Miss Pernambuco
Por Urariano Mota.
Há quatro anos anotei e recupero a seguir.
Vera Lúcia Torres Bezerra é senhora com uma idade que a educação e a gentileza não devem perguntar. Em uma discreta graça, que a maldade chamaria coquete, de passagem ela conta que foi Miss quando possuía apenas 16 anos. Pela implacável aritmética, 2010 -1963 = 47. Quarenta e sete mais dezesseis, sessenta e três. Mas isso é segredo, ela fala com uma graça maior, porque mocinhas menores de idade não poderiam participar do concurso. Então, pelas normas legais, se ela foi Miss aos dezoito, atravessa hoje os sessenta e cinco anos. Mas a Lei e a cruel Aritmética de nada sabem. Entendam, não é bem que as pessoas, as mulheres em particular, e Vera Lúcia em especial, não sintam nem sofram quarenta e sete mais dezesseis anos. Sentem, percebem, sofrem, se desesperam ou se acomodam a esse inexorável. Não quero ser, nem poderia em razão de natural deficiência, um Catão, um copiador de procedimentos de Plutarco, a invocar ética dura e pesada moral. Mas pessoas como Vera Lúcia penetram em nossa consciência como uma antecipação do que seremos. O que nos salva ou nos salvará quando tudo for perdido?
Ela me fala com o rosto oculto em óculos escuros, embora seja noite no Recife. Enquanto fala, enquanto expõe, ela vai desarmando, ela vai desmontando os mais severos e sólidos preconceitos. O primeiro deles é o de que as misses devem ser ignorantes, quando não se resumem à mais simples burrice. Ela desmonta isso não bem por um currículo exterior, de provas e títulos. Por esses documentos, sabemos que ela é graduada em economia, com pós-graduação na Fundação Getúlio Vargas. Por eles Vera Lúcia conhece a língua francesa, e somente nisso ela já ultrapassaria a marca das Misses que dizem ter lido O pequeno príncipe, mas são incapazes de saber quem foi Exupéry. Mas não é por isso que a vemos inteligente. A sua inteligência se revela em documentos não escritos, porque se pronuncia por um dom raro de observação, quase diria, se isso não me fizesse mergulhar em outro preconceito, ela percebe coisas dignas do olhar de um artista.
Vera Lúcia Torres foi Miss Pernambuco no mesmo ano em que a Miss Brasil foi Ieda Maria Vargas, em 1963. Ieda Vargas, mais adiante, conquistou o título de Miss Universo. Mas isso ainda é currículo, o bom vem depois. Quando perguntada sobre a mudança do padrão de beleza da mulher, do seu tempo até hoje, Vera Lúcia responde, melhor dizendo, observa: “Elas agora são mais altas, de fisionomia mais graúda”, e explica o que é esse graúda:
“boca grande, olhos grandes. No meu tempo eu notava que a beleza era angelical, mais delicada. E agora é mais a mulher graúda, magra demais. Eu não sou a favor de gordura, mas eu acho que tem de ter as curvas, porque se não fica igual ao corpo de um homem. Além das pernas bonitas, tem que ter, no meu conceito, uma cinturinha e uma curva. Isso não quer dizer um quadril grande, exagerado”.
E ouçam agora as medidas, no que parece um número de ouro da beleza do Brasil em 1963:
“O busto tinha que ter a medida dos quadris. A cintura igual às coxas… Gisele Bündchen jamais seria miss. Na minha época se exigia muito postura. E a de Gisele deixa muito a desejar, a maneira dela se sentar, de se dirigir, de falar. Hoje se exige apenas que seja alta, magra. Com as pernas finas, altas, as modelos mais parecem equilibristas….”.
– O que é a maneira de Gisele se sentar?
– Masculinizada. Perna aberta, uma lá, outra cá….
E vem então uma observação que se perdeu com o tempo, mas não a seus olhos que me fitam por trás das lentes escuras:
– Na minha época, as manequins, modelos que desfilavam, não podiam rebolar, bambolear o quadril. Havia uma exigência, uma ordem de caminhar roçando os pulsos no quadril, que era para não menear as cadeiras.
A esta altura, como se fizesse um só comentário, como uma continuação que tem a ver com o modo de caminhar, a senhora Vera Lúcia observa e traz uma notícia rara, até hoje não escrita em qualquer imprensa:
– A Miss Universo de meu concurso, a Ieda Maria Vargas, não conseguia juntar… ela só tirava retrato de lado, porque de frente não juntava as pernas.
– Por quê? As pernas dela eram muito volumosas?
– Não, porque ela tinha um joelho grosso em cima, e aqui embaixo era um buraco. Ela só tirava foto de lado, pode ver.
– Como assim?, eu não estou entendendo. A Miss Universo da época não tirava retrato de frente, por quê? As coxas dela eram muito grossas, e por isso não ficavam juntas?
– Era uma abertura, com as pernas em arco. Era um desvio nas pernas, cangalha, entende? Então ela, sabida, posava de lado. E maquiava, porque tinha varizes. Ela passava uma base, um creme. A base escura disfarçava as varizes.
