A invasão dos “proletaróides”
[Georg Grosz, Großstadt, 1916/17]
Por Giovanni Alves.
“Mete a beta da New Era, no pé calça o Puma Disc,
Tá de Hurley, de Lacoste, Armani, Abercrombie Fitch,
e o cordão que as gata enxerga de longe,
não é por simpatia, nem por interesse, mas quer viver bem…”
“Luxo e camarote”, Mc Samuka e Nego
Com a explicitação dos limites do neodesenvolvimentismo, ocorre, de forma magistral, a revelação de novas dimensões da estrutura de classes e estratificação social no Brasil. Enquanto as manifestações de junho de 2013 expuseram a problemática social do precariado (o que discutimos no ensaio “A revolta do precariado“), os “rolezinhos” nos shopping centers expõem mais uma dimensão das contradições das classes e suas camadas sociais no Brasil, abertas na era do neodesenvolvimentismo: a problemática social dos “proletaróides”.
Num primeiro momento, utilizamos o conceito de “proletaróide” inspirando-se na expressão cunhada por Max Weber em 1919 na conferência “Ciência como vocação” quando utilizou o termo existência “proletaróide”. Naquela conferência clássica, Weber, ao tratar dos professores assistentes nas universidades alemãs, observou que “a vida universitária alemã americaniza-se, como em geral se americaniza toda a nossa vida em pontos muito importantes” (é curioso que Max Weber antecipa-se a Antonio Gramsci constatando, em 1919, o fenômeno do americanismo). Enfim, o padrão americano se impõe, com os grandes institutos de medicina ou de ciências na Alemanha tornando-se empresas de “capitalismo de Estado”, ocorrendo neles o que se verifica em toda empresa capitalista: a “separação do trabalhador e dos meios de produção”. Deste modo, os professores assistentes “estão vinculados aos meios de trabalho que o Estado põe à sua disposição; [sendo] por conseguinte, tão pouco independentes frente ao diretor do instituto como um empregado numa fábrica – pois o diretor do instituto pensa, com total boa fé, que este é ‘seu’, e atua como se efetivamente o fosse.” E observou Weber: “A sua situação é, muitas vezes, tão precária como qualquer outra existência ‘proletaróide’, como acontece também com o assistant da universidade americana” (o grifo é nosso, mas as aspas no termo “proletaroíde” são de Weber).
Para o sociólogo alemão, o que ele identificou como sendo existência “proletaróide” – sempre com aspas – é a situação de precariedade do operário manual empregado numa fabrica. É nítido o teor pejorativo da expressão existência “proletaróide” em Weber, que diz respeito àqueles que têm uma existência precária tendo em vista, não apenas o nível baixo da remuneração salarial (salário fixo), mas a imersão na própria condição de alienação, isto é, o trabalhador está alienado dos meios de produção, o que o obriga a submeter-se a divisão hierárquica do trabalho.
Deste modo, um traço indelével da condição de proletariedade do jovem professor assistente é a sua subordinação hierárquica ao diretor do instituto que adota, segundo Weber, uma atitude patrimonialista na relação com “seus” empregados (aspas utilizadas pelo próprio Weber). O que significa que o professor assistente na Alemanha da época de Weber, diferentemente do Privatdozent, pode ser demitido caso não corresponda às expectativas. Diz ele: “A regra [dos professores assistentes nos EUA], tal como acontece com os nossos assistentes [na Alemanha], é ele poder ser despedido, e deve contar com isso de um modo bastante impiedoso, se não corresponder às expectativas.”
Enfim, subordinação hierárquica e contingência salarial constituem a condição de proletariedade ou existência precária do trabalhador alienado de seus meios de produção – traço característico da vida americana.
Entretanto, o professor assistente na Alemanha de Weber possui uma existência “proletaróide” não apenas porque é um trabalhador assalariado precário, como descrevemos acima, mas porque é um trabalhador assalariado precário com ambições de classe média. Na língua alemã, o termo “proletaróide” é aplicado àqueles grupos profissionais oriundos da classe média que estão imersos na condição de proletariedade (como, por exemplo, os professores assistentes na Alemanha de Max Weber). Portanto, “proletaróide” significa literalmente “falsa classe media”. ]
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Ao utilizarmos o termo “proletaróide”, buscamos resignificá-lo (como fizemos, por exemplo, com o conceito de “precariado”), atribuindo-o àqueles trabalhadores assalariados precários que – de modo contraditório – possuem uma consciência burguesa de “classe media”. Deste modo, “proletaróide” significa proletariado precário com consciência de classe burguesa, estando imbuído, deste modo, dos valores burgueses de “classe media”. A conotação pejorativa do termo explícita meramente a contradição candente – no plano da consciência contingente – entre a objetividade de classe proletária e a subjetividade burguesa.
