O “rolezinho” da FIFA no país de Pedrinhas em Estado de Exceção Permanente
Fenômenos aparentemente muito diversos, a Copa de 2014 no Brasil, a prática do “rolezinho” em shoppings e a tragédia do presídio de Pedrinhas no Maranhão, que possuem, por certo, peculiaridades próprias, que exigem várias análises específicas, interligam-se ao menos em um ponto, que trato no presente texto: o estado de exceção.
A sociedade inaugurada pelo modelo de produção capitalista, que se consolidou após longo período de acumulação de capital e formação do denominado exército de mão-de-obra, tem como características principais a criação do dinheiro como equivalente universal de troca e a fixação do valor das coisas por intermédio da formação da noção de mercado, que se rege pela lei da oferta e da procura e pelo fetiche da mercadoria, sendo que as coisas, os bens de consumo, necessários, ou não, se produzem por intermédio da compra do trabalho humano, que também é coisificado e integrado ao mercado sob a mesma lógica, para efeito de favorecer a reprodução do capital.
Do ponto de vista das concepções teórico-filosóficas, favoreceram ao advento do capitalismo as importantes ideias forjadas, desde o início do século XV, para a superação do feudalismo, notabilizando-se as noções de igualdade, liberdade, individualismo, empreendedorismo…
Para se consolidar, requereu, como decorrência de exigências lógicas, a construção de instituições voltadas, principalmente, à preservação do mercado de consumo e da estabilização das relações sociais, favorecendo a racionalidade baseada na previsibilidade de condutas, na organização hierárquica produtiva e no planejamento. Constituíram-se, assim, o Estado moderno e o Direito.
O Estado moderno e o Direito, notadamente o Direito Constitucional, além disso, servem à institucionalização de um poder central, que, do ponto de vista da teoria liberal, é consentido pelos indivíduos, que adquirem a qualidade política e jurídica de cidadãos, para a preservação da ordem. A vida em sociedade é regulada pela Constituição, tornada coercitiva pelo poder do Estado, o qual também se rege pela mesma estrutura jurídica, como forma de garantir que o poder entregue ao governo se exerça em nome do povo e para o povo, falando-se, assim, de soberania popular.
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O problema é que ao tempo em que as ideias filosóficas produzidas no século XVIII fornecem a base teórica para a formação das instituições, que estariam a serviço da retirada da humanidade do obscurantismo medieval, implementava-se uma nova forma de divisão do trabalho, que, como dito, fundamenta o capitalismo.
Essa forma de divisão do trabalho, no entanto, só se concretiza por intermédio de uma sociedade em que se evidenciam a classe capitalista, os que detêm os meios de produção, que é restrita e cada vez mais limitada, vez que se rege pela regra autofágica da livre concorrência, e a classe operária, formada por todos aqueles que não têm outra alternativa para sobreviver que não a da venda “da força de trabalho” em um mercado regulado pela lei da oferta e da procura.
Em outras palavras, a sociedade capitalista desenvolve-se necessariamente por meio da desigualdade econômica, que favorece, por sua vez, ao advento de uma desigualdade cultural, que dialeticamente retroalimenta a primeira. Esta é a grande contradição de um sistema que se consolida pela reivindicação de igualdade, superando as dimensões consanguíneas do feudalismo, mas que não pode sobreviver sem a formação de outras desigualdades.
As instituições, que regulam e organizam esse modelo de sociedade, carregam a mesma contradição, pois as prescrições normativas não podem abandonar a lógica filosófica da igualdade formal, do bem comum, da soberania popular etc, mas não têm como deixar de instrumentalizar a desigualdade real, para favorecer ao desenvolvimento do modo de produção capitalista.
O ponto central de sustentação do sistema é não revelar a contradição, fazendo com que a igualdade formal, prescrita normativamente, tenha valor e legitimidade em si mesma, tratando a desigualdade real como questão que foge ao papel do Direito e do próprio Estado.
O preceito fundamental da ordem filosófica liberal, a igualdade, é transformada em preceito jurídico formal. Fala-se, então, restritamente, em igualdade de direitos cabendo a cada um, no exercício da sua liberdade individual, com inventividade e esforço, atingir a independência econômica, mascarando-se o fato de que essa posição não tem como ser atingida, concretamente, para todos, ao menos na perspectiva da organização produtiva capitalista.
A desigualdade real, assim, não desafia a ordem estabelecida, ao mesmo tempo em que a própria ordem jurídica acaba legitimando a desigualdade, sobretudo a partir de dois institutos: o direito de propriedade e o contrato.
O direito de propriedade é estabelecido a partir de um dado momento histórico, não importando, pois, a origem da aquisição e muito menos o fato de que apenas alguns poucos seres humanos atingem o patamar de possuírem esse direito ainda que seja integrado à órbita dos denominados direitos fundamentais.
O contrato justifica as diferenças obrigacionais que se estabelecem entre as partes, sobretudo no que diz respeito à exploração do trabalho, porque juridicamente apenas importa garantir que as pessoas sejam livres para firmar seus negócios jurídicos.
Assim, um sistema que preconiza a igualdade institui mecanismos que legitimam, consolidam e produzem desigualdades. O contrato se fundamenta na igualdade das partes e para o direito liberal isso é quanto basta, para que desse instituto se preservem e se produzam desigualdades no plano real entre as partes que se vinculam juridicamente por intermédio de um contrato.
O Estado, então, é chamado para utilizar o poder que lhe fora conferido para manter essa ordem jurídica e, assim, garantir a efetivação dos interesses políticos e econômicos que permitem a continuação da produção capitalista, fazendo prevalecer, por conseqüência, os valores da classe dominante.
Sob o argumento de preservar a ordem e de fazer valer a lei, o Estado tende a reprimir toda ação humana que ponha em risco o projeto capitalista, mesmo que isso signifique desprestigiar, em concreto, os próprios fundamentos teórico-filosóficos que embasaram aquele modelo de sociedade de cunho liberal e que, inclusive, foram integrados à própria ordem jurídica.
Foi assim, por exemplo, que os países do capitalismo central, que preconizavam a liberdade, conviveram abertamente com a escravidão praticada em outros países e até mesmo se valeram da escravidão como forma primária de produção de riqueza, envolvendo-se com o tráfico internacional e valendo-se do barateamento provocado por essa forma de exploração do trabalho, como modo de obtenção da matéria-prima necessária ao processo de industrialização.
Essa, ademais, é a realidade que se verifica ainda hoje, com as formas de exploração baseadas na precarização das relações de trabalho que se produzem nos países periféricos, nos quais as condições de trabalho atingem níveis de degradação humana típicos do escravismo.