Está certo, são observações de mulher concorrente ao mesmo título, poderia ser dito. Mas o que diríamos de um pintor que observa com olhos argutos uma pintura de outro? Ou de um escritor que percebe as fraturas da obra de um romancista? Diríamos que são observações fruto da inveja? Ou mais precisamente que são notações de alma treinada naquele ofício? O mais sensato é ouvi-la, principalmente quando ela fala algo como:
– A Miss Universo possuía um rosto muito bonito, a boca, os olhos cor de mel… mas não tinha cultura nenhuma. Ele chegou aqui em Pernambuco e saudou, “povo peruano”….
– Trocou o Recife por Lima. Muito interessante. Isso foi no rádio ou na televisão?
– Foi quando ela voltou, como Miss Universo. Ali mesmo no aeroporto, com todos os repórteres, fotógrafos, microfones.
Então eu lhe falo com a voz mais traiçoeira que um entrevistador pode ter, com um tom suave, pleno de intimidade e blandícia:
– Na sua época, ser Miss era o mesmo que ser burra, não era?
Vera Lúcia Torres não se engana com o tom nem se ofende com o conteúdo. E como prova de que tal qualidade não se aplica a ela, responde:
– Diziam que a única leitura de Miss era O pequeno príncipe. É claro que, como eu era muito jovem na época, não poderia ter a cultura que adquiri depois. Mas eu já gostava de ler. Os meus amigos eram todos universitários, de medicina, de direito, teatro. Eu ia muito a teatro, exposições, porque eu gostava.
E o entrevistador, traiçoeiro:
– Exatamente. Tem toda a razão.
– Mas a mulher do meu tempo era preparada para esperar o príncipe encantado, e se fosse Miss, o sonho era casar com um grande empresário, um homem rico, porque era Miss…
– A senhora casou com um empresário? – o traiçoeiro avança.
– Não.
– Nem com um homem rico?
– Não. Em primeiro lugar tinha que existir amor.
A esta altura, a sua filha, um jovem bonita de 24 anos, entra na entrevista para completar a frase que a mãe não quis dizer:
– Ela casou com um homem pobre e feio.
– Verdade?
E a filha:
– Era pobre, feio, horrível. E assim, cheio de homem rico e lindo atrás de mãezinha.
Ao que explica a mãe:
– Uma das coisas que eu mais admire no ser humano é a inteligência. E a bondade.
– Verdade?
A esta altura o entrevistador se foi, partiu, porque deixou de ter o domínio, porque foi destruído em seu maquiavelismo. Deixou de conduzir para ser conduzido. Há um capítulo não escrito na vida dos entrevistadores, que reza a sua conquista em razão de um comportamento inesperado. Nesse capítulo, em uma das suas divisões, em algum lugar se inscreve que entrevistadores feios são conquistados por misses que não se casam com grandes empresários. Mesmo que essas misses não mais sejam formosas, mesmo que tenham passado pela curva dos sessenta anos. Ou até mesmo por isso, diria até, com mais razão por se encontrarem nessa idade. Não sei se isso é bem perversão ou uma busca do espírito, só tu, puro espírito. De qualquer forma, uma perversão, que nem precisa dizer que é romântica, porque é do caráter do romântico um semelhante desvio. O fato é que ex-misses como a senhora Vera Lúcia Torres Bezerra possuem um travo, um amargo de ex-combatente, de quem passou pela experiência de guerra. E, no entanto, esse travo é bom. Imagino que isso se dá em razão de ser uma vitória dos valores em que acreditamos, o do valor que é o valor, o da vitória do belo nas condições mais infames. Senhoritas, misses, que em um mundo de corpo-mercadoria em um açougue de carnes, que reagem e vivem como pessoa e gente. E que se casam ao fim com indivíduos cujo maior patrimônio é a qualidade interior. Mas isso não é um conto de fadas, porque vem outra surpresa. Miss Vera Lúcia Torres Bezerra está diante de mim para tentar vender uma carta do poeta Olavo Bilac, que guarda e guardou há muito tempo.
O entrevistador se foi. Miss Vera Lúcia Torres Bezerra nem precisava dizer, como disse, que estudou Economia porque era admiradora de Celso Furtado. Nem mesmo, em um golpe mortal para mim, que esteve ao lado daqueles doidos e perseguidos pela ditadura no Brasil. Derrotado, miro-lhe então os olhos despidos das lentes escuras, e percebo-lhe as rugas, o pescoço, o tecido mole. Mas, coisa estranha, percebo ainda assim que os anos por ela passaram e não alcançaram a sua decadência. Por que esse paradoxo? Talvez porque o espírito, quando sobrevive, suporta melhor o copo que envelhece. Não importa quantos anos se tenham passado, tenho vontade imensa de lhe dizer. E me calo. Por isso escrevo agora, porque os escritores somos muito valentes no silêncio e à distância: Vera Lúcia Torres Bezerra, você ainda é a nossa musa. O tempo passou para todos, Miss Pernambuco 1963.
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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
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