diretor, eleitos em fórmulas anti-democráticas, tendo que buscar sua legitimidade por atos a serem praticados “a posteriori”, ou seja, após eleitos. Nesta perspectiva é importante que tenham a noção de que embora haja uma falência democrática na Universidade de natureza institucional, no âmbito da vivência universitária há uma enorme experiência em termos de atuação democrática, fruto de inúmeras lutas desenvolvidas nos últimos anos, unindo, mesmo com divergências, as representações de servidores, estudantes (que possuem várias formas de compreensão da realidade e de participação) e professores. Assim, deverão não apenas se disponibilizar ao diálogo, sendo, de fato, fundamental que deixem para traz as táticas repressivas e opressivas, como também não criar resistências ao implemento da causa que é praticamente unanimidade nesses segmentos que é a da maior participação democrática, anunciando-se como certo que terão sido os últimos eleitos pela fórmula atual.

A institucionalização da democracia, reflexo do movimento já consolidado no âmbito universitário, como dito inicialmente, é um passo inexorável e urgente. Um passo que, ademais, deve ser dado com franqueza e seriedade, até porque a resistência à democratização da USP já causou enorme sacrifício e sofrimento pessoal a muitos estudantes, alunos, servidores e professores, com processos, punições, expulsões e perda do emprego, tornando primordial, pois, a criação de uma estatuinte para a instauração de um diálogo real do qual sobrevenha a elaboração de um projeto de universidade inclusive no que tange à sua interligação por completo com a realidade social atual, atendida sua peculiaridade de se constituir uma instituição pública, ou seja, que a todos pertence, e à criação de mecanismos para superação dos problemas acima destacados, em respeito à ordem jurídica Constitucional.

Aos que se mantenham em luta para a concretização desse ideal, porque isso é essencial, vale lembrar as palavras de Eduardo Galeano:

“Dos medos nascem as coragens. Os sonhos anunciam outra realidade possível, e os delírios, outra razão. Somos o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas sempre a assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu creio.”

* Manifestação proferida na Semana de Recepção de Calouros da USP, em mesa de abertura (“A USP e o Brasil”) da “Calourada Unificada”, organizada pela Comissão Gestora do DCE-USP, em 19 de fevereiro de 2014.

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Leia também A crise da USP, de Francisco de Oliveira, no Blog da Boitempo.

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Jorge Luiz Souto Maior é um dos autores do livro Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, para o qual colaborou com o texto “A vez do direito social e da descriminalização dos movimentos sociais”. Trata-se do primeiro livro impresso inspirado nos megaprotestos conhecidos como as “Jornadas de Junho”, com textos de autores nacionais e internacionais como Slavoj Žižek, David Harvey, Mike Davis, Raquel Rolnik, Ermínia Maricato, Ruy Braga, Carlos Vainer, entre outros.

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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e de um dos artigos da coletânea Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.

1 comentário em Um espectro ronda a USP: a democracia

  1. candidovolmar // 22/02/2014 às 3:18 pm // Responder

    Ótima reflexão. Mas parece que nem a representação discente nem os professores estão interessados em retirar a USP da barbárie completa: uma aluna da FFLCH foi banida (desligada) de forma absolutamente arbitrária e ilegal; e TODOS SABEM DISSO, desde o Reitor até a Comissão de Ética, mas se recusam a falar sobre a LEGALIDADE da exclusão, bem como da existência de um documento falso, com assinatura falsa da aluna. A existência do Estado de Direito precede a existência do Estado Democrático de Direito.

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