Crônicas de Berlim: O disco fora do lugar

14.01.15_Flávio Aguiar_Crônicas de Berlim_Disco fora do lugarPor Flávio Aguiar.

Graças sobretudo ao passado nazista, é muito complicado falar em ‘brio nacional’ na Alemanha.

Mas ele existe. Na surdina, mas existe. Por exemplo: faz parte do brio nacional alemão a indústria automotiva do país, a começar pela Volkswagen, e na fila vem nomes como Mercedes, Daimler-Benz, BMW e por aí afora. Além de ser uma pedra fundamental da industrialização alemã logo após sua primeira unificação como Império, e de ter sido um dos carros-chefe da recuperação econômica durante o regime nazista, a indústria de carros foi uma pedra-de-toque da reconstrução alemã depois da 2ª Guerra Mundial e do monte de escombros – físicos e espirituais – a que a tresloucada época nazista reduzira o país.

E há outros. Alguns nem é necessário destacar: a cerveja. Cada cidade tem a sua marca e até o seu tipo de copo. E ai de quem tomar no copo errado. Já um elemento do brio alemão menos conhecido é o chocolate. Costumo dizer que se as melhores cervejas alemãs são as tchecas (já ofendi o brio!), os melhores chocolates suíços são os alemães (recuperei o moral!).

Hoje em dia o futebol é marca contraditória do brio – mas faz parte de qualquer brio autêntico ter os seus contraditórios. Há quem se orgulhe da alegre seleção multiculti da Alemanha, cheia de nomes poloneses, turcos, africanos e até brasileiros. E há quem torça o nariz: quando da Copa de 2010 cheguei a ler depoimentos dos mais tradicionalistas, saudosos de quando o time alemão parecia uma divisão Panzer em campo; ou de outros, que diziam só torcer quando os jogadores de clara ascendência alemã pegavam a bola. O futebol tem dessas coisas. Vamos ver em 2014.

Mas se há uma coisa que faz parte do brio alemão é o princípio da Ordnung, cujo sentido é muito diferente daquele contido no nosso lema positivista “Ordem e Progresso”. No nosso lema, a “Ordem” tem um princípio de contenção, senão de restrição. Mas aqui entre o Reno e o Oder (fronteira com a Polônia), a Ordnung significa praticamente uma liberação: a liberdade de fazer as coisas “em ordem”. O princípio se prende à ideia de que é impossível – até moralmente inaceitável – fazer algo sem um planejamento prévio, um roteiro estabelecido e devidamente documentado. Isto se aplica desde a complicadas decisões governamentais até a um simples passeio entre amigos. É impensável fazer um passeio sem consultar antes o mapa; sem levar o mapa; sem olhar o mapa depois e comprovar que o passeio foi realizado de acordo com o mapa. Nada mais estranho a este mundo alemão da gema do que o universo do flâneur francês, do que o perder-se por ruas, labirintos e vielas sem lenço nem documento.

Pois se algo entrou em crise na Alemanha, neste início de 2014, foi o princípio da Ordnung. Tudo ficou e está fora de lugar.

O ex-campeão Schumacher teve um acidente grave esquiando, aparentemente por ter saído da pista regular. Em todo caso, além de torcer pela sua recuperação, esperemos o devido inquérito, dentro do espírito da mesma Ordnung. Nada de especulações precipitadas, embora na mídia mundial tenha chovido interpretação apressada.

Logo depois a chanceler Angela Merkel fraturou a bacia, também esquiando. Está, dizem, governando da cama, coisa mais fora de ordem do que, por exemplo, se o primeiro-ministro britânico governasse falando com o sotaque de Woody Allen.

Como se isto não bastasse, o próprio governo alemão, recém empossado, fraturou a bacia, ou quebrou os canecos. O arqui-conservador primeiro-ministro da Baviera, Horst Seehofer, desembainhou a espada de Sigfried e se botou para cima dos agora esperados imigrantes búlgaros e romenos, que devem acorrer aos borbotões e catadupas ao Valhala germânico agora que a União Européia liberou, conforme seus estatutos, a livre circulação dos cidadãos daquelas nacionalidades em seus territórios.

Aos olhos dos puristas, como Thilo Sarrasin, autor do best-seller A Alemanha que se autodestrói [Deutschland schafft sich ab], onde investe contra os imigrantes turcos e muçulmanos, a Alemanha agora será invadida e descaracterizada por uma horda de ciganos (que preferem se chamar roma e sinti) e búlgaros (cuja palavra, que no latim medieval designava o “herege”, o “não cristão”, está na origem, através do francês, do nosso carinhoso substantivo “bugre”). De resto, na visão daqueles, estes novos “turistas da desordem” viriam a esta ilha de propsperidade em meio à débâcle européia provocada pelos “excessos” dos “povos do sul”, apenas para aproveitar-se do seu sistema de seguridade social. Tais considerações levaram o Sr. Seehofer, inspirando-se em exemplos nobres, como da Marine Le Pen francesa e do Gert Wilders holandês, a proclamar que o governo alemão deveria restringir – leia-se impedir – a vinda imigrantes “pobres” para o país, onde “pobres” vale como um eufemismo palatável para “ciganos, romenos e búlgaros”.

O fato é o que o ministro de Relações Exteriores, o social-democrata Franz-Walter Steinmeier, não gostou da declaração do bávaro, e respondeu que tal princípio contrariava o estatuto da União Europeia. A própria Comissão Europeia veio à arena germânica para dizer que aquilo seria inaceitável. E pronto: o banzé que não estava no script armou-se, e agora o novo governo alemão, saindo da Ordnung, parece cartucho de fogos explodido, ou bolo abatumado, com a pobre chanceler, da cama onde está entrevada, tentando botar panos quentes em tudo e levar de novo o bolo ao forno. A oposição – Verdes e Linke – assiste de cadeirinha ao engalfinhamento.