Foi assim, também, que o Estado e o Direito foram chamados a agir de forma repressiva com relação aos movimentos operários do século XIX que buscavam superar as desigualdades econômicas e culturais identificadas na realidade social. Ou seja, a liberdade não poderia ser usada para se contrapor à divisão capitalista do trabalho e a igualdade não poderia ser atingida, concretamente.
Essas contradições, no entanto, não são desafiadas porque o próprio Direito as integra de ponto de vista de uma racionalidade que tende a ser atomizada. As relações desiguais e injustas tendem a ser vistas de forma localizada e episódica, sendo que não raro entende-se a própria vítima como culpada pela situação.
No extremo, ou seja, quando a situação social gera o risco de total desarranjo, implicando em guerra civil interna, a própria ordem constitucional organiza o modo como o governante, a quem, então, se conferem poderes amplos, atuará sem a completude dos limites da ordem jurídica, tudo em nome da recomposição da situação pretérita.
Há, portanto, na formação do estado de exceção, previsto na própria ordem vigente, uma lógica de continuísmo, que faz da exceção um apêndice da própria regra.
Enquanto a ordem jurídica reflete quase que exclusivamente os interesses burgueses, o estado de exceção se vislumbra apenas nos momentos de crise institucional, permitindo-se até identificar e justificar a exceção, que tem nome: estado de sítio. Na Constituição brasileira, o mecanismo de exceção está previsto nos artigos 137 a 139.
No entanto, o percurso dialético da história gerou a inserção de diversos valores contrapostos na ordem jurídica capitalista, sistema que, ademais, tem demonstrado uma enorme aptidão para se adaptar a novas reivindicações, que são reinterpretadas e integradas à lógica de consumo.
Esse conjunto de noções nos conduz à compreensão de que o estado de exceção, para o desenvolvimento do modelo de sociedade capitalista é, na verdade, uma constante, variando apenas na intensidade, sobretudo quando visualizamos a realidade do ponto de vista da classe operária. Como dito por Walter Benjamin, “A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral” (Tese VIII “sobre o conceito de história”, p.83), ou como expressa Gilberto Bercovici, assiste-se, historicamente, a um “Estado de exceção Permanente” (Constituição e estado de exceção permanente, Azougue, 2004).
A exceção se situa, ademais, na própria lógica do Direito, que precisa se valer da interpretação, para atingir a realidade. Como explica Giorgio Agamben:
“Como entre a linguagem e o mundo, também entre a norma e sua aplicação não há nenhuma relação interna que permita fazer decorrer logicamente uma da outra.
O estado de exceção é, nesse sentido, a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força de lei realiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa. Desse modo, a união impossível entre a norma e a realidade, e a consequente constituição no âmbito da norma, é operada sob a forma de exceção, isto é, pelo pressuposto de sua relação. Isso significa que, para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção. Em todos os casos, o estado de exceção marca um patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real.” (Estado de exceção, p.63)
No Estado de exceção permanente, a ordem jurídica vale episódica e seletivamente, na conveniência da preservação da ordem estabelecida, que, no capitalismo, coincide com os interesses da classe dominante – que detém os meios de produção – ou que a ela se integra pela transferência de parcelas relevantes da riqueza produzida para a formação de novas relações de exploração do trabalho, criando um teia de interesses que geram maior estabilidade reacionária ao sistema.
Juridicamente, os direitos que potencializam custos, favorecendo o trabalho, que podem, sob um ponto de vista, ser entendidos como antissistêmicos, são desprovidos de eficácia pela via do estado de exceção de um modo que não permita revelar a contradição.
Os direitos dos trabalhadores, por exemplo, estão consagrados em leis como vários outros direitos. São direitos também, portanto. No entanto, se a ordem jurídica garante o direito à associação e à livre manifestação, com relação aos trabalhadores, a organização em sindicato deve ser limitada pelo Direito de modo a permitir uma fiscalização pelo Estado, para que a manifestação seja feita dentro de limites que não ponham em risco a organização produtiva. É assim, por exemplo, que se diz que os trabalhadores não podem fazer greve política e que o Judiciário pode conter, juridicamente, as reivindicações sindicais, declarando-as legais ou ilegais (quando “abusivas”).
Ainda examinando a questão do ponto de vista dos direitos dos trabalhadores, é dentro do contexto da lógica de exceção permanente que se nega, sem qualquer constrangimento, eficácia aos dispositivos legais de proteção do trabalho, sob o mero argumento, que sequer precisa ser demonstrado, de que se vivencia um momento de crise econômica. E, assim, direitos históricos, extraídos da luta de classes, são transformados em preceitos burocráticos, cujo descumprimento não implica em agressão jurídica. O argumento de que não se pode pagar, que justifica, por si, o desrespeito à lei, apresenta-se como situação excepcional, mas é, de fato, a própria regra da violência juridicamente institucionalizada para a preservação da desigualdade e o favorecimento dos interesses da classe dominante.
Por sua vez, quando se trata do direito de propriedade e de preservação do patrimônio, a eficácia do direito não é abalada e o poder do Estado funciona imediatamente.
A própria noção de crise no capitalismo é desviada da realidade. Historicamente falando, os momentos em que o capitalismo não esteve em crise são raros, porque a crise esta integrada à sua própria essência. Mas, obscurecendo-se esse dado, ou seja, pervertendo a realidade, o argumento da crise aparece como uma exceção. Esse mascaramento da realidade, de todo modo, precisa de um convencimento que se produz por intermédio da utilização de meios de comunicação votados à propagação de uma cultura massificada.
É assim que aqueles a quem os direitos trabalhistas são direcionados e que vêem esses direitos serem abertamente desrespeitados são convencidos de que tudo se passa não por uma vontade do agente e sim como decorrência da crise, apresentada como uma situação episódica, na qual a restrição de direitos se faz necessária para que se atinjam, no futuro, tempos melhores*, isto quando o convencimento não se produz por intermédio do argumento terrorista da ameaça do medo de que poderia ser pior, apoiado, ainda, na premonição de que o risco da bancarrota é iminente.
O convencimento em torno da legitimidade da exceção vale-se de um misto de esperança e de medo, restando sempre, é claro, a alternativa mais contundente e menos explicativa da repressão pela força estatal.
O fato concreto é que em uma realidade marcada pela desigualdade, que, ademais, se vale dessa desigualdade como requisito de sobrevivência, o convívio com uma ordem jurídica que preconiza a igualdade e abarca direitos humanos e sociais não pode se dar senão dentro da lógica da exceção permanente, pela qual se consegue recusar eficácia de tidas normas sem abalar a noção de um Estado de Direito, que é o fundamento a ensejar o próprio uso da força institucionalizada para a preservação da ordem social, sem revelar a intenção em torno do continuísmo e da defesa restrita de interesses de uma classe específica de pessoas que ocupam uma posição privilegiada na sociedade.
