O teatro contemporâneo, segundo Gerd Bornheim

14.01.30_Ricardo Musse_Gerd Bornheim e o teatro contemporâneoPor Ricardo Musse.

Gerd Bornheim dedicou parte considerável de sua obra ao teatro. Publicou três livros (e uma seção em outro) sobre esse assunto, em edições que vieram a lume em intervalos inferiores a dez anos. No entanto, embora o teatro contemporâneo estivesse no centro de suas atenções, raramente se encontra em seus textos referências a peças ou encenações determinadas. Um acompanhamento cuidadoso da cena teatral, no entanto, faz-se visível nas entrelinhas desses volumes. Tudo indica que Bornheim não explicita sua intimidade com o teatro contemporâneo por uma estratégia deliberada. Afinal, ele sempre procurou, desde seus ensaios iniciais nos anos 1960, se dissociar do modelo de crítica teatral predominante no país.

Os mais conhecidos críticos de teatro brasileiros, entre os quais cabe incluir, sem muita controvérsia, Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi, dedicaram-se à crítica cotidiana de peças e encenações, uma tarefa exercida principalmente em jornais e revistas. Esses esforços foram posteriormente desdobrados em histórias do teatro brasileiro, as quais serviam também como uma espécie de anteparo intelectual da crítica pontual. Os modelos de empreendimento crítico de Almeida Prado e Magaldi – entre os quais se destacam os dois órgãos que Décio fundou e dirigiu: a revista Clima e o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo – tinham como paradigma a tradição crítica iniciada na França e na Inglaterra, ao longo do século XVIII. Essa vertente iluminista foi complementada, seguindo o modelo da crítica europeia do século XIX, pela incorporação da vertente romântica. Daí essa conjugação um tanto inusitada, mas quase “naturalizada” por seu largo uso, de crítica cotidiana e panorâmicas histórias nacionais.

A reflexão sobre o teatro de Gerd Bornheim destoa completamente desse figurino. Primeiro, ele nunca busca explicar o teatro por seus condicionamentos nacionais ou por sua inserção em uma determinada tradição local. Segundo, procura apreender o fenômeno teatral a partir de seus problemas estéticos, numa vertente que privilegia suas dimensões filosófica, histórica e formal, desconsiderando ou colocando em segundo plano os condicionamentos psicológicos e sociológicos. Por fim, Bornheim procura compreender a história do teatro a partir dos dilemas e questões enfrentados pela encenação teatral no presente. É a cena contemporânea que permite lhe interpretar o conjunto histórico do teatro, ao contrário da premissa que orienta, em regra, a conformação dos panoramas nacionais.

Nesse sentido, pode-se dizer que sua reflexão adota como ponto de partida a especificidade do teatro contemporâneo. O traço mais característico da cena teatral hoje talvez seja uma visível ausência de unidade formal. Enquanto no teatro elisabetano, por exemplo, havia uma convergência – seja entre dramaturgia, resolução de problemas técnicos e artísticos, e relação do espetáculo com o público; seja entre dramaturgo, diretor, cenógrafo e atores –, atualmente assiste-se a uma pluralidade de experiências, de estilos e de universos justapostos e separados.

Bornheim reconstitui essa passagem, a fragmentação da unidade perdida, seguindo três variantes. Em Páginas de filosofia da arte recorre ao mote hegeliano da morte da arte para destacar a ruptura entre um modelo artístico centrado na “imitação”, que tem como referência última a expressão do poder unificante da divindade, e a arte que nasce com o romantismo, presa à dicotomia sujeito-objeto, bem como às diversas tentativas de superá-la. Brecht, a estética do teatro esmiúça as múltiplas modalidades e sentidos do “distanciamento” brechtiano como formas diferentes de realçar a tensão, nunca mascarada, entre os diversos componentes do espetáculo, entre, por exemplo, o texto dramático, o trabalho dos atores e o efeito sobre o público. Em O sentido e a máscara e em Teatro: A cena dividida, essa transição decorre do esvaziamento da coerência, quase diria unitária, do realismo “fin de siécle”.

Para explicar esse ponto, Bornheim estabelece uma breve reconstrução histórica do realismo. No mundo moderno, o rótulo “realismo” foi reivindicado em diferentes momentos da tradição artística. O realismo ao qual Bornheim alude, no entanto, é a fase realista do teatro no final do século XIX que, por assim dizer, suplanta o naturalismo (essa espécie de “ersatz” da ciência) ao abordar a decadência da classe burguesa. Numa palavra, trata-se sobretudo do realismo de Anton Tchekov e Constantin Stanislavski.

