Crônicas de Berlim: Cinema, homossexualidade e solidão
Por Flávio Aguiar.
Anualmente, em fevereiro, Berlim vira a capital internacional do cinema durante dez dias.
A cidade vive e transpira cinema.
A Berlinale – como é chamado o Festival Internacional de Cinema de Berlim, hoje em sua 64ª. Edição – tem um dos modelos deste tipo de evento mais atraente dentre os que conheço.
Há a questão do porte: juntando filmes, seminários, workshops, entrevistas coletivas, etc., o número de atividades vai à casa do quase milhar, se não ultrapassá-la. Neste ano 69 países estão representados, com mais de 250 filmes.
É claro que há o tapete vermelho e o desfile de estrelas entre flashes e spots de iluminação, transmissão das entrevistas em telões na praça Marlene Dietrich, que é o centro nervoso do festival, perto da Potsdammer Platz.
Mas isto é apenas a ponta do iceberg – o teaser, para usar uma linguagem adequada – da Berlinale.
Porque o segredo do Festival é que ele toma a cidade inteira. O Festival ocupa quase todos os cinemas de Berlim, vai para os bairros, chama as escolas, além de gente que vem da Europa inteira e também de outros continentes apenas para conhecer/viver a Berlinale.
Há sessões e mostras especiais para adolescentes e crianças, com júris e prêmios próprios. Além dos filmes que concorrem ao cobiçado Urso de Ouro (melhor filme) e aos Ursos de Prata (melhor ator, fotografia, música, curta, documentário, etc.), há as mostras chamadas de Fórum e de Panorama. A primeira põe em evidência diferentes tendências do cinema contemporâneo, como se fizessem um debate entre si. A segunda faz uma mostra do ‘estado da sétima arte’, digamos. Além disto há retrospectivas, mostras especiais, homenagens, seminários com grandes diretores, cinegrafistas, roteiristas, etc., dirigido a jovens cineastas. Para se inscrever o jovem deve apresentar algum projeto que queira desenvolver para ser aprovado. O Festival financia a vinda dos jovens. Em geral mais de 200, dos cinco continentes, acompanham estes seminários e workshops práticos. Uma curiosidade: pode-se dizer que o inglês é a ‘língua oficial’ da Berlinale. Todos os filmes apresentados – inclusive os alemães – têm legendas em inglês.
O Brasil costuma sair bem no filme. Desta vez tem um filme na competição: Praia do Futuro, dirigido por Karim Aïnouz, com Wagner Moura – que é ‘velho conhecido’ de Berlim desde que foi o protagonista do ‘Urso de Ouro’ Tropa de Elite I, de José Padilha. Tropa de Elite II, também com ele e do mesmo diretor, não concorreu mas foi homenageado em sessão especial. Desta vez Wagner Moura interpreta mais um militar: um salva-vidas do Corpo de Bombeiros de Fortaleza, onde fica a mencionada praia. Ele e um turista alemão (ex-soldado no Afeganistão) cujo amigo morre afogado se apaixonam um pelo outro. Donato (Wagner) vem para Berlim por causa desta paixão, rompendo com a família: duas irmãs, um irmão menor e a mãe. Anos depois, o irmão – já um rapaz crescido – vem para Berlim em busca dele. Os encontros, desencontros e conflitos são inevitáveis.
Não acredito que o filme venha a receber o Urso de Ouro. A fotografia é belíssima, o desempenho dos atores é excelente, mas o roteiro é falho (solto demais). O filme não despertou entusiasmo, embora tenha chamado a atenção pelas ousadas cenas de sexo entre os dois apaixonados. Talvez receba alguma menção por aqueles atributos positivos. A impressão que fica é que Karim (que já fez o excelente Madame Satã, lançado em 2002) quis fazer um filme mais poético do que narrativo, mas afrouxou demasiadamente a corda.
Mais entusiasmo despertou – pelo menos para mim – o filme/documentário de Davi Pretto, da Casa de Cinema de Porto Alegre, chamado Castanha, que não está na competição, mas no Forum. É um documentário com partes de ficção rememorativa sobre a vida do personagem-título, um conhecido travesti das casas noturnas gays da capital gaúcha. Castanha interpreta o próprio papel, e sua mãe, Da. Celina, o seu. O desempenho de ambos é sensacional, sendo que para mim o desta rouba a cena, sendo a primeira vez que faz um trabalho de representação.
A Berlinale é um reconhecido reduto cinematográfico da homossexualidade. Tem até um prêmio especial para filmes que tratem deste tema, o ‘Teddy’. Uma explicação: ‘Teddy’ é o nome que se dá, em inglês e alemão, aos ursinhos de pelúcia das crianças. Mas neste ano o tema ganhou muita relevância e espaço no Festival. São inúmeros os filmes que o abordam, de uma ou de outra maneira. Mas ele veio associado a um outro tema que também está onipresente nos filmes: a solidão, seja no meio urbano ou no rural, uma contra-facção crítica em relação ao individualismo que o estilo de vida promovido em sociedades dominadas pelas crenças supersticiosas nas virtudes universais do culto aos mercados – financeiros ou outros que não aquele Mercado Público que em geral é um centro prazeroso.
Além da abordagem de temas da contemporaneidade a Berlinale é uma ótima oportunidade para se ver filmes que estarão certamente fora deste ‘mercado’. Filmes da Índia (para além dos de Bollywood), Equador (primeira vez em que assisti um filme deste país, Feriado, que também toca no tema da homossexualidade), Uzbequistão, Palestina e etc., e ponha etc. nisto.
Uma oportunidade de ouro para se conhecer cinema – e Berlim. Se não conhece ainda a Berlinale e a capital do cinema em fevereiro, não perca a próxima oportunidade, em fevereiro de 2015.
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A Bíblia segundo Beliel: da criação ao fim do mundo, como tudo de fato aconteceu e vai acontecer, de Flávio Aguiar, já está disponível em versão eletrônica (ebook) por metade do preço do livro impresso aqui. Confira abaixo um capítulo do livro recitado pelo próprio autor:
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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