A exceção permanente apóia-se, também, em argumentos da ineficácia “natural” de algumas normas constitucionais, apontadas ou como normas de caráter programático, normas-programas, que não geram direitos e sim expectativas de direitos que poderão satisfazer certos interesses caso as condições materiais, econômicas, o permitam. Ou seja, seriam normas que se submetem à reserva do possível.
Contrariamente, a eficácia das normas ligadas aos interesses econômicos dominantes não sofre abalos, cumprindo ao Estado o uso da força para levá-las adiante de forma imediata.
Uma comparação entre as situações concretas vivenciadas pelos trabalhadores e os empregadores na sua relação com as normas jurídicas permite uma visualização fácil dessa desproporcionalidade de eficácia.
Se o empregado descumpre uma obrigação fixada no contrato ou na lei, o empregador, fazendo a avaliação da conduta do empregado de maneira unilateralmente, aplica a norma, sem intermediários, a norma que entende aplicável ao caso, produzindo na realidade o efeito pretendido. A transposição da prescrição normativa à realidade é feita de forma unilateral, direta e imediata. O Direito confere ao empregador a autotutela do seu interesse que por ventura, na sua avaliação, tenha sido resistido por ato do empregado.
Ao contrário, se é o empregador quem descumpre a norma, cumpre ao empregado buscar a tutela do Estado, por intermédio do processo, para fazer valer o seu interesse, o que somente será concluído muito tempo depois, vez que no direito processual, também no interesse da classe dominante, como forma de manter sob controle o poder outorgado ao Estado, devem ser respeitadas as garantias da ampla defesa, do contraditório, do duplo grau de jurisdição e da execução pelo modo menos oneroso.
O processo, aplicado na perspectiva da lógica da exceção permanente, acaba se constituindo mais um instrumento de violência contra aquele que por ação individualizada ousou desafiar a regra da exceção, para fazer valer seu direito, mas mesmo assim se submete ao estado de exceção caracterizado pela forma, intermediada e ponderada, como o direito social é aplicado. O Estado ainda tenta não cumprir o direito trabalhista, incentivando a conciliação, e na aplicação das normas parte de uma análise individualizada do conflito, o denominado caso concreto. O direito, construído por um silogismo episódico e pontual, não é capaz de provocar efeitos que promovam tensões estruturais.
É nesse contexto da exceção permanente, ademais, que bem se entende a resistência do Judiciário em acatar a ações coletivas para a satisfação de direitos sociais ou a recusa em admitir a produção de efeitos coletivos em ações individuais, como se tem verificado na experiência recente de parte da jurisprudência trabalhista brasileira no que tange às condenações por dano social (“dumping social”), repercutindo nos julgados que envolvem relações de consumo.
Como forma de evidenciar ainda mais o estado de exceção na vivência prática das relações de trabalho, lembre-se do que se tem verificado nas greves. Se os trabalhadores em greve ao promoverem um piquete atingem o direito de ir e vir de alguém ou enfrentam, de alguma forma, o direito de propriedade, a polícia, por intermédio de ação judicial, é chamada a agir e comparecendo ao local, o que fazem de forma imediata, tratam de dispersar a mobilização, fazendo valer em concreto os direitos contrapostos aos direitos perseguidos pelos trabalhadores, mesmo que dentre eles se insiram direitos liberais clássicos como a liberdade de expressão, o direito de manifestação e o direito à integridade física, dado que muitas vezes a dispersão, como se diz, se dá pelo uso da força.
Os trabalhadores se vêem impedidos de exercer o direito de greve na forma eleita, mesmo que esta seja uma garantia constitucional, enquanto que o descumprimento da lei pelo empregador, que pode ser, em caso hipotético, o não pagamento de salários, que é um bem necessário à sobrevivência, não desafia a ação policial, tendo os trabalhadores que buscar o seu direito, se quiserem, pela via do processo, na forma já declinada.
O importante, para a preservação dessa ordem de exceção permanente, é que as contradições não sejam reveladas. E a fórmula básica para o desenvolvimento de uma racionalidade reacionária é a de tratar os fenômenos sociais de forma pontual e descontextualizados da história, destacando apenas os aspectos que possam justificar o resultado que se pretenda para preservação do “status quo”.
Na direção inversa, ou seja, quando se pretenda revelar as contradições de um sistema baseado na regra da exceção permanente, que serve ao continuísmo, o que se deve fazer é exatamente integrar os fatos no contexto atual e histórico.
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Falando dos temas mais tratados nos últimos dias, a Copa, o “rolezinho” e a tragédia do presídio de Pedrinhas, parece fácil identificar a lógica do estado de exceção em todos eles, que foi utilizada, precisamente, para manter inabalada a ordem do sistema de produção capitalista. Não que a Copa, ou mais precisamente os questionamentos que se façam sobre o advento da Copa, o presídio do Maranhão e o “rolezinho” tenham potencial para superar a ordem capitalista. Longe disso. De todo modo, o método de análise, que preserva a lógica de exceção, buscando uma visualização atomizada, sem contextualização histórica e de modo parcial, dos eventos em questão, dada a repercussão midiática atingida, apresentou-se essencial para não permitir a revelação das contradições do sistema e atrair um questionamento estrutural.
O “rolezinho” é um exemplo típico tanto da forma de análise pontual e desvirtuada quanto da utilização do direito na perspectiva do estado de exceção, ambos pensados como estratégia de preservação da coerência sistêmica.
O “rolezinho”, que é uma forma de diversão utilizada por jovens da periferia, a partir de 05 de dezembro de 2013, após comunicação em rede social, foi direcionado para um shopping. Seria mais um dentre tantos “rolês”, mas diante da repressão policial havida e da repercussão midiática atingida, proliferou, rapidamente.
Vários outros “rolezinhos” foram marcados e coincidiram com a época do Natal, gerando bastante incômodo aos centros de comercialização. A visão que inicialmente se teve a respeito está bem traduzida em duas passagens publicadas na grande mídia: “Mais um shopping em São Paulo foi alvo do ‘rolezinho’ – evento combinado por meio de redes sociais em que jovens correm e tumultuam centros de compras.” (Folha de S.Paulo, 22/12/13); “Tem de proibir esse tipo de maloqueiro de entrar num lugar como este.” (Frase ecoada por uma frequentadora do shopping em meio a um “rolezinho”, segundo informação constante da reportagem de Laura Capriglione publicada no jornal Folha de S. Paulo, em 16/12/13: “Funk assusta shopping“).