Portanto, utilizamos o termo “proletaróide” (sempre com aspas) para designar a camada social da classe do proletariado constituída por jovens assalariados de baixa renda, assalariados formalizados herdeiros da mobilidade social dos pobres ocorrida na era do neodesenvolvimentismo lulista e que construíram sua identidade social incorporando expectativas e anseios de consumo burguês. Os “proletaróides” são os jovens trabalhadores proletários da dita “nova classe média” que surgiram na era do neodesenvolvimentismo, os pobres emergentes da “classe C” incluídos pelo consumo. Na verdade, eles são os jovens da nova classe trabalhadora brasileira, que buscam incluir-se na sociedade burguesa por meio do consumo popular de marca. Os “proletaróides” constituem hoje predominantemente a massa do fenômeno social dos “rolezinhos”.
Ao adotarem o ethos de consumo burguês de marca, os jovens proletários pobres respondem a seu modo, à necessidade verdadeira de inclusão social, confrontando os interesses da classe dominante brasileira, a classe média branca proprietária dos espaços de consumo de marca. Mesmo que não saibam, os “proletaróides” inquietam a ordem burguesa senhorial brasileira, não apenas devido a sua inserção de classe (jovens trabalhadores assalariados de origem pobre, proletários da periferia historicamente excluídos dos espaços de consumo burguês), mas devido a sua cor de pele: são pardos, negros e mulatos.
Com a inserção formal no mercado de trabalho e perspectiva de cidadania salarial (a grande utopia social dos “excluídos” da “modernização catastrófica” à brasileira), a juventude assalariada da periferia, ousada e atrevida, incomoda os donos da Casa Grande e seus capatazes: a classe média tradicional e moderna, branca e escolarizada, que há séculos construiu seus espaços seletos de reprodução social e sociabilidade de elite. O espectro dos rolezinhos ou a invasão dos “proletaróides”, amedronta a “consciência coletiva” da sociedade de classe de extração colonial-escravista com sua estrutura de classe e estratificação social historicamente demarcadas.
O crescimento da taxa de formalização do mercado de trabalho e a valorização do salário-mínimo na era do neodesenvolvimentismo lulista (2003-2013) – estratégias de inclusão pelo consumo – contribuiram para constituir uma camada social afluente de assalariados de baixa renda da periferia. Os jovens proletários da “nova classe trabalhadora” cresceram cultivando e afirmando sua identidade social através da “teologia do consumo de marca”, traço sociometabólico da juventude que nasceu no bojo do capitalismo global.
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O neodesenvolvimentismo como “choque de capitalismo” e disseminação ampliada e intensa do fetichismo da mercadoria no Brasil, criou efetivamente nos dez anos de Lula e Dilma, um terreno sociometabólico propício para o surgimento de carecimentos radicais impulsionados pela intensificação e amplitude da miséria espiritual das massas proletárias – pobres ou de classe média assalariada. Nesse ínterim, surgiram “vias de escape” dos carecimentos radicais – é o que trataremos, mais adiante, no artigo intitulado “Neodesenvolvimentismo e carecimentos radicais”.
As respostas às misérias espirituais provocadas pela exacerbação da proletariedade das classes subalternas – incluindo a classe média assalariada – ocorreram por meio daquilo que poderemos caracterizar como sendo a tríplice teologia do neodesenvolvimentismo no Brasil: teologias do consumo de marca, teologias do empreendedorismo e teologias da prosperidade, com suas vias de cariz neopentecostalista ou vias do espiritualismo da Nova Era – as gnoses, crenças carismáticas, esotéricas e antroposóficas, etc. Na verdade, elas expressam respostas íntimas de afirmação da pessoa humana carente às misérias do capital no plano sociometabólico.
Não podemos condenar as criaturas aflitas que procuram na religião uma via de escape para sua miséria humana. O choque de capitalismo no Brasil neodesenvolvimentista explicitou de modo candente que o sistema produtor de mercadorias, na medida em que expõe no século XXI sua fase de barbárie social ou sociometabolismo da barbárie, deixa claro a impossibilidade de uma vida plena de sentido nas condições históricas do capitalismo. Por isso o apego às teologias do grotesco (grotesco no sentido de obstaculizarem o sentimento de tragédia que possui um elemento catártico).