Nesse teatro, substitui-se a ação dramática por uma espécie de pré-ação, confirmando o desaparecimento do herói épico. O primeiro plano passa então a ser ocupado por uma “atmosfera carregada, cinzenta, sombria, de tédio, de decadência”. Bornheim não deixa de carregar nas cores, reduzindo esse momento a um conjunto de peças de salão, desprovidas de horizonte histórico e eivadas por preconceitos positivistas e determinismos cegos.

O aspecto fundamental que destaca nesse teatro realista, porém, reside em sua capacidade de “desenvolver com máxima perfeição o ideal da ilusão cênica”. Afinal, são precisamente os mecanismos que permitem ao palco aspirar ao posto de “substituto exato da realidade” que serão contestados, de múltiplas formas, pelas diversas vertentes do teatro do século XX.

Essa “ruptura” assume, por um lado, a forma de uma revalorização de aspectos esquecidos da tradição teatral que tendem a minar justamente a pretensão de considerar o palco como a verdadeira realidade. O assim chamado “teatro teatral”

“(…) luta por algo que aceita o teatro por aquilo que ele é: teatro. É verdade que os reformadores defendem suas idéias com um ardor nem sempre isento de contradições, com uma radicalidade que se pretende total, mas que descamba às vezes para a utopia; de qualquer forma, o seu denominador comum é o ideal da “reteatralização” do teatro. Todo o trabalho do ator, a utilização dos elementos cênicos e sobretudo a concepção do espetáculo deveriam obedecer a critérios radicalmente novos; critérios que relevariam das exigências específicas da arte teatral, das dimensões propriamente cênicas do teatro” (BORNHEIM, Gerd, O Sentido e a Máscara, p. 16).

Os fundamentos da teoria do ator de Stanislavski também foram abalados nessa “ruptura”. O desenvolvimento de seu método pressupõe uma concepção clássica de homem, um ideal de personalidade humana (cuja base é o modelo do “animal racional” próprio do humanismo ocidental), postos em xeque pelo choque das diversas vanguardas.

A dramaturgia, por sua vez, tampouco escapa a esse processo. O embrião da reforma pode ser detectado no próprio interior do realismo, em certas peças e passagens de Anton Tchekov, Henrik Ibsen, August Strindberg e Bernard Shaw. O manifesto dessa ruptura encontra-se, porém, segundo Bornheim, na obra de Luigi Pirandello, especialmente em Seis personagens à procura de um autor. Só aí propriamente parte-se de forma decidida para a decomposição dos preceitos realistas do teatro, quando “a personagem começa a perder sua própria identidade, perdendo-se na dialética entre ser e parecer”, o que abre caminho para o “anti-realismo” das vanguardas.

Bornheim reconhece que com o romantismo, inicia-se a “crise da cultura ocidental”, a perda dos fundamentos e dos valores que forneciam estabilidade à arte. Acentua-se cada vez mais uma dramaturgia não-aristotélica que tem seu ponto alto, no século XX, em duas vertentes distintas: no teatro de Bertolt Brecht e no assim chamado “teatro do absurdo”, de Eugène Ionesco e Samuel Beckett. Bornheim dedica a maior parte de seus trabalhos sobre teatro à compreensão dessas duas vertentes do anti-aristotelismo contemporâneo. O “teatro do absurdo” é examinado em vários ensaios de O sentido e a máscara, e a estética brechtiana foi objeto de um alentado volume, Brecht, a estética do teatro.

Além de destacar o esvaziamento do teatro “realista” ou o fim da estética da “imitação”, Bornheim procura explicar as tendências da cena contemporânea como resultado do desenvolvimento de uma nova percepção geral, que denomina de “consciência histórica” do teatro. Seu aspecto mais visível assenta-se no fato de que hoje, diferentemente de outras épocas, a totalidade da dramaturgia ocidental (e mesmo parcelas da não-ocidental) passa a fazer parte do repertório do teatro contemporâneo.