Na sequência, a ordem jurídica foi chamada para manter a estabilidade do sistema. A par de reconhecer o direito à livre manifestação e o direito de ir e vir, várias decisões judiciais deferiram o pedido dos shoppings para proibir o “rolezinho”, culminando multa de R$10.000,00 por “manifestante”, como forma de garantir o direito de propriedade e de impedir possível desordem.
Interessante notar que enquanto os shoppings conseguem, sem muito esforço, liminares que impõem multas de até R$50.000,00 por pessoa, pela prática de um ato que, ao ver dessas decisões, seria agressivo ao direito de propriedade, mesmo sem qualquer intenção furtiva, ao mesmo tempo como é difícil para os trabalhadores, na verdade, quase impossível, conseguir uma liminar que fixe pena pecuniária pelo descumprimento da legislação trabalhista, o que muitas empresas chegam a praticar de forma reiterada, atingindo, inclusive, parcelas de natureza alimentar como as verbas rescisórias e o próprio salário, e agredindo também interesses de ordem pública, como os depósitos do FGTS e os recolhimentos tributários e previdenciários.
De todo modo, juristas destacaram o caráter discriminatório contido em tais decisões, pois reconhecidamente os participantes do “rolezinho” eram jovens da periferia e as críticas advieram, sobretudo contra a postura de alguns shoppings de fecharem as portas ou de proibirem a entrada de menores de dezoito anos desacompanhados dos pais ou responsáveis.
Como efeito dessa compreensão e após se perceber também que a estratégia repressiva somente fazia crescer o “rolezinho”, sendo que este acabou permitindo a visualização da injustiça social, do preconceito, da discriminação e da incoerência de uma ordem jurídica que garante de forma imediata a eficácia de alguns direitos seletivos, mantendo sob ineficácia tantos outros, chegou-se ao ponto da tentativa de dominação cultural do fenômeno.
Lembre-se que o mesmo ocorreu por ocasião das manifestações de junho de 2013. Nelas aflorou um questionamento acerca da ineficácia dos direitos sociais consagrados na Constituição, pondo em risco a estabilidade institucional do modelo socialmente injusto em que nos inserimos. Superada a fase repressiva, que igualmente fez crescer a insatisfação, atingindo-se o nível da revolta, que impulsionou, inclusive, uma quase infindável lista de reivindicações, passou-se ao processo de dominação e esvaziamento do conteúdo crítico do movimento, vinculando-o com intenção limitadora ao embate eleitoral entre PT e PSDB e visualizando-o ou como efeito de uma classe média que ascendera e que pretendia, então, experimentar maiores benesses de consumo, ou como estratégia de uma ala da ultra direita, que tinha tudo arranjado para o implemento de um golpe militar…
Agora com o “rolezinho” a tentativa está sendo a de transformá-lo em evento que na essência pertence a jovens da periferia que possuem uma mentalidade capitalista e que querem unicamente frequentar os shoppings porque estes representam um símbolo de sucesso, sendo que este se mede pelo poder de adquirir uma roupa de “marca”. Fora disso não se teria um autêntico “rolezinho”, mas ações de vândalos ou marginais, da mesma forma como se deu com as manifestações de junho, que foram admitidas, mas apenas dentro dos padrões de uma racionalidade reacionária e não questionadora. Assim, mais do que um questionamento, o “rolezinho” representaria um triunfo do sistema, que estaria, inclusive, em franca evolução.
Não dá para negar que o sonho de consumo esteja em muitos desses jovens – e é plenamente legítimo que assim seja – e que muitos se sintam bem indo aos shoppings, mesmo que para mero “rolê”, mas o fato tem, certamente, uma representação bem maior que essa. No mínimo, serve para chamar a atenção para a mentalidade discriminatória e preconceituosa que rapidamente proliferou em parte da sociedade e para destacar a forma atomizada como a ordem jurídica enxerga os problemas sociais.
O “rolezinho”, como fenômeno cultural, auxilia na percepção de que existem jovens na periferia e que esses jovens estão tentando dizer algo e querendo ser vistos, sendo que na via de uma visualização de mão dupla não é possível deixar de pôr em questão a forma como as instituições públicas e essa mesma sociedade tem tratado historicamente esses jovens, sobretudo no que diz respeito à qualidade da educação pública que lhes é direcionada e às oportunidades que se lhe apresentam além do “funk” e do “rolê” (que são, vale repetir, expressões culturais plenamente legítimas).
Mais que isso, o vento possibilita lembrar que a periferia existe e que nela não há apenas os “funkeiros” e os, digamos assim, “rolezeiros”. Na periferia há muitos trabalhadores que sofrem cotidianamente com o transporte público, que não tiveram oportunidade de estudar, que cumprem jornadas excessivas de trabalho, que recebem baixos salários e que muitas vezes não veem seus direitos trabalhistas e demais direitos sociais serem respeitados, inclusive pelo próprio Estado no que tange, por exemplo, aos benefícios previdenciários.
Neste aspecto, inclusive, vale perceber que a periferia há muito tempo já está nos shoppings, por intermédio de vendedores de lojas, de garçons, cozinheiros e atendentes de restaurantes, de trabalhadores da limpeza e da vigilância etc. E a grande questão que se coloca é quanto o sistema jurídico confere a essas pessoas a eficácia concreta para se envolverem em ações políticas para efetivamente melhorarem sua condição social, sobretudo no que se refere ao direito de sindicalização e à estabilidade no emprego, cumprindo verificar que processo histórico de efetiva emancipação tem se permitido à classe trabalhadora no Brasil.
O fato é que não será apenas com a permissão de que participantes dos “rolezinhos”, vindos da periferia, entrem nos shoppings – mesmo que, por força de uma certa evolução econômica, tenham poder de consumo – que se estará produzindo uma racionalidade inclusiva ou emancipatória ou implementando uma política voltada à produção de uma efetiva igualdade social.
Mais do que entrar nos shoppings, e, eventualmente, adquirir uma roupa de marca, é preciso que o projeto social esteja embasado na formação cultural, que permita a construção de uma consciência exatamente no sentido de que a aquisição de bens não é o que determina a essência da condição humana, sendo esta identificada pela capacidade de se colocar na posição do outro, de expressar os sentimentos de alteridade e de solidariedade, que implicam em não ver o outro como um adversário a ser batido na corrida pelos escassos postos de trabalho, ou como um trampolim sobre o qual se pisa para subir. A formação cultural necessária, portanto, vai contra um pretenso anseio de visualizar o “rolê” num shopping como um objetivo de vida ou de afirmação de sucesso pessoal.
