Às Reginas, a paz (e os direitos)!
Chegou ao meu conhecimento que a Sra. Regina da Silva Paz, 39 anos, auxiliar de limpeza, trabalhadora terceirizada, prestando serviços no Metrô de São Paulo, na madrugada do dia 05 de janeiro passado, foi encontrada morta em área destinada ao armazenamento na Estação Santa Cruz.
O Sindicato dos Metroviários, em ato que merece todo o elogio, tornou o fato público e está em campanha por algo que pode parecer a muitos bastante banal: que se apurem as circunstâncias do fato, para que se possam medir responsabilidades. Mas tem enfrentado resistência.
Essa situação revela duas características da realidade brasileira, que, infelizmente, ainda insistem em nos afrontar.
Primeiro, que tudo se considera dentro da normalidade quando os excluídos se mantêm excluídos, numa condição de invisibilidade e, segundo, que qualquer tentativa de alteração desse quadro salta aos olhos como um assalto à normalidade, como ato que tende a incomodar e a atrapalhar a paz estabelecida.
Essa paz, no entanto, tem sido baseada no silêncio e no medo, que geram uma quase necessidade de isolamento, alimentando a falta de solidariedade, o individualismo, enfim.
Ora, a história de Regina não foge do padrão de normalidade a que estão submetidos milhões de trabalhadores brasileiros, cujo sobrenome é o mesmo, Silva, e isso há muitas e muitas décadas.
Pessoas que são excluídas de uma formação educacional de qualidade, que na infância passam privações de toda espécie e que depois, para sobreviver, entrando no mercado de trabalho, precisam se submeter ao trabalho precarizado, desprovido de direitos, tendo ainda que enfrentar, diariamente, como fruto de uma política urbana que as conduz às periferias das cidades, onde o Estado só chegue perifericamente, o drama de uma falência estrutural do transporte público, que prioriza o interesse econômico e se vale da precarização do trabalho.
Regina, além disso, era mulher e mãe de dois filhos, estando, por isso, também submetida a suportar as cargas da pressão psicológica de uma sociedade em grande parte ainda machista e que tenta impor, a todo o tempo, à mulher, uma posição inferiorizada, ainda mais quando esta acumula a condição de trabalhadora, tendo que suportar os efeitos da chamada “dupla pegada”.
As Reginas, passando por toda essa enorme dificuldade, estão por aí, mas o normal é que estejam sem que se perceba que estão. O normal é que, mais ainda, não contestem essa situação e que, mantendo o padrão da normalidade, sendo irrelevantes os seus problemas pessoais no que se referem à família, à moradia e à saúde, estejam todo dia no emprego no horário marcado e que cumpram a sua obrigação de trabalhar e que cumpram também, mais tarde, os seus deveres em casa, ainda que seus direitos, consagrados em diversos documentos internacionais de Direitos Humanos e na nossa Constituição, não sejam respeitados por aqueles que, incluindo o Estado, com elas interagem.
Mas, eis que o corpo de Regina, contrariando a lógica mecanizada, em ato de revolta, resolveu assumir a sua condição humana e faleceu, exatamente no local onde a força de trabalho de Regina era utilizada de uma tal forma que sequer parecia que do corpo de Regina advinha.
Regina, então, perdeu a vida, mas assim pôde ser vista…
Ocorre que essa “anormalidade” da compreensão de sua existência, na concepção daqueles que da “normalidade” da invisibilidade se beneficiam, tende a ser desconstruída, rapidamente, para que outras Reginas não sejam vistas. Foi assim, por exemplo, que alguns anos atrás na USP o corpo de um trabalhador terceirizado, morto nas dependências de uma unidade da USP, foi retirado rapidamente do local para que ninguém o visse, sendo que como elemento adicional à tragédia, os outros empregados terceirizados foram obrigados a executar o serviço de “limpar” o local.
Pois bem, no presente momento, o mínimo que se exige, para que Regina da Silva, enfim, tenha paz, e para que tantas outras Reginas possam viver, é que o fato não seja desconsiderado. Que se apure, em toda a sua amplitude, o quanto as condições de um trabalho precarizado, inserido na lógica produtiva de grandes conglomerados econômicos, sem direitos, com baixos salários, com elemento de segregação e integrado da insegurança de constantes transferências, de recusas de atestados médicos e da velada ameaça do desemprego, acompanhado das enormes dificuldades sócio-culturais-econômicas, que assolam os trabalhadores brasileiros, contribuíram para o ocorrido.
Não há de se considerar que o normal é seguir tudo como estava, encarando o fato como mera fatalidade ou buscando, até, quem sabe, um argumento para culpar a vítima. A apuração requerida pelo Sindicato se impõe, mesmo que seja, meramente, para que os próprios trabalhadores, como um todo, não só terceirizados, refletindo a respeito, se vejam na posição em que Regina viveu e em que seu corpo foi encontrado…
São Paulo, 31 de janeiro de 2014.
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Jorge Luiz Souto Maior é um dos autores do livro Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, para o qual colaborou com o texto “A vez do direito social e da descriminalização dos movimentos sociais”. Trata-se do primeiro livro impresso inspirado nos megaprotestos conhecidos como as “Jornadas de Junho”, com textos de autores nacionais e internacionais como Slavoj Žižek, David Harvey, Mike Davis, Raquel Rolnik, Ermínia Maricato, Ruy Braga, Carlos Vainer, entre outros.
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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e de um dos artigos da coletânea Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.
Caro professor Jorge,
Infelizmente tive a sorte de encontrar seu texto sobre “Regina”, que de rainha nada teve… De todo modo, moro na Avenida São Luis, no centro de São Paulo, e nos fundos do meu apartamento está sendo construída a nova sede administrativa da reitoria da USP, ao que consta, com várias irregularidades jurídicas (como autorização da planta do projeto), mas das quais não tenho aqui condições de entrar no mérito. Entretanto, no dia 06/01/2014 um dos operários dessa obra – que ainda está em fase de implantação das fundações do muro de arrimo – caiu no buraco dessa construção, a mais de vinte metros de profundidade. Ao que consta, os responsáveis pela obras – engenheiros (?) – em vez de chamarem o corpo de bombeiros para prestar socorro, decidiram usar a escavadeira para retirar o operário, e tudo que conseguiram, evidentemente, foi retirar apenas as partes do corpo dele completamente dilaceradas. Fiz alguma consulta sobre o caso, mas não encontrei até o momento nenhuma ocorrência a esse respeito. Tudo que consegui verificar, dois dias após a tragédia, era, da janela do meu apartamento, a faixa de isolamento da polícia em torno do buraco, mas que logo em seguida foi retirada, para que a obra continuasse seguindo a plenos pulmões. Pediria encarecidamente alguma orientação sobre como proceder a esse respeito para que alguma investigação/informação possa vir a público, pois, como tudo que atualmente ocorre no Brasil, vivemos um momento que não tem tempo a perder com essas “externalidades negativas”, o que está se tornando um mal crônico do trabalho terceirizado.
Meus cumprimentos pela iniciativa,
Bruno Simões.
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