Portanto, o que queremos salientar é que a tríplice teologia do neodesenvolvimentismo no Brasil possui a mesma legalidade ontológica do sentimento religioso. Disse Karl Marx numa brilhante passagem da “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (1844):
“A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma”. (Crítica da filosofia do direito de Hegel, p.145)
Neste momento, interessa-nos desvelar, apenas de modo introdutório, o sentido íntimo da proliferação do culto das marcas entre a juventude, instigada pela inclusão social pelo consumo. Na década passada, vários autores como Zygmunt Bauman (Vida para o consumo, 2008); Juliet B. Schor (Nascidos para comprar, 2008) e principalmente Isleide Fontenelle, no belo livro O nome da marca: McDonalds, fetichismo e cultura do descartável (Boitempo, 2005), trataram do tema do consumo baseado no fetiche das marcas, associado ao culto à imagem e alimentado pela expansão do marketing e da sociedade midiática.
O neodesenvolvimentismo no Brasil, ao basear-se na inclusão social pelo consumo, instigou a “religião do consumo”, principalmente nas camadas populares historicamente carentes de modernização. O consumo das marcas constitui hoje o cerne do sociometabolismo dos “proletaróides”. Ele preenche um vazio espiritual na juventude proletária, imersa na contingencia do fetichismo das mercadorias e do estranhamento social nas condições históricas do capitalismo desenvolvido.
A teologia do consumo de marcas constitui um fenômeno social juvenil não apenas no Brasil, mas no mundo capitalista global. Na verdade, as crianças e os jovens tornaram-se alvos privilegiados da manipulação do consumo por meio da propaganda e marketing das corporações industriais. A revolução informacional e a constituição da “sociedade em rede” com a disseminação das telas digitais em alta resolução interconectadas 24 horas, elevou à enésima potência o caráter manipulatório do capitalismo industrial. O culto das marcas tornou-se o culto dos verdadeiros deuses do Olimpo do capitalismo global: os produtos-mercadorias e as marcas das corporações industriais.
Nos “trinta anos perversos” do capitalismo global – ou “capitalismo manipulatório”, como diria Lukács – acirrou-se de modo inédito, a ofensiva ideológica do capital (o poder da ideologia) criando o sentimento – e não apenas a ideia – de fechamento do universo utópico para além do capital. A virada histórica para a década de 1990 com a Queda do Muro de Berlim, o debacle da URSS e a ideologia do pós-modernismo e da globalização – significaram importantes mudanças sociometabolicos no mundo capitalista. A crise das utopias coletivas e dos seus “intelectuais orgânicos” (partidos e sindicatos) e a vigência do neoliberalismo, com seu espirito do individualismo, criaram as condições espirituais para que a dita “geração Y” ou ainda a “geração Z”, gerações nascidas nas condições históricas do poder da ideologia (1980-2010), se entregassem aos valores-fetiches do consumo.
O Brasil da década de 2000 incorporou, com o neodesenvolvimentismo como “choque do capitalismo”, o espirito teológico do consumo. Como novo padrão de desenvolvimento capitalista no Brasil, o neodesenvolvimentismo baseou-se na exacerbação do crédito capaz de incrementar o mercado interno de consumo (de 2003 a 2013 a oferta de crédito cresceu cerca de 140% no País). A ideia de cidadania reduziu-se à ideia de acesso ao mercado de consumo de massa. É a inclusão social pelo consumo.
Tanto os jovens das camadas médias, quantos aqueles das camadas populares, alvos privilegiados das estratégias de marketing e propaganda das grandes empresas, assumiram, cada um a seu modo, a nova teologia do consumo de marcas. No caso dos “proletaróides”, o consumo popular das marcas – ou a sua ostentação como símbolo de ascensão social – adquiriu um sentido íntimo de afirmação pessoal das suas individualidades de classe. Numa sociedade capitalista profundamente desigualitária e injusta como a sociedade brasileira, com uma “classe média” racista e preconceituosa, a ostentação dos ícones do consumo de marcas por jovens oriundos das camadas populares nos shopping centers expressa, com vigor inaudito, candentes contradições da ordem burguesa hipertardia.