Alguns jovens podem, legitimamente, pretender se envolver em um “rolezinho” como modo de diversão. O que não é possível é querer integrar essa prática a um contexto que tenha significação de triunfo do capitalismo, no sentido de que o mero acolhimento jurídico e econômico do “rolezinho” seja uma forma que, por si, garanta uma ascensão social desses jovens.
No contexto de uma formação cultural consciente, o participante do “rolezinho” precisa se ver muito mais como um trabalhador, daquele que está prestes a ingressar no mercado de trabalho (se é que já não entrou) buscando seus direitos dentro da compreensão da classe a que pertence, do que se ver como um consumidor, que será sempre circunstancialmente importante para o sistema.
O “rolezeiro” consciente, divertindo-se, mas vendo-se a partir do locus social em que está efetivamente integrado, entrará no shopping e verá, além dos produtos, os trabalhadores. Preocupar-se-á com a efetividade dos direitos dessas pessoas e até mesmo daquelas que bem longe dali, muitas vezes em outros países, fabricam bens em condições análogas a de escravo, o que se tem verificado, sobretudo, nos tais produtos de marca**. Conseguirá ver, então, que as coisas não são tão bonitas quanto parecem e que sua participação na construção de uma sociedade mais justa, solidária e humana, vai exigir, um dia, bem mais que um lugar refrigerado para dar uns beijinhos.
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O fato é que sem o esvaziamento de conteúdo, pelo qual se pretenda favorecer a uma inclusão retórica, o “rolezinho” pode fornecer elementos para análises críticas reveladoras, sobretudo no que tange à possibilidade concreta do modelo de produção capitalista abarcar ao sonho de consumo, com igualdade plena, todas as pessoas. Claro que ainda há poucos elementos para dizer se esse movimento vai avançar e em qual sentido, e não se pode, igualmente, transformá-lo, retoricamente, em um movimento social de cunho revolucionário, que não me parece ser, ao menos até agora, mas não é possível tratá-lo como mera brincadeira de criança.
Essa percepção nos conduz ao tema da Copa de 2014: seria a vinda da FIFA ao Brasil em 2014 um mero “rolezinho”? Uma simples brincadeira, sem maiores implicações?
A exemplo de muitos integrantes do “rolezinho”, talvez a FIFA assim o considere, ou seja, que vai apenas dar uma passeadinha no Brasil, fazer “rolar” uns joguinhos, e dar umas festinhas, com a diferença, no que se refere aos participantes do “rolezinho”, de que ainda pode ir embora com algum dinheirinho…
Mas, igualmente ao que se passa com o fenômeno acima examinado, a Copa é bem mais que isso e serve também para revelar como o poder constituído é capaz de estabelecer situações de excepcionalidade, mesmo no nível constitucional, para manter a mesma lógica do favorecimento de interesses econômicos específicos.
A Lei Geral da Copa (LGC), n. 12.663/2012, primeiro, foi, assumidamente, fruto de um ajuste firmado entre o governo brasileiro e a FIFA, uma entidade privada, visando atender os denominados padrões FIFA de organização de eventos, para possibilitar a realização da Copa das Confederações, em 2013, e a Copa do Mundo, em 2014; e segundo, traz várias agressões à ordem constitucional.
Destaquem-se duas dessas agressões à ordem constitucional, que se interligam aos direitos dos trabalhadores. O artigo 11 da referida lei dispõe que:
“Art. 11 – A União colaborará com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que sediarão os Eventos e com as demais autoridades competentes para assegurar à FIFA e às pessoas por ela indicadas a autorização para, com exclusividade, divulgar suas marcas, distribuir, vender, dar publicidade ou realizar propaganda de produtos e serviços, bem como outras atividades promocionais ou de comércio de rua, nos Locais Oficiais de Competição, nas suas imediações e principais vias de acesso.
§ 1o Os limites das áreas de exclusividade relacionadas aos Locais Oficiais de Competição serão tempestivamente estabelecidos pela autoridade competente, considerados os requerimentos da FIFA ou de terceiros por ela indicados, atendidos os requisitos desta Lei e observado o perímetro máximo de 2 km (dois quilômetros) ao redor dos referidos Locais Oficiais de Competição.
§ 2o A delimitação das áreas de exclusividade relacionadas aos Locais Oficiais de Competição não prejudicará as atividades dos estabelecimentos regularmente em funcionamento, desde que sem qualquer forma de associação aos Eventos e observado o disposto no art. 170 da Constituição Federal.”
O artigo em questão cria uma forma de rua exclusiva para a FIFA e seus parceiros, excluindo, inclusive, a possibilidade do funcionamento de estabelecimentos existentes no tal “local oficial de competição”, que abrange o perímetro de 2 km em volta do estádio, caso seu comércio se relacione de alguma forma ao evento.
Ou seja, quando se diz que uma das justificativas para o advento da Copa é impulsionar o comércio, que beneficiaria, inclusive aos trabalhadores, este se vê, por lei, restrito aos parceiros da FIFA.
Além disso, pela lei em questão, a União obrigou-se a indenizar à FIFA por qualquer lesão sofrida pela entidade inclusive quanto à transgressão do comércio exclusivo no “local oficial”, acima referido (art. 21), sendo esta responsabilidade objetiva, na forma do § 6º. do art. 37 da Constituição Federal (art. 22), sendo oportuno lembrar que não tem sido essa a postura desse mesmo governo no que se refere aos danos causados aos trabalhadores que lhe prestam serviços por intermédio do processo (inconstitucional, diga-se de passagem) da terceirização e muito menos a mesma eficácia jurídica se conferiu aos interesses dos trabalhadores que estão executando as obras da Copa, muitos deles submetidos a excessivas jornadas de trabalho para que se consigam concluir os serviços, sob suspeita de não recebimento das horas extras ou recebendo-se por meio de pagamento “por fora”, outros, ainda, trabalhando com atrasos no pagamento de salários, isto sem falar nos trágicos acidentes que geraram mortes, não se tendo qualquer notícia que o governo tenha intervindo para buscar a eficácia plena dos direitos desrespeitados e para garantir às vítimas uma imediata indenização.
O segundo destaque está, aliás, diretamente ligado a este aspecto da garantia da eficácia da legislação trabalhista.
