A dor que não sai no jornal

14.02.04_Urariano Mota_A dor que não sai no jornalPor Urariano Mota.

Faz anos, observei a existência de uma revolta silenciosa, uma surda vingança dos excluídos no Brasil. Na ocasião pude ver que a vingança nada tinha de patológica. Não era nada absurda e nada havia nela que espantasse, ainda que recebêssemos com choque e repulsa os efeitos dos monstros criados. Essa observação me veio de uma notícia de jornal.

Quando houve uma intoxicação geral do Blue Tree Park, em Pernambuco, ninguém perguntou por que os empregados do Hotel não foram também intoxicados. Era e é natural que eles, como animais ou pessoas humanas, não estivessem imunes ao efeito geral. Se eu, empregado, nado com necessidades em meio ao filé, por que dele também não retiro um pedaço? Mas não, não se soube de vítimas entre cozinheiros e garçons. Por quê? A hipótese mais provável era a de que, do cardápio servido, os empregados não tenham comido para matar a fome. Com a minha experiência, digo que certamente provaram, furtaram pequenos, muito pequenos nacos, tão pequenos quanto as suas pessoas. Mas comer, comerem e se envenenarem à farta, não. Isso ficou para os doutores hóspedes.

Entendam. Até hoje, temos visto em restaurantes como as pessoas da nossa classe média tratam a pessoa pequena – gentinha – que lhes serve. Que desprezo! O cidadão de direitos do consumidor não olha para o empregado, para o ser que existe sem qualquer garantia. Dirige-lhe, melhor dizendo, rosna, vocifera o prato escolhido e se mantém raivoso, hostil, perigoso e áspero a qualquer aproximação. Pelas carnes gordas e carranca, tais Pessoas – de P maiúsculo – nos lembram sempre a figura de um buldogue, sem coleira sentado em frente à mesa de um circo. Imaginamos sempre a mágoa que fica em um homem, um subalterno, tratado assim por um cão, o Doutor. O quanto o “inferior” é machucado em uma sociedade de classes.

Menos que imaginamos, às vezes vemos, percebemos, sentimos. Quando vamos comprar frios, queijos, sentimos. E aqui a nossa experiência particular deve ter algo de universal. É flagrante a má vontade com que um empregado ou empregada nos atende, é acintosa a indiferença e dificuldade que ele opõe a qualquer consideração sobre tipo ou maciez do queijo escolhido. “Só tem este”, ou “tem não”, ou “acabou”, ele nos diz, a custo. É grande a pena, a mesquinhez com que corta fatias que, sobrepostas, muito demoram a atingir o peso dos frios que pedimos. Isso em lugar de causar alguma raiva, muito nos envergonha. Porque sabemos que o empregado nos serve o que não poderá comer, a não ser por furtos, por pequenos e miseráveis furtos, como se fosse um mísero e pequeno roedor.

A face do empregado que declara, “Tem não”, “Acabou”, “Só tem este”, guarda um ar de vitória. Esta é a sua melhor hora. Uma feliz compensação do seu desabastecimento.

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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

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