Mas isto não é tudo. O inverno – outro elemento do brio alemão, do berlinense em particular, está fora de ordem. Enquanto nos Estados Unidos campeiam temperaturas siberianas envoltas em nevascas canadenses, aqui a temperatura está decididamente primaveril, mantendo-se entre alguns graus acima de zero de manhã e vários outros graus acima pela tarde. Uma vergonha, que me tem provocado comentários decididamente sádicos e maldosos em relação a meus amigos, dizendo que os cuscos (vira-latas, em gauchês) em Vacaria, no sul do Brasil, padeceram mais no recente inverno, quando nevou em mais de 130 das nossas cidades, do Mato Grosso do Sul ao Chuí) do que os nobres pastores têm sofrido aqui. Falar de neve no Brasil é decididamente um insulto ao velado brio hibernal berlienense, em meio a estas temperaturas e outono porto-alegrense.

Como se não bastasse, em meio ao inverno pífio, a polícia recentemente descobriu 140 quilos de cocaína em caixotes de bananas no depósito de um supermercado em Berlim. O fato inusitado provocou a manchete hilária no jornal sensacionalista Bild: “Em Berlim, 12 graus e 140 quilos de neve”. “Neve”, por aqui, é o mesmo que “pó”, por aí. Não sei o que fere mais o brio: se a descoberta do crime, ou se a constatação de que alguém – provavelmente um banana – na cadeia do tráfico achou que aqueles caixotes de banana deveriam conter apenas bananas, e mandou-os para o endereço errado, algo que não estava no script, decididamente uma quebra da Ordnung da desordem.

Ainda no terreno da contravenção, somente neste começo de ano os amigos do alheio (por aqui também os há) explodiram vinte caixas eletrônicos em Berlim, atrás do tutu, e em Euro.

Como digo, Berlim está virando uma metrópole “normal”, o que, se contraria a Ordnung, insere a cidade em outra “Ordem”, a “Desordem Global” da Urbs mundial.

Enquanto isto, o centro de Hamburgo foi ocupado pela polícia, num clima de estado de sítio, devido a conflitos entre sem-teto, organizações radicais de esquerda, artistas alternativos com o aparato da Ordnung, numa confusão digna das jornadas de junho em outros pagos. Só dizendo: O tempora, o mores.

Mas o melhor ainda está por vir. Ou já veio, e está por conferir. Outro dia, a Alemanha estarrecida leu no jornal, ouviu no rádio e viu na TV e na internet a notícia de que o aeroporto de Bremen fora fechado durante três horas. Vôos foram suspensos, aviões foram impedidos de levantar vôo, grande confusão. Por quê? Algum atentado? Não! Tempestade de neve? Nem pensar, neste clima semi-tropical. Tratava-se de um OVNI! Isto mesmo, um Objeto Voador Não Identificado, o popular disco voador da ficção científica.

Foi e é demais. Convenhamos, disco voador é coisa de Varginha, Quênia, Triângulo das Bermudas, ou de cidade dos Estados Unidos durante a Guerra Fria. Mas aqui, na sagrada terra de Goethe, Hegel, Fritz Walter e Franz Beckenbauer?! Unmöglich! Impossível!

É mas assim foi. Lá estava ele, com sua luz estranha, avermelhada, segundo testemunhas, seu ir e vir, fora da Ordnung, fora do script, fora das quatro linhas, fora e dentro de tudo: algo unforhersehbar, imprevisível, o Zwischenfall, o imprevisto, o incidente que não estava no plano, uma palavra de construção curiosa, que poderia ser traduzida literalmente por “a entrequeda”, “a queda entre”, “a queda no meio”.

O que seria, afinal? As autoridades apressaram-se a trazer o objeto não identificado para a Ordnung. Criaram-se várias hipóteses: a mais fraca, que se trataria de um helicóptero perdido. Muito improvável, helicóptero é reconhecível e por menor que seja faz barulho. Aparentmente não havia barulho. Outra: algum teste militar. Se for o caso, a agência responsável fechou o bico e vai continuar com ele fechado. A mais forte: era um “Drone”, um “VANT”, em português, um “veículo aéreo não tripulado”. Claro que esta solução gerou outra pergunta: se era um “drone”, que “drone”era este? De onde vinha, para onde ia, como apareceu, como sumiu? Seria, por exemplo, um veículo de espionagem – quem sabe da National Security Agency dos Estados Unidos. Mas aí o assunto seria com o celular da chanceler, ainda de cama e com a crise de seu governo a mil.

Houve ainda quem dissesse que era “o espectro do comunismo” rondando mais uma vez a Alemanha e a Europa. Impossível? Como sempre, não vamos ser precipitados nestas terras: aguardemos as investigações.

Vi de passagem a reafirmação mais uma vez, desta vez por linhas tortas, do contido brio alemão; uma policial declarou, animada:

– Estamos preparados para a invasão.

Resta saber do quê. Marcianos? Búlgaros? Romenos?

Vá se saber. Fora da Ordnung, tudo é possível.

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A Bíblia segundo Beliel: da criação ao fim do mundo, como tudo de fato aconteceu e vai acontecer, de Flávio Aguiar, já está disponível em versão eletrônica (ebook) por metade do preço do livro impresso aqui. Confira abaixo um capítulo do livro recitado pelo próprio autor:

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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