Fato é que, de forma acintosa, o governo brasileiro resolveu fazer letra morta das normas constitucionais, inseridas na órbita dos direitos fundamentais, de proteção ao trabalhador, institucionalizando o trabalho em condições análogas à de escravo, vez que desprezados os direitos trabalhistas, apoiando-se na retórica falaciosa do trabalho voluntário, que não possui qualquer respaldo jurídico, ao menos em nível constitucional, contrariando, inclusive, o compromisso público assumido junto com a FIFA, constante expressamente no art. 29 na própria Lei Geral da Copa:
“Art. 29. O poder público poderá adotar providências visando à celebração de acordos com a FIFA, com vistas à:
I – divulgação, nos Eventos:
(…)
b) de campanha pelo trabalho decente; (grifou-se)”
Ora, o trabalho decente é um conceito difundido pela Organização Internacional do Trabalho exatamente para impedir a execução de trabalho sem as garantias trabalhistas. Verdade que a legislação nacional (Lei n. 9.608/98), de discutível constitucionalidade, permite o trabalho voluntário, sem a garantia dos direitos trabalhistas, mas este serviço, que pode ser prestado “a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada de fins não lucrativos”, deve possuir objetivos “cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade”.
A FIFA está longe de ser uma entidade sem fins lucrativos e o serviço na Copa do Mundo, voltado a uma lógica sabidamente econômica, que é, ademais, o que justificou, na visão do próprio governo, a realização do evento no Brasil, está longe de possuir algum dos objetivos acima destacados.
E assim o governo brasileiro permitiu que a FIFA viesse aqui dar um “rolezinho”, explorando o trabalho de brasileiros e estrangeiros. E a FIFA pode, então, divulgar o “rolê” em seu “site”, da seguinte forma:
“12 – O que eu vou receber por trabalhar na Copa do Mundo da FIFA e nos seus eventos auxiliares?
O trabalho voluntário é por natureza um trabalho sem remuneração. Por conta disso, não haverá pagamento de nenhum tipo de salário ou ajuda de custo para hospedagem. Porém, visando não gerar ônus, o COL e a FIFA irão fornecer os uniformes, um auxílio para o deslocamento até o local de trabalho (dentro da sede) e alimentação durante o período em que estiver atuando como voluntário. [grifou-se]
13 – Qual a duração do turno diário de trabalho voluntário?
O turno diário de trabalho voluntário durará até 10 horas. [grifou-se]
14 – Por quanto tempo preciso estar disponível para o evento?
É necessário ter disponibilidade de pelo menos 20 dias corridos na época dos eventos.
15 – Existe alguma diferença entre os tipos de voluntários?
Existem algumas funções que possuem requisitos muito específicos e, por isso, necessitam de conhecimentos e habilidades específicas. Isso leva à criação de uma organização baseada em Especialistas e Generalistas:
Os especialistas atendem a áreas como imprensa, departamento médico, serviços de idioma, etc.;
Os generalistas atendem a todas as outras áreas de trabalho e têm foco no atendimento ao público em geral.
16 – Eu não moro em nenhuma das sedes da Copa do Mundo da FIFA. Vou poder participar?
A inscrição online pode ser feita de qualquer local, mas é importante que as pessoas saibam que terão de estar disponíveis para o trabalho no período determinado e na cidade na qual forem alocados/escolherem, sabendo que o COL não proverá nenhum tipo de auxílio para a hospedagem. [grifou-se]
(….)
18 – Os voluntários poderão assistir aos jogos?
Não serão disponibilizados assentos para os voluntários. Alguns poderão estar trabalhando nas arquibancadas ou em áreas com visibilidade para o campo, mas é importante lembrar que estarão trabalhando e, por isso, não deverão ter tempo para assistir aos jogos. Nos intervalos do seu horário de trabalho, no entanto, poderão ir ao Centro de Voluntários, onde poderão assistir por alguns momentos a alguma partida que esteja sendo transmitida.”
Claro que a medida auxilia também o interesse econômico do próprio governo brasileiro. Este planeja valer-se da previsão normativa de excepcionalidade em questão para angariar o trabalho de até 18 mil voluntários, sendo que a previsão de voluntários da FIFA é de 15 mil. Ou seja, um dos legados concretos da Copa será o histórico de que durante a sua ocorrência evidenciou-se o estado de exceção de modo a atingir, diretamente, a ordem constitucional pertinente aos direitos fundamentais de natureza trabalhista, renegando a condição de cidadania a pelo menos 33 mil pessoas.
As concessões do governo brasileiro à FIFA vão além, muito além, do poder que lhe fora concedido, principalmente quando pensamos a Constituição do ponto de vista da realidade teórica que lhe confere sustentação como instrumento de garantia do Estado Democrático de Direito a serviço do poder popular.
Nem se a presença da FIFA no Brasil, para a Copa de 2014, fosse mera brincadeira de criança, o governo brasileiro poderia chegar ao ponto em que chegou, pois até na brincadeira se preserva a noção de legitimidade, como se verifica na seguinte cantiga da roda:
Se essa rua
Se essa rua fosse minha
Eu mandava
Eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas
Com pedrinhas de brilhante
Para o meu
Para o meu amor passar
A rua não é do governo e ele não pode ladrilhá-la com pedrinhas de brilhante para a FIFA passar e explorar.
*
Ademais, embora o Brasil, que já teve muitas pedrinhas de brilhante, não pode sequer imaginar em oferecer esse luxo ao seu visitante “ilustre” porque se vê obrigado a revelar ao mundo, e a si mesmo, a realidade trágica do presídio de Pedrinhas, no Maranhão, onde, no final do ano passado, ao tempo do início do “rolezinho”, ocorreram 62 mortes.
Esse fato, igualmente, não pode ser visto de forma atomizada e episódica, e muito menos minimizado, vez que demonstra, de forma escancarada, as mazelas de uma sociedade profundamente desigual e que despreza ao máximo a situação dos que, pela exclusão social, econômica e cultural, foram conduzidos à marginalidade, ainda que alguns insistam em apontar o presidiário como uma espécie de delinquente pela própria natureza, não se desconhecendo, por óbvio, que dentre estes alguns possam ter, efetivamente, praticados graves crimes contra a vida, que nenhuma teoria social pode justificar.
De todo modo, números oficiais revelam, segundo informação de Gerivaldo Neiva, que “44,23% dos presos cometeram crimes contra o patrimônio [furtaram ou roubaram] e 20,13% cometeram crimes de tráfico, ou seja, mais de 64% dos presos são delinquentes comuns que roubaram, furtaram ou se envolveram com o tráfico. De outro lado, apenas 14,5% cometeram crimes contra a vida…”
Pedrinhas é no Maranhão, mas o Maranhão é aqui. E se em Pedrinhas havia 400 detentos a mais do número máxima de 1770 previsto, várias penitenciárias brasileiras seguem o mesmo padrão, sendo que em muitos casos os detentos estão indevidamente presos, em razão de uma eficácia parcial da ordem jurídica, pois entraves processuais impedem a libertação de detentos após o cumprimento da pena ou mantém em regime fechado condenados cuja pena deveria ser cumprida em regime aberto ou semiaberto.
