Sobre Sheherazades, Batmans e demônios
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Por Carlos Eduardo Rebuá.
Nas últimas semanas dois episódios ocorridos no Rio de Janeiro não saem dos noticiários, dos papos de botequim, das redes sociais, dos jornais de 0,70 centavos: o adolescente negro assaltante que foi “justiçado” por jovens de classe média no Flamengo, que apanhou e foi algemado nu por uma tranca de bicicleta junto a um poste; e a morte do cinegrafista da Rede Bandeirantes de televisão por um rojão lançado por dois jovens “Black blocs”, na manifestação contra o reajuste das passagens de ônibus.
Trata-se de dois fatos que não guardam semelhança entre si, a não ser pela “odisséica” cobertura midiática, em seu papel costumeiro de juiz, júri e tribunal, conjugados num mesmo corpo institucional. Se em relação ao primeiro episódio vimos distintos setores sociais defenderem o “justiçamento” contra a bandidagem e clamarem pelo exercício da violência por conta do Estado, que nos “desprotege”, em se tratando do segundo caso o que estamos presenciando é a condenação sumária dos jovens envolvidos no ato, antes mesmo de serem apurados os fatos. Cometeram um assassinato e responderão por isso, mas antes mesmo da “fala do especialista” da vídeo-esfera (SEMERARO, 2006, p. 142) analisar as imagens, já estavam sentenciados. Nada de novo no front midiático tupiniquim, que numa primeira mirada, encontrou seus Nardoni e Richthofen da vez e garantiu pauta para os próximos dez dias. Todavia, um segundo olhar sobre o ocorrido mostra que a prisão de Fabio Raposo e Caio Silva de Souza não é apenas mais um julgamento espetacular dos mass media, na acepção debordiana, mas a “revanche” que tanto queria o establishment burguês, “alvejado” pela opinião pública com suas próprias balas de borracha, lançadas à exaustão pela polícia militar em Pinheirinho ou no Junho Rebelde.
O caso do “pelourinho do Flamengo”, onde um negro pobre “pagou” por seu crime ao velho estilo Batman (o herói aristocrata que não mata, mas pune os infratores e redime aquela sociedade corrupta e desigual) em Gotham City, teve seu ápice midiático no comentário autoral de Rachel Sheherazade (SBT Brasil, 04/02/2014), apresentadora do SBT Brasil, que destilou o mais raivoso ódio de classe (assim como fez em relação aos rolezinhos, organizados por “arruaceiros”), ao estilo TFP (Tradição, Família e Propriedade), contra o “marginalzinho de ficha mais suja que pau de galinheiro” e em defesa dos cidadãos “de bem”, lançando a campanha “Adote um bandido” para os militantes de direitos humanos e a campanha “Legítima defesa coletiva” para as “vítimas de bem” da indefesa sociedade civil. O vídeo já tem quase um milhão de visualizações do YouTube (entre entusiastas e críticos), mas talvez seu “direito de resposta”, no mesmo SBT Jornal de dois dias depois (06/02), exponha de forma mais crua o conservadorismo atroz de nossa sociedade, quando a jornalista – apresentada por seu colega de programa como uma mulher cristã e mãe – diz que é uma ferrenha crítica da violência, que está ali todo dia “batendo na violência”, defendendo as “pessoas de bem” que estão “abandonadas à própria sorte” e “desesperadas”. Quem ouve as palavras de Sheherazade – que em Mil e uma noites sobrevive após ludibriar o sultão por noites seguidas – sem saber do que se trata pode achar que se refere a algum jovem da periferia de uma grande cidade, provavelmente negro, provavelmente sem perspectivas. Só que não! O programa termina dizendo que o que deve prevalecer sempre é a liberdade de expressão. É o cinismo como forma de ideologia na manutenção da lei dos “de cima”. O direito de resposta na verdade é o endosso do agressor, que não apenas reitera o que disse como zomba daqueles que o criticaram.
“O modo mais destacado dessa ‘mentira sob o disfarce da verdade’, nos dias atuais,é o cinismo: com desconcertante franqueza, ‘admite-se tudo'”, mas esse pleno reconhecimento de nossos interesses não nos impede, de maneira alguma, de persegui-los; a fórmula do cinismo já não é o clássico enunciado marxista do ‘eles não sabem, mas é o que estão fazendo’; agora, é ‘eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas fazem assim mesmo’.” (ŽIŽEK, 1996, p. 13).