Essa ampliação do repertório não se fez sem consequências. A primeira delas foi suscitar aquilo que Bornheim designa como “surto do diretor de cena”. Com essa expressão procura nomear a transformação sofrida pela função do diretor que assume, em nossos dias, a tarefa de operar como princípio de unidade do espetáculo. A encenação pode se pautar ou pela exigência de integral fidelidade histórica ou pela necessidade de atualização histórica (seja pela adaptação ao presente de um tema antigo, seja ao expressar no espetáculo uma problemática moderna por meio da releitura de um texto antigo). Em qualquer um desses casos, em maior ou menor medida, assume-se um novo figurino para o diretor de cena:

“Exige-se do diretor que ele tenha a sua linguagem própria, que ele seja um criador, um artista. De certo modo, e independentemente de sua estética particular, ele se transforma no principal artista do espetáculo; inventando uma linguagem cênica, ele se faz responsável pela unidade do espetáculo. Isso é necessário? Sem dúvida, pela simples razão de que a unidade já não se pode mais verificar de modo espontâneo. A unidade do espetáculo só pode existir de modo artificial, ou seja, como arte. A arte do diretor deve saber concatenar, congregar, dosar o ritmo de cada cena e de todo o espetáculo. Ele deve saber o que pode ir junto e como pode ir junto e o que deve permanecer separado e como permanece separado, e isso tudo em função da totalidade dos elementos que compõem o espetáculo: texto, cenografia, som, iluminação, figurinos, elementos cênicos, interpretação. O resultado pretende perfilar-se ao que o público burguês exige de todas as artes: a originalidade” (BORNHEIM, Gerd, Teatro: A cena dividida, p. 102).

A ampliação do repertório é assim, ao mesmo tempo, causa e consequência da perda de primazia do texto. Com a dissociação entre homem de teatro e dramaturgo, iniciada no classicismo francês, acentua-se um novo predomínio, a das “poéticas do espetáculo”:

“Duas são as possibilidades fundamentais aqui. Existem, de um lado, as poéticas do espetáculo condicionado; neste caso, o que condiciona, o princípio norteador do espetáculo é o texto literário. O texto vem em primeiro lugar, e a criatividade do diretor deve saber subordinar-se ao texto; a direção não será mais, nesse caso, do que uma explicitação do sentido do texto (…) Nessa linha encontramos diretores como Stanislavski, Nemirovith-Dantchenko, Copeau, Dullin, Pitoeff, Louis Jouvet, e a grande maioria dos diretores, muitos dos quais, já por não serem muito criativos, apóiam-se na literatura. De outro lado, encontramos as poéticas do espetáculo absoluto, defendidas por uma não menos nobre estirpe de diretores: basta pensar em Appia, Gordon Craig, Meyerhold, Tairov, Gaston Baty, Artaud e tantos outros. Aqui, o texto – quando não se chega ao extremo de bani-lo – é admitido apenas como um dos elementos que compõem o espetáculo. O texto deixa de ser o princípio fundamental, e esse princípio passa a ser assumido pelo diretor” (BORNHEIM, Gerd, Teatro: A cena dividida, p. 103-104).

Semelhante desdobramento pode ser encontrado nos diversos elementos da encenação teatral. A “consciência histórica” também modifica, por exemplo, o perfil do ator. Exige-se dele, em maior ou menor dosagem, “um domínio universal de todas as técnicas, de tal maneira que ele possa, ao menos em princípio, interpretar qualquer tipo de texto”.

Embora apresente suas diversas vertentes, Bornheim nunca se coloca como um espectador indiferente, imparcial ou passivo do teatro contemporâneo. Sua reflexão alerta, a cada passo, para os riscos, opostos e complementares, da estetização e do positivismo histórico. A fonte do perigo reside, sobretudo, na tentação do “teatro-museu”, uma experiência artificial e pedante que tende a se esclerosar. Assim, não deixa de ressaltar “a necessidade de fornecer ao teatro uma função viva, atual, que consiga realmente atingir o espectador de hoje, que diga algo ao homem sobre sua situação no mundo”.

Referências bibliográficas

ANDERSON, Perry. “Modernidade e revolução”. Em: ANDERSON, Perry. Afinidades seletivas. São Paulo: Boitempo, 2002.
BORNHEIM, Gerd. Brecht, a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.
___. Páginas de filosofia da arte. Rio de Janeiro, Uapê, 1998.
___. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 1975.
___.Teatro: A cena dividida. Porto Alegre: L&PM, 1983.
PIRANDELLO, Luigi. Seis personagens à procura de um autor. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
SAADI, Fátima. “A obra teatral de Gerd Bornheim”. Em: revista Folhetim, nº. 16. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003.

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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.

3 comentários em O teatro contemporâneo, segundo Gerd Bornheim

  1. Joana Morais // 31/01/2014 às 5:42 pm // Responder

    Obrigada pelas publica��es .

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  2. excelente recuperação do Bornheim e de uma temática urgente. Grande abraço. AC

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  3. juçara barcellos // 15/01/2016 às 4:04 pm // Responder

    Ótima síntese acerca da importância do papel e do lugar da crítica teatral bornheiniana…. Um abraço. Juçara Barcellos

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