Especificamente, o sistema penitenciário do Estado do Maranhão abriga mais da metade de presos (55,08%) ainda à espera de julgamento.
Não há vontade política para inverter concretamente e por completo o processo histórico da exclusão, apesar dos notórios avanços notórios da política governamental adotada nos últimos dez anos. Por isso, a prisão de mais de meio milhão de pessoas em todo o país acaba sendo tanto um efeito quanto uma política frente aos problemas sociais, ao mesmo tempo em que se presta a um nicho para uma atividade econômica lucrativa. Conforme ressalta Nota do Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito da USP, “não por mera conveniência, que a privatização do cárcere surge como solução atrativa para a construção e prestação dos serviços nas unidades. Não à toa o Estado do Maranhão, chefiado por Roseana Sarney, destinou R$74 milhões de reais à terceirização ilícita de mão-de-obra nos presídios do estado em 2012”.
E a distância entre Pedrinhas e o “rolezinho” nos shoppings paulistanos pode ser bem menor do que se supõe, o que explica, de certo modo, sem justificar, por certo, a aversão inicial que se apresentou ao evento. Como destacado na mesma Nota do XI de Agosto, “Negros compõem 60% da população carcerária brasileira, da qual 58% são jovens entre 18 e 29 anos e 77% não passaram do Ensino Fundamental, o que mostra o presídio como verdadeiro mecanismo de detenção e criminalização da população pobre, jovem e negra. Nesse sentido, cabe ressaltar a dificuldade dos mais pobres em ter acesso à assistência jurídica, quadro que também concorre para a ocorrência de rebeliões internas com vistas a exigir melhores condições para o cumprimento das penas.”
Ainda segundo Gerivaldo Neiva, em dezembro de 2012, a população carcerária do Estado do Maranhão era composta de 83,35% de detentos com escolaridade até o ensino fundamental, ou seja, sem qualificação profissional alguma. Apenas 0,18% eram portadores de curso superior.
Fato é que para boa parte da sociedade brasileira, que constitui, certamente, a maior parte, a ordem jurídica só tem sido aplicada em lógica de estado de exceção, valendo parcialmente na medida da conveniência da preservação da desigualdade, que favorece a muitos interesses, inclusive de natureza política eleitoral, sem falar, é claro, dos econômicos.
Essa não é uma característica do tempo presente, vez que acompanha a história da sociedade brasileira. Lembre-se, por exemplo, que o escravo só era visto como sujeito de direito quando praticava um crime, sendo que na perspectiva das relações civis o escravo, juridicamente falando, era um objeto do direito. No dizer de Jacob Gorender: “O primeiro ato humano do escravo é o crime”. Pelo ato criminoso o escravo se tornava gente, de pleno direito.
Ao longo da história do Brasil a consagração de direitos trabalhistas foi sempre acompanhada de intensa resistência por parte da classe empresarial, que buscava lógicas de convencimento inclusive do mal que a legislação trabalhista poderia causar à moral dos trabalhadores.
Por meio de texto intitulado A indústria em face das leis do trabalho tentou-se criar o convencimento de que a lei de férias, por exemplo, que foi de fato a primeira lei com direito trabalhista de âmbito nacional, era “perigosa”. Não apenas pelos aspectos sempre comuns da linha da argumentação econômica, no sentido de que geraria custos adicionais para produção, impondo uma interferência indevida no mercado produtivo, mas também porque “abriria para o trabalhador a perspectiva de reivindicações sociais crescentes”, entendidas estas não as de natureza econômica, mas de natureza revolucionária. Como esclarecido em passagem do documento em questão:
“Esta classe [operária] jamais se congregou em torno de ideais avançados e nunca teve veleidades de esposar a grande cópia [sic] de reivindicações que por vezes chegam a inquietar a sociedade dos velhos países industriais do estrangeiro. A única finalidade do proletariado é o trabalho bem remunerado e sua alma simples ainda não foi perturbada por doutrinas dissolventes que correm mundo e que, sem cessar, vêm provocando dissídios irremediáveis entre duas forças que, bem orientadas, não se repelem, antes de completam em íntima entrosagem: o capital e o trabalho.”
Resta clara em tal documento a argumentação de que:
“Os lazeres, os ócios, representam um perigo iminente para o homem habituado ao trabalho, e nos lazeres ele encontra seduções extremamente perigosas, se não tiver suficiente elevação moral para dominar os instintos subalternos que dormem em todo ser humano.”
E acrescenta:
“Que fará um trabalhador braçal durante quinze dias de ócio? Ele não tem o culto do lar, como ocorre nos países de climas inóspitos e padrão de vida elevado. Para o nosso proletário, para o geral do nosso povo, o lar é um acampamento – sem conforto e sem doçura. O lar não pode prendê-lo e ele procurará matar as suas longas horas de inação nas ruas. A rua provoca com frequência o desabrochar de vícios latentes e não vamos insistir nos perigos que ela representa para o trabalhador inactivo, inculto, presa fácil dos instinctos subalternos que sempre dormem na alma humana, mas que o trabalho jamais desperta. Não nos alongaremos sobre a influência da rua na alma das crenças que mourejam nas indústrias e nos cifraremos a dizer que as férias operárias virão quebrar o equilíbrio de toda uma classe social da nação, mercê de uma floração de vícios, e talvez, de crimes que esta mesma classe não conhece no presente.” (pp.67 e 70.)
No aspecto econômico, dizia-se que a lei de férias gerava duas consequências desastrosas: aumento dos custos e desorganização do trabalho. Segundo informação de Werneck Vianna (Liberalismo e Sindicato no Brasil, Ed.UFMG, p. 116), a FIESP chegou a elaborar cálculos, em indústria específica, sobre o aumento dos custos que seriam gerados pela concessão de férias, dada a diminuição da produção, que não poderia ser suprida pela contratação de trabalhador para o período respectivo, sobretudo em razão do alto salário que seria cobrado pelo trabalhador que viesse a ocupar por apenas 15 dias o lugar do trabalhador em férias.
Por ocasião da regulamentação do trabalho do “menor”, que tem início com a edição do Decreto n. 5.083, de 1º. de dezembro de 1926, que proibia o emprego de menores de 14 anos, limitava em 6 horas a jornada para os menores de 18 anos, com a concessão de uma hora de intervalo e vedava o trabalho destes no horário noturno, novamente os industriais apresentaram forte oposição. Conforme relata Werneck Vianna, para os representantes de associações patronais de São Paulo, segundo expresso em um documento que enviaram ao presidente da Câmara dos Deputados, “A implementação da lei seria inviável por questões de ritmo e da ordenação do trabalho industrial” (p.117).