É importante salientar que os “proletaróides” se distinguem do precariado – na nossa acepção – tendo em vista que precariado é a camada social constituída por jovens do proletariado altamente escolarizado, mas inserido em situação de precariedade salarial (portadores sociais de profunda frustração de expectativas); enquanto os “proletaróides” constituem a camada pobre do jovem proletariado brasileiro que na era do neodesenvolvimentismo ascendeu à formalização salarial e que cultiva valores burguesas de classe media, expressos pela indumentária do consumo de produtos-mercadorias de marca, tornando-os portadores do desejo de ostentação.
O precariado é constituído pelos jovens assalariados precários altamente escolarizados, em sua maioria oriundos das camadas medias brancas da sociedade brasileira; os “proletaróides” são os jovens assalariados pobres da periferia das metrópoles, juventude de baixa ou media escolaridade, excluída historicamente dos espaços de consumo burguês, mas que, com o crescimento da formalização no mercado de trabalho e o aumento do salário-mínimo em cerca de 70%, passaram a ostentar mercadorias de marca como símbolos de afirmação social. Nesse caso, o próximo passo da irrupção dos “pobres” seria ocupar ou invadir – como percebe a classe media branca senhorial – os espaços de consumo burguês: eis o significado candente dos “rolezinhos” nos shopping centers, templos do consumo burguês.
Um dado importante: o mercado brasileiro de shopping centers cresceu cerca de 52% entre 2006 e 2012. O Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, é o país dos shopping centers. O espaço social dos shopping centers, espaço primordial de consumo de mercadorias de marcas, tornou-se o espaço primordial da sociabilidade urbana de classe média nas metrópoles, tendo em vista que o espaço público urbano tornou-se, cada vez mais, espaço privado, ocupado pelos grandes condomínios e pelas vias de circulação de veículos – de 2003 a 2013, a frota de veículos no Brasil cresceu cerca de 119%).
Enquanto as manifestações de junho de 2013 expuseram o problema candente da mobilidade urbana, os “rolezinhos” de hoje indicam o problema crucial da escassez de espaços urbanos públicos de sociabilidade, principalmente para a juventude pobre assalariada da periferia das metrópoles, reclusas nos guetos sob a vigília da Policia Militar.
Na medida em que têm acesso às mercadorias de marca, mesmo como ícone “fake” da ascensão social da era do lulismo, os “proletaróides” buscam espaços de sociabilidade, não apenas para ostentá-las, mas para contemplá-los nos shopping centers, verdadeiros caleidoscópios de classe média. Na verdade, os “rolezinhos” são meros encontros de curtição da galera, mediados pela contemplação das vitrines luminosas.
O não-lugar asséptico e resplandecente dos shopping centers, território visceral da classe média, se contrasta, por exemplo, com os lugares públicos cativos e obliterados das metrópoles colonizadas pelos veículos, condomínios privados e insegurança pública. O padrão de sociabilidade mercantil intensificado e ampliado pelo choque do capitalismo neodesenvolvimentista inviabilizou a cidade como espaço urbano (urbes), pois instaurou a lógica dos não-lugares (nesse diapasão, o universo da galera hoje é a internet e o shopping center). Estas mutações culturais do capitalismo global alteraram radicalmente a “construção” da pessoa humana, que ocorre hoje, cada vez mais, perpassando espaços privados. Deste modo, privatizou-se perversamente a dinâmica da subjetivação, da sociabilidade e da individuação da pessoa humana de classe.
Precários e “proletaróides” não contestam em si e para si, a lógica do sistema produtor de mercadorias. Como expressões contingentes das contradições da ordem burguesa, apenas querem um “lugar ao sol” (na medida em que se constituem como sujeitos históricos de classe é que adquirem um protagonismo politico capaz de criticar o sistema do capital). Entretanto, hoje mais do que nunca, o movimento da contingência da classe do proletariado é radicalmente contraditório, tendo em vista que, mesmo ansiando a utopia salarial ou utopia de consumo como “vida boa”, contestam a lógica perversa da ordem burguesa. Parafraseando Lukács poderíamos dizer que, as centelhas produzidas pelo choque de suas cabeças – as cabeças do precariado e as cabeças dos proletaróides – contra o muro da ordem burguesa hipertardia, mostrarão a eles que o neodesenvolvimentismo chegou ao seu limite (o que não significa, esgotamento politico do neodesenvolvimentismo, que pode ser administrado à exaustão pelos ilusionistas de plantão – à esquerda ou a direita).