Por sua vez, o episódio da morte do cinegrafista da Bandeirantes representa mais uma cruzada midiática contra setores radicalizados da sociedade civil, que desde junho do ano passado trouxeram para a cena política pautas sociais que, em outros momentos, passavam ao largo dos noticiários televisivos, com destaque para o preço das passagens dos transportes que deveriam ser públicos. A morte de Santiago de Andrade foi a revanche esperada e ensaiada há meses pelo mainstream da mídia brasileira, ávida por “desmascarar” os Black blocs, tratando-os como uma organização homogênea, institucionalizada, porém controlada de fora. Após o rojão ferir fatalmente o funcionário da Band, foi rápida a construção de um consenso que costurava entre si: asuposta associação dos envolvidos com o deputado estadual do PSOL-RJ, Marcelo Freixo, opositor ferrenho do governador Sérgio Cabral, do prefeito Eduardo Paes e da grande mídia; a “ficha suja” de Fabio e Caio, com passagens pela polícia e participação em outras manifestações (pasteurizando de forma magistral todas as pessoas que ousam se manifestar de forma mais incisiva, como por exemplo aquelas que ocupam prédios públicos ou enfrentam o cerco policial); a defesa de que a nação brasileira e os brasileiros são pacíficos e que a violência de alguns é esporádica, injustificável e intolerável, forjando o “mito da não-violência” (CHAUÍ, 2006, p. 125), que apaga a “realidade das divisões sociais e da luta de classes, reduzindo sua emergência à situação de meros momentos enlouquecidos da sociedade” (Ibidem, p. 134).
O nó final dessa costura ideológica é a recuperação da chamada Teoria dos Dois Demônios, adaptada ao contexto atual. Muito conhecida de sociedades latino-americanas que passaram por ditaduras civil-militares no século passado, notadamente a Argentina, tal concepção representa um “malabarismo retórico” (Vladimir Safatle, “Dois demônios”) de quem crê que esquerdae direita cometeram “excessos” e que, por isso, deixar as coisas no passado seria o melhor a ser feito. De um lado, um demônio popular, terrorista de esquerda que despertou outro demônio, militar, terrorista de Estado. Em meio a isso tudo estaria a atemorizada sociedade civil, inocente e ingênua, que assiste impassível ao drama da violência (IRAMAIN, 2009-2010, p. 18).
Num contexto atual, como de praxe, a mídia encena o acontecimento, forjando e manipulando simulacros do real (CHAUÍ, 2006, p. 18), onde o fato cede lugar à sua versão, sintonizada com os interesses dos grupos dominantes do país. Os Dois Demônios retornam com vigor, sob nova roupagem (não deixando coisas no passado), com os manifestantes – que “precipitam as coisas” – e o Estado, agora “democrático”, nos dois polos opostos, e a frágil e não-violenta sociedade civil no meio do tiroteio. Apaga-se dos noticiários a questão da violência como recurso sempre à mão do chamado Estado de Direito – Estado de Exceção para os subalternos e paradigma de governo dominante na política contemporânea (AGAMBEN, 2004, p. 13) –, que salvaguarda a propriedade privada burguesa e mantém a desigualdade como pressuposto
Na atual cena política brasileira Sheherazades, Batmans e Demônios estão à solta, em meio à planejada resposta-revanche dos grandes meios de comunicação à Junho de 2013, colocada na rua no momento oportuno, tendo como alvos personagens reais e lutas reais, que na “mídia-esfera” aparecem como simulacros, mas no mundo concreto são ameaças reais à hegemonia que a mídia representa.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. São Paulo: Editora 34, 2008.
CHAUÍ, Marilena. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
IRAMAIN, Demetrio. Una historia de las Madres de Plaza de Mayo (suplemento coleccionable). Revista Sueños Compartidos. Fundación Madres de Plaza de Mayo. 2009-2010.
ŽIŽEK, Slavoj. O Espectro da Ideologia. In.:ŽIŽEK, Slavoj. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
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Carlos Eduardo Rebuá é Historiador, doutorando em Educação pela UFF e professor da UNIGRANRIO. Dele, leia também, Hereges marxistas: similaridades e permanências, sobre Walter Benjamin e Antonio Gramsci.
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As pessoas querem protestar, mas mostrar a cara ninguém quer, né? Tem que botar a cara na mídia!
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