Sustentavam, em tal documento, que, partindo do argumento técnico de que “Tudo está calculado do simples para o complexo. Uma secção vai servindo à outra, de modo que a matéria-prima bruta vai aos poucos sofrendo transformações sucessivas até que se ultimam todas as operações. Qualquer parada em um secção repercute na secção que se lhe segue ou na que a precede, tornando assim o organismo fabril um todo único”, não poderia haver divergência entre a jornada dos adultos e a dos “menores”, pois isso prejudicaria o andamento técnico da produção.
Fato interessante é relatado por Werneck, que serve a diversas análises, foi o da multa aplicada a uma indústria têxtil na cidade de São Paulo, por ter se utilizado de menores de 14 anos durante a vigência do decreto mencionado. Na defesa que apresentou à justiça, a empresa trouxe como testemunhas quatro dos maiores industriais da época: José Erminio de Moraes, Fábio de Silva Prado, Nicolau Schiesser e Carlos Whately, os quais, de forma uníssona, insistiram no argumento de que:
“Nas fábricas de São Paulo não é possível observar-se o disposto no Código de Menores com relação ao tempo do trabalho diário dos menores. Nessas fábricas, o trabalho é distribuído por secções de modo que o trabalho dos maiores fica dependendo do trabalho dos menores, de tal modo que um não pode prescindir do outro…” (p.116)
Essas falas não eram apenas retóricas, pois apesar de vigentes as leis não foram aplicadas por resistência direta e expressa dos industriais, que se viam, então, no “direito” de não respeitarem as leis, sem que o Estado, tivesse força e vontade concreta de lhes impor a autoridade da lei. Essa, ademais, é a conjuntura que envolva as leis trabalhistas no Brasil até hoje.
Oportuno observar que a força de trabalho dos “menores” na indústria têxtil representava, à época, 60% do total da mão-de-obra empregada.
Muitos podem imaginar ser um exagero o que está dizendo, mas basta que vislumbrem o quanto se torna difícil levar adiante uma reivindicação de direito em face de um conglomerado econômico, na condição de consumidor, por exemplo, ou em face do próprio Estado.
*
De todo modo, o mais importante é compreender que os fenômenos sociais devem ser visualizados no seu contexto mais amplo, interligados com outros fatos presentes e históricos, pois as compreensões pontuais e datadas facilitam a adoção de medidas jurídicas que favorecem ao estado de exceção permanente que impede uma emancipação popular, considerando, sobretudo, a posição dos que se situam em posição inferiorizada na sociedade, ou seja, contribuindo para a preservação da desigualdade que alimenta o modelo de sociedade que se baseia na exploração do trabalho alheio.
O que se passou em Pedrinhas é demonstração evidente do processo de exclusão e da falta de perspectiva inclusiva. O que se verificou nos “rolezinhos” revelou, primeiramente, o incômodo de parte da sociedade com a presença mais ostensiva das diferenças, denunciando nosso déficit democrático. Serviu para evidenciar, na sequência, que a periferia existe e quer se mostrar. A solução que se apresentou, superada a estratégia repressiva, de acolher parte desses jovens, alimentando seus sonhos de consumo, não é capaz de constituir um projeto político de inclusão, até porque obter capacidade econômica para adquirir coisas não faz parte de um processo de emancipação humana, vez que quanto mais necessidade o ser humano apresenta de adquirir para se sentir gente, menos humano tende a ser. A Copa de 2014 se insere neste contexto como o evento que, sem qualquer perspectiva inclusiva, procura conferir mais um modo de diversão, que possa acomodar o espírito. Não seria isso negativo em si não fosse o evento acompanhado da mesma lógica, visualizada nos outros dois fenômenos, de reforço da produção de uma racionalidade fugidia da realidade, contribuindo para a reprodução do estado de exceção permanente, voltado ao favorecimento de interesses econômicos determinados, que se valem da desigualdade social para se perpetuarem como força dominante.
O grande desafio que se apresenta é o de superar o estado de exceção permanente, impulsionada pelas análises atomizadas. O que se exige, portanto, são avaliações contextualizadas, para a produção de uma racionalidade integral, estrutural, de emancipação e de produção da efetiva igualdade.
Um passo importante pode ser o de dar continuidade às reivindicações de junho, que pautam a necessidade de conferir efetividade plena, para todos, aos direitos sociais, notadamente: saúde, educação, transporte, trabalho digno e previdência social. Não que sejam, em si, o fim a que se pode chegar no projeto de uma sociedade igualitária, mas porque bem instrumentalizam a revelação das contradições do sistema e da utilização permanente do estado de exceção.
Restará, de todo modo, o dilema proposto por Bercovici, extraído das observações de Walter Benjamin:
“Ou escolhemos a verdade do estado de exceção permanente a que estamos submetidos, que muitos fingem que não enxergam, ignorando a realidade. Ou escolhemos a outra verdade, a do outro estado de exceção, a da exceção à exceção, a do estado de exceção a ser ainda instaurado, a do poder constituinte do povo em busca de sua efetiva e plena emancipação.”
São Paulo, 20 de janeiro de 2014.
* O Brasil, por exemplo, como há muito se diz, “é o país do futuro”. Futuro que nunca chega porque a crise está de mãos dados com o presente.
** Vide, a propósito, a matéria de Eleonora de Lucena, “Livro discute exploração de trabalhadores por empresas“, publicada na Folha de S. Paulo, em 18/01/14, tratando das condições de trabalho em grandes corporações pelo mundo afora, sendo que, no caso do Brasil, não se precisa ir muito longe.
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Sobre a questão do estado de exceção, leia também, no Blog da Boitempo, Estado de exceção: o que é e pra que serve, de Pedro Rocha de Oliveira e Clarice Chacon, e Estado de exceção é o ‘cacete’, de Mauro Iasi.
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Jorge Luiz Souto Maior é um dos autores do livro Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, para o qual colaborou com o texto “A vez do direito social e da descriminalização dos movimentos sociais”. Trata-se do primeiro livro impresso inspirado nos megaprotestos conhecidos como as “Jornadas de Junho”, com textos de autores nacionais e internacionais como Slavoj Žižek, David Harvey, Mike Davis, Raquel Rolnik, Ermínia Maricato, Ruy Braga, Carlos Vainer, entre outros.
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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e de um dos artigos da coletânea Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.
O texto é realmente revelador. Revelador das maquiagens que são feitas para encobrir a verdade. Uma verdade de injustiças.
Este artigo nos faz acordar para a vida, e nos mostra um caminho para obtermos uma mudança desta triste situação.
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