Portanto, precariado e “proletaróides” expressam incisivamente a inquietação social de jovens proletários com o sistema do capital: primeiro, o precariado como sendo a camada social portadora da frustração de expectativas no plano da realização da cidadania salarial. O capitalismo flexível tornou-se incapaz de universalizar a cidadania salarial capaz de realizar os “sonhos diurnos” dos assalariados altamente escolarizados. A pletora de capital humano precisa ser “queimada”. Depois, por último, os “proletaróides” como sendo a camada social portadora da inquietação social no plano da afirmação pessoal como sujeitos monetários capazes de reconhecimento como cidadãos de consumo no interior da ordem burguesa desigualitária.
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Com a manifestação dos “rolezinhos” em dezembro de 2013 e começo de 2014 surgiram interpretações deste fenômeno social à direita e à esquerda: a primeira interpretação reduziu os rolezinhos a manifestações de jovens baderneiros da periferia que querem apenas tumultuar os espaços de consumo da classe media branca. Existe um amplo leque de variações desta interpretação conservadora que imputa àquelas manifestações espontâneas dos “proletaróides”, teleologias estranhas a ela.
A segunda interpretação reduziu os “rolezinhos” a atos políticos de contestação à discriminação racial e exclusão histórica de pobres e negros no Brasil (algumas destas interpretações de esquerda imputam, por exemplo, aos “proletaróides”, uma indignação contra o racismo e exclusão social similar àquela os negros norte-americanos tinham nos EUA da década de 1950 – é o caso, por exemplo, do artigo de Ruy Braga intitulado “Rosa Parks em Itaquera”). É curioso que, inadvertidamente, estas interpretações de uma certa esquerda fizeram a mesma operação cognitiva da direita: imputaram aos “proletaróides” algo que lhes é estranho, em si e para si.
Na verdade, os “proletaróides” não são nem vândalos (como imagina a direita), nem indignados políticos (como supõem uma certa esquerda). Os rolezinhos são manifestações sociais com um significado político óbvio: expõem o apartheid social que caracteriza a ordem burguesa hipertardia no Brasil (como salientou o sociólogo Jesse de Souza). Entretanto, o impressionismo sociológico de Jesse de Souza não consegue apreender a totalidade social e o sentido radical da invasão dos “proletaróides” que desvela as contradições objetivas da era do capitalismo neodesenvolvimentista no Brasil.
Na medida em que alcança seus limites, o neodesenvolvimentismo expõe contradições históricas candentes da sociedade brasileira de um modo concreto (as centelhas produzidas pelo choque da cabeça dos “proletaróides” contra o muro da ordem burguesa de extração colonial-escravista – racista e preconceituosa). É importante saber apreender a natureza estrutural dos limites do neodesenvolvimentismo com lucidez teórico-crítica. Portanto, os “rolezinhos” não desvelam um sujeito histórico de contestação radical no País (o que significa que atribui-los uma consciência de classe – mesmo contingente – é não apenas incorreto teoricamente, mas um equívoco politico). Muitas vezes, na ânsia de politizar o movimento, uma certa esquerda politicista não percebe – ou é incapaz de perceber – sua concreção contraditória e, portanto, seus alcances e limites.
Portanto, os rolezinhos como manifestações sociais dos “proletaróides” não se trata de revolta, como ocorreu, por exemplo, com o precariado, mas sim de ocupação (ou invasão) de espaços do consumo de marca ou territórios do poder simbólico burguês por jovens proletários assalariados pobres que buscam afirmar-se e reconhecer-se socialmente explicitando – deste modo – contradições orgânicas da ordem burguesa hipertardia no Brasil. Como os jovens precários de junho de 2013, os “proletaróides” se organizaram utilizando as redes sociais (o acesso a redes sociais demonstra uma credencial de “inclusão social”).
Entretanto, o que move o precariado é a indignação moral (o que não significa consciência necessária de classe, tendo em vista que a indignação situa-se num plano da contingência); e o que move os “proletaróides” é a ânsia pela ostentação de ícones do consumo de marca nos espaços de sociabilidade mercantil de classe média. Indignação e ânsia de ostentação de ícones de consumo são carecimentos contingentes radicalmente contraditórios, mas que habitam o mundo da contingência social.
Não é a toa que a ideologia cultural dos “proletaróides” se expressa, por exemplo, nas letras do “funk da ostentação” que cultua os ícones de marca da ordem burguesa senil. Eles são produtos legítimos da cultura social do neodesenvolvimentismo. O esvaziamento espiritual da cultura da decadência burguesa inscrita nas letras do “funk da ostentação” é indiscutivelmente flagrante, demonstrando que o capitalismo manipulatorio e o hiperfetichismo da mercadoria nos países de modernização catastrófica como o Brasil, produziram nas camadas subalternas da sociedade brasileira, uma ampla “falsa classe média”, verdadeiros “proletaróides”, assalariados precários com ânsia de consumo burguês.
Portanto, os “rolezinhos”, como as manifestações de ruas de junho de 2013, são expressão sociometabólica do novo padrão de desenvolvimento capitalista no Brasil – o que denominamos de neodesenvolvimentismo. Ele explicita importantes mudanças sociais na estrutura de classe e estratificação social da sociedade brasileira, expondo, com visibilidade social e política, mais um agente da inquietação social da era do neodesenvolvimentismo. Depois da revolta do precariado com as manifestações de junho de 2013, o que observamos no começo de 2014 é a invasão dos “proletaróides”. Precariado e “proletaróides” – é como se o neodesenvolvimentismo como padrão de desenvolvimento do capitalismo hipertardio no Brasil estivesse expondo seus limites civilizatórios.
Por um lado, com o precariado, a civilização do capital no Brasil, demonstrou sua incapacidade de efetivar as promessas de realização pessoal no interior da ordem da mercadoria baseada nas perspectivas de carreira profissional, consumo e família, para amplas camadas de jovens proletários assalariados altamente escolarizados (o sonho da “boa vida” da utopia do capitalismo do bem-estar social). Na verdade, o neodesenvolvimentismo, como todo projeto de desenvolvimento capitalista na era da dominância do capital financeiro, adquiriu uma feição farsesca.
Por outro lado, com os “proletaróides”, jovens assalariados pobres imbuídos –ironicamente – dos sonhos de consumo das mercadorias de marca da própria ordem social que os excluiu historicamente, o neodesenvolvimentismo no Brasil demonstrou seus limites históricos irremediáveis, na medida em que não conseguiu ir além da ordem burguesa baseada no Estado neoliberal que segrega os proletários pobres condenando-os à miséria espiritual burguesa, apesar de sua afluência relativa de renda.
O neodesenvolvimentismo é mais um exemplo histórico de “revolução passiva” no Brasil do que de contra-reforma burguesa (como foi o neoliberalismo) – o que explica seu caráter hegemônico no seio das massas populares. O neodesenvolvimentismo lulista reitera aquilo que Giuseppe Tomasi di Lampedusa expressou nas palavras do príncipe de Falconeri no romance O Leopardo: a única mudança permitida é aquela onde tudo deve mudar para que tudo fique como está.
Ao mesmo tempo que o neodesenvolvimentismo, imbuído do espirito do lulismo, esvaziou a luta de classes – luta de classe no sentido politico –, renunciando a orienta-la no sentido da formação da consciência critica dos sujeitos históricos, ele expôs, ao mesmo tempo, contradições sociais candentes historicamente represadas que perpassam objetivamente as classes e camadas sociais no Brasil. Poderíamos dizer, parafraseando ironicamente o próprio Presidente Lula que, nunca antes neste País, a política da conciliação de classes com seu fraco reformismo social – lento e seletivo – contribuiu tanto para expor com vigor, contradições concretas candentes inscritas historicamente na ordem social brasileira entre as classes e suas camadas sociais. A própria natureza do neodesenvolvimentismo como choque de capitalismo, libertou efusivamente a inquietação social no seio do proletariado brasileiro, mesclando, por um lado, necessidades sociais historicamente reprimidas; e, por outro lado, carecimentos radicais explícitos nas camadas sociais da classe do proletariado que expressam, de certo modo, os limites da própria ordem burguesa hipertardia.
Ao mesmo tempo, amplia-se e reitera-se no bojo da era do neodesenvolvimentismo, o irracionalismo social, característica histórica da sociedade brasileira perversamente desigual, injusta e endemicamente violenta (por exemplo, a linha ascendente de homicídios por arma de fogo no Brasil, que cresceu a partir de 1990 na “década neoliberal”, continuou a crescer no Brasil do neodesenvolvimentismo). Na verdade, o Brasil como sociedade da “modernização catastrófica”, ao lado de China, Índia, Rússia e África do Sul, mescla, a seu modo, projeto civilizatório hipertardio do capital e estigmas da barbárie histórica e barbárie social que expõem contradições candentes do capitalismo senil do século XXI.
A revolta do precariado e a invasão dos “proletaróides” indicam que o neodesenvolvimentismo, além de ser uma farsa, na medida em que encontra-se constrangido pelo Estado neoliberal sob a dominância do capital financeiro que o impede de ir além do reformismo fraco, incapaz, portanto, de investimentos públicos de maior impacto na educação, saúde, transporte público e infraestrutura social; é um modo de “carnavalização” no sentido de criar as condições históricas para a explicitação de espetáculos sociais e políticos que fazem desfilar diante dos nossos olhos, um cortejo de personagens curiosos – camadas sociais de classe – com seus rituais de indignação e ostentação que ridicularizam – mas sem alterá-la efetivamente – a ordem burguesa que se arroga de uma condição imutável, transcendente, definitiva.
Na era do neodesenvolvimentismo, temos limites que explicitam alcances sociais espetaculares, mas inócuos no plano político (como as manifestações massivas de rua de junho de 2013). O caráter ambivalente do neodesenvolvimentismo, com seu reformismo que promove mudanças para manter tudo como está, expõem o caráter de paródia da política, que se manifesta na degradação cotidiana do ritual parlamentar auto-referente, historicamente alienado das manifestações de rua e das necessidades sociais e carecimentos radicais das classes subalternas. Deste modo, a explosão de manifestações sociais de ruas (ou hoje, nos shopping centers), à semelhança do “mundo às avessas” do Carnaval em tempo de Saturnalia, permite-se viver cotidianamente, a inversão da ordem social normal – para depois tudo voltar à normalidade na quarta-feira de Cinzas. Na verdade, a carnavalização histórica é um modo perverso de reprodução social da ordem burguesa.
O país dos “proletaróides”, onde assalariados pobres ostentam a marca-símbolo que representa paradoxalmente sua irrelevância social, é deveras o pais das contradições capitalistas candentes do século XXI. Após a revolta do precariado, revolta (e inquietação) que persiste e insiste no “carnaval” da vida cotidiana, assistimos hoje, a invasão dos “proletaróides”, jovens pobres da periferia que buscam ocupar a territorialidade senhorial que os segrega social e historicamente, no plano do lazer e do consumo. Pelo visto, mais do que nunca, em 2014 as metrópoles brasileiras devem continuar em transe…
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Leia também, no Blog da Boitempo, “Um ano de rolezinhos e lutas“, de Edson Teles, “Rosa Parks em Itaquera“, de Ruy Braga e “O ‘rolezinho’ da FIFA no País de Pedrinhas em Estado de Exceção Permanente” de Jorge Luiz Souto Maior!
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O livro mais recente de Giovanni Alves, Trabalho e subjetividade (Boitempo, 2011) já está à venda também em formato eletrônico (ebook) nas lojas da Gato Sabido e Livraria Cultura. O autor conta com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, à venda em ebook por apenas R$5 na Gato Sabido, Livraria da Travessa, dentre outras. Giovanni Alves conta também com o artigo “Trabalhadores precários: o exemplo emblemático de Portugal”, escrito com Dora Fonseca, publicado no Dossiê “Nova era da precarização do trabalho?” da revista Margem Esquerda 18, já à venda em ebook na Gato Sabido.
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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
Excelente texto Prof Giovanni, embora sejam conceitos distintos, os de precariado e “proletaóides” , as vezes o precariado assume características proletaróides, é capturado, como tu mesmo evidencias nos teus debates. Já indiquei para duas orientandas que pesquisam o trabalho do assistente social e inclui no meu grupo de pesquisa a indicação. Muito interessante
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Demonstra de forma precisa a história cíclica!!! “A carnavalização histórica é um modo perverso de reprodução social da ordem burguesa.” “A única mudança permitida é aquela onde tudo deve mudar para que tudo fique como está.”
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Excelente texto.Parabens. Infelizmente somente fica estampada a condição de `profeta do óbvio` do Filósofo atual , onde as conclusões a que se chegam são obvias devido ao desenvolvimento exemplificativo do texto.Desse modo, é claro e certo que existem os fenômenos sociais elencados e suas origens , mas nunca é proposta uma solução ou uma intervenção em tal quadro, acabando por somente a se criar designações descritivas de tais grupos sociais, mesmo assim com objetivos duvidosos ou inócuos, além de conterem certa perversidade (proletarõides?precariado?).Desse modo a atividade intelectual acaba por nada acrescer e ficar adstrita às paredes da Academia, além de criar ainda maior desconforto social. Acredito que uma pessoa for alcunhada na rua de tais designações acabaria profundamente ofendida.Mas digo isso dentro do mais profundo respeito e sem querer agredir ninguém, o qual admiro pelo trabalho prolífico e atual.
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Olá Flávio. Concordo com vc. É isso que sentimos ao ler textos, cujos autores tentam se colocar numa posição de neutralidade ou de total distanciamento daquilo que analisam, como se isso fosse possível. Também respeito o autor e seus escritos, mas gostaria de fazer uma provocação: Como poderíamos denominar os intelectuais que dedicam seus dias e noites publicando, por exigência externa, na briga por um lugar no topo da pirâmide educacional – doutorado, pós-doutorado…. Devemos chamá-los de intelectualóides?
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Hoje, 28/01, saiu no O GLOBO uma matéria com os resultados de uma pesquisa feita por um pesquisador da FGV, num rolezinho no Leblon, RJ. Pareceu-me que este evento, em particular, assumiu características diferentes dos demais, anteriores no próprio RJ e em SP. Segundo a matéria, eram uns 300 participantes e, dos 260 entrevistados, 63% tinham nível superior, completo ou incompleto; a maioria morava na Zona Sul (área nobre da cidade) e muitos manifestaram a participação como forma explicita de protesto.
Segue na íntegra:
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Acredito que o artigo peca na análise dos jovens “rolezeiros”. Ao afirmar que “Os “proletaróides” são os jovens trabalhadores proletários da dita “nova classe média””, ou, “assalariados pobres”. De fato esses jovens empenham-se em ostentar e consumir, porém, os participantes dos rolezinhos são, em sua maioria, jovens com idades entre 12 e 16 anos que não trabalham, portanto não poderiam ser de fato conceituados como “proletaróides”. Mesmo os que trabalham, por serem “jovens pobres da periferia”, recebendo não mais que R$800,00, sem um papel desempenhado por suas famílias, não teriam condições de exibir as tão almejadas marcas e símbolos burgueses. Não cabe fazermos uso do “termo “proletaróide” (sempre com aspas) para designar a camada social da classe do proletariado constituída por jovens assalariados de baixa renda. Essa classe “constituída por jovens assalariados de baixa renda” que vai as lojas adquirir símbolos burgueses, não existe!
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Primeiro gostaria de parabenizá-lo pelo artigo. Gostei muito da definição de “proletaróides”. Mas, assim como o colega Alex Ribeiro, não concordo com a afirmação de que os jovens que fazem os “rolezinhos” são “proletaróides”.
Tudo bem que o Jairo da Matta citou o exemplo de um rolezinho feito na Zona Sul onde a maioria dos participantes tinha ensino superior, mas eu particularmente penso que esse foi um movimento em protesto bem debochado, diga-se de passagem.
Mas voltando ao assunto principal, os rolezinhos em sua forma original, ao que me parece, surgiram nos shoppings de São Paulo próximos à comunidades “carentes” e os participantes eram adolescentes.
Tanto é que os shoppings com receio de prejuízo conseguiram liminar judicial para impedir a entrada de menores de idade desacompanhados dos pais.
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Todo proletário é um assalariado, mas nem todo assalariado é um proletário. Proletariado é a classe operária.
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Taí, gostei de mais um texto do professor. Estava pensando algo mais ou menos nessa linha de raciocínio quando meus alunos perguntaram e quiseram discutir e comparar os movimentos sociais de 2013 com os rolezinhos. Vou usar esse texto (com registro dos créditos) no Grupo de Estudos História e Cinema de Animação como abertura dos encontros.
Obrigado por esse esclarecimento acadêmico.
Cláudio (Registro – SP)
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Republicou isso em Projeto Observatório do Precariadoe comentado:
Giovanni Alves analisa os rolezinhos e propõe a categoria de “proletaróide” como dispositivo de reflexão sobre a dinâmica de classes do Brasil na era do neodesnvolvimentismo. Importante para nós a análise comparativa entre proletaróides